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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa jun. 2016

 

LEITURAS

Rafiâ Bornaz. Militante Tunisienne sous le Protectorat Français. Baccar, A. (2012). Tunes: Nirvana, 135 pp.

Eva-Maria Von Kemnitz*

* Centro  de  Estudos  de  Comunicação  e  Cultura  CECC,  Faculdade  das  Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa, Portugal, eva.maria@gepac.gov.pt


 

A abordagem às sociedades árabe-islâmicas, principalmente por parte dos autores ocidentais, aponta quase sempre para a situação subalterna da mulher muçulmana, entendida como uma das razões das desigualdades sociais vigentes. Esta visão, repetida à exaustão, faz esquecer que a luta pela emancipação das mulheres árabes e muçulmanas foi esgrimida desde o século XIX, coincidindo, de facto, com o mesmo processo que se desenrolou no Ocidente.

Primeiro, foram os homens que advogaram a necessidade da igualdade da mulher, baseando a sua argumentação nos valores islâmicos na perspectiva da construção de uma sociedade mais evoluída e justa. Por exemplo, o reformador tunisino Ahmed Ibn Abi Dhiaf (1804-1874), autor de uma Epístola às Mulheres, é considerado um defensor das mulheres, preconizando que deviam ser respeitadas e bem tratadas e, no caso de divórcio, não deveria haver recurso à violência.

O livro em apreço, dedicado a uma tunisina, Rafiâ Bornaz (19222011), remete o leitor para o contexto magrebino, onde as mulheres tiveram de enfrentar um duplo desafio, o da luta pela igualdade e o da luta pela independência no contexto colonial.Rafiâ Bornaz, oriunda de uma família de origem otomana, estabelecida na Tunísia desde o século XVI, foi educada num ambiente de respeito e igualdade entre irmãs e irmãos e onde nunca lhe foi exigido o uso do véu. Seguiu, como poucas raparigas da sua época, o ensino primário e liceal, tendo-se distinguido como muito boa aluna e ganho vários prémios escolares.

Essa existência feliz foi, todavia, assombrada por uma série de acontecimentos que a marcaram profundamente e imprimiram um novo rumo à sua vida. No decurso de 1937, Rafiâ foi confrontada, no liceu, com atitudes discriminatórias e trocistas por parte das colegas francesas, o que originou nela uma revolta interior que veio a manifestar-se pela contestação das professoras e das colegas, resultando daí que, em 1938, tenha sido expulsa do liceu, interrompendo, assim, os seus estudos.

Isto ocorreu num contexto de uma certa efervescência entre os tunisinos, impregnados pelo desejo de restituir uma soberania plena  ao seu país, reduzido, pelo Tratado de Marsa (1883), à condição de Protectorado da França. O partido Dastour, fundado em  1920,  exigia a igualdade entre tunisinos e franceses, a obrigatoriedade do  ensino em Árabe, bem como o reconhecimento da propriedade dos terrenos das tribos que tradicionalmente  os ocupavam. Uma facção deste partido, reformado em 1934, como Neo-Dastour, de orientação secular, foi alvo de repressão dos franceses e é nesse ambiente de exaltação patriótica que Rafiâ Bornaz, aos 20 anos, se junta ao movimento, desempenhando o papel de correio entre Habib Bourgiba, futuro presidente da Tunísia independente, e os seus colaboradores, distribuindo cartazes, colectando géneros, dinheiro e medicamentos para os combatentes, tendo, entretanto, mobilizado várias mulheres do seu meio social para o movimento. Em 1949, Rafiâ foi nomeada assistente social no Hospital Oftalmológico de Tunes e, nessa qualidade, viajou para acompanhar doentes e se inteirar das suas necessidades, percorrendo a França, a Suíça, a Espanha e a Itália. Mais tarde, foi assistente social do Hospital das Crianças. Em 1952, no seguimento dos distúrbios em Cap Bon, a repressão francesa cresceu e, a fim de mitigar o efeito dessas acções, a Princesa Zakia, com quem Rafiâ colaborou de perto, fundou um Comité de Assistência às Vitimas de Cap Bon, mais tarde transformado em Apoio Nacional (Le Secours National). Em 1952, Rafiâ foi presa, acusada de transportar armas. Passou na prisão dois anos, sendo ilibada e libertada no seguimento de um longo processo judicial.

Em 1955 casou com um médico de renome, o Dr. Abdelhamid Béji, e foi mãe de três filhos nascidos entre 1956 e 1959, sem abandonar a sua actividade profissional e social.

Enviuvou, em 1962, vendo-se com a responsabilidade de educar sozinha os filhos ainda pequenos, apenas com algum apoio da própria família, já que o Presidente Bourgiba lhe negou qualquer subsídio, argumentando que o envolvimento dela na luta pela independência não fora mais que o seu dever, pelo que não deveria esperar nenhuma recompensa.

Não voltou a casar e, embora dispondo de meios limitados, conseguiu educar os três filhos e proporcionar-lhes formação universitária. Já depois do derrube de Bourguiba, foi condecorada por duas vezes, logo em 1989 e em 1991, pela sua acção na luta pela independência, passando a receber uma pensão do governo.

A vida de Rafiâ Bornaz acompanhou várias fases da história do seu país, como as da resistência e luta pela independência desde os anos vinte, coroada de êxito em 1956,  quando  a  Tunísia  se tornou um país independente. Viveu na época da Tunísia independente sob a presidência de Habib Bourguiba (1957-1989) e do seu sucessor Zine al-Abidine Ben Ali (1989-2011) e ainda nos primórdios da chamada “Primavera Árabe”. Convenhamos, no entanto, que a acção reformadora de Bourguiba poderá ser apreciada de modo diferente, mesmo controverso, mas não restam dúvidas de que foi graças à legislação promulgada no seu tempo, muito embora no seguimento da legislação ainda do tempo da Regência, que o estatuto da mulher ficou definido de modo a constituir um exemplo, inatingível, para as mulheres de outros países árabes. Nos termos do Código do Estatuto Pessoal da Mulher e da Família (1956), a mulher foi declarada igual ao homem, foi abolida a poligamia e o repúdio, o matrimónio passou a ter de ter o consentimento da mulher, tendo sido elevada a idade núbil das mulheres para 18 anos; igualmente, garantiram-se-lhe iguais direitos em caso de divórcio, além da igualdade de salários e o direito de voto, criando assim um enquadramento jurídico para a emancipação plena da mulher, e abrindo-lhe outros horizontes, não confinados apenas ao casamento e à procriação.

Rafiâ Bornaz foi uma das mulheres tunisinas, na maioria, tal como ela, oriundas de famílias instruídas que deram o seu melhor na luta pela liberdade do seu país. Fizeram-no consciente e empenhadamente em função da educação que receberam e em função do meio donde vinham. Do mesmo modo, como na Turquia, onde Mustafa Kemal Atatürk concedera às mulheres turcas o direito de voto (1924), proibira a poligamia e o porte do véu (1925), também as mulheres tunisinas obtiveram tratamento semelhante através da legislação contida no Código de 1956. Não esqueçamos que a Tunísia foi o país árabe que mais absorveu as influências otomanas, nomeadamente através de, entre outros, o Código Civil Mejelle de 1886, que inspirou em vários aspectos a legislação tunisina. Assim, a luta pelos direitos das mulheres na Tunísia não decorreu nos moldes em que tem acontecido noutros contextos árabe-islâmicos. Porém, o recente debate – depois da tomada de poder na Tunísia pelo partido islamista Ennahda, em 2012, que pretendia alterar o estatuto da mulher, definindo-a como complementar ao homem, e não sua igual – vem demonstrando que, mesmo num país com uma enorme abertura, nada é dado para sempre. Felizmente, a maioria da sociedade rejeitou veementemente essas propostas e a nova Constituição, adoptada em 2014, reconheceu a igualdade da mulher.

Muito embora esta monografia seja dedicada a Rafiâ Bornaz, apresenta ainda outras mulheres da geração dela, oferecendo assim um quadro no feminino mais alargado. O texto, acompanhado de uma iconografia rica e variada e de documentos, cedidos pela família Bornaz ou provenientes dos arquivos, constitui uma mais-valia, complementando a percepção do processo da emancipação da mulher tunisina em curso desde o início do século XX.

Este livro deve-se a Alia Baccar, doutorada pela Sorbonne-Nouvelle (Paris III), especialista em estudos da literatura francesa do século XVII e do Mediterrâneo e em estudos da mulher. Actualmente é professora jubilada da Universidade La Manouba de Tunis e Presidente da Association Tunisienne des Membres dans l’Ordre des Palmes Académiques. Participou, pontualmente, em actividades da Universidade de Coimbra e da Universidade Católica Portuguesa de Lisboa. A autora  é  sobrinha da retratada Rafiâ Bornaz, a qual, depois  de muitas recusas  a váriosinvestigadores, aceitou confiar as suas memórias a uma pessoa de família. As entrevistas realizadas ao longo de 2010, completadas pela investigação nos arquivos e na imprensa, deram origem ao livro apresentado, que não deixará o leitor indiferente.