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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa jun. 2016

 

PIONEIRAS

Suzanne Daveau

 

 

Ana Firmino*, Elisabeth Évora Nunes**

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Departamento de Geografia e Planeamento Regional, Lisboa, Portugal, am.firmino@fcsh.unl.pt

**Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva, Lisboa, Portugal


 

O percurso de vida da Professora Suzanne Daveau poderia ter sido bem diferente se, em 1960, durante o Congresso Internacional de Geografia realizado em Estocolmo, não tivesse conhecido o Professor Orlando Ribeiro. O interesse que este lhe suscitou ditou a sua vinda para Portugal, país onde tem passado a maior parte da sua vida e que adotou como seu, se bem que mantenha bem vivas as raízes que a ligam ao seu país de origem – a França. Mas quem é Suzanne Daveau?

Parisiense de nascimento, Suzanne Blanche Daveau nasceu a 13 de julho de 1925, sendo a segunda de quatro irmãos (dois rapazes e duas raparigas). Toda a família residia em Paris ou arredores. Do lado paterno, descende duma família originária de Argenteuil, uma aldeia especializada na produção vitícola desde o século XVII. Mas, tendo o bisavô mandado os filhos estudar, eles seguiram outras profissões. Durante o flagelo da filoxera, que destruiu muitas vinhas na Europa, os técnicos do Jardin des Plantes, em Paris, prestaram ajuda técnica  aos  viticultores  de Argenteuil.  O jovem Jules  Daveau 1 (tio-avô de Suzanne), que gostava de plantas, foi convidado a trabalhar neste prestigiado jardim parisiense, e aí desenvolveu a sua investigação. A convite do Conde de Ficalho, desempenhou as funções de jardineiro-chefe do Jardim Botânico de Lisboa, onde criou o arboreto, sendo a sua memória ali recordada em lápide comemorativa. Mais tarde viria a dirigir o Jardim Botânico de Montpellier, onde passou o resto da vida.

A família de Suzanne não era religiosa; nem a mãe nem a avó materna foram batizadas. Do lado paterno, sim, mas assumiam-se como livres-pensadores.

O avô materno, Léon Robert, originário da Borgonha, veio com a família trabalhar em Paris tendo apenas 10 anos. Empregou-se numa drogaria, o que, com o correr dos tempos, explica que a família se fixasse em Belleville, um bairro popular do Leste parisiense, tendo adquirido ali a loja, na qual Suzanne chegou ainda a trabalhar enquanto prosseguia os seus estudos universitários.

Os pais de Suzanne, Henri Daveau e Denise Robert, gostavam de viajar. Faziam excursões e passavam férias nos Alpes. Durante o ano escolar, muitos domingos eram passados na floresta de Fontainebleau. Este gosto de viajar e o contacto com a Natureza terão atuado como catalisadores que despertaram em Suzanne Daveau o interesse pela Geografia.

A história da sua infância e juventude foi, necessariamente, marcada pelas duas guerras mundiais. O pai ficou detido quatro anos na Alemanha, durante a guerra de 1914-18. O facto de falar alemão facilitou-lhe a vida, porque servia de intérprete. O irmão mais velho de Suzanne teve de ir trabalhar nos correios em Berlim, ficando preso e morrendo antes do fim da guerra.

As crianças frequentaram os vários graus da escola pública, por a família se considerar socialmente como pertencente à pequena-burguesia comerciante urbana, e não a uma classe realmente “burguesa”, a quem a via do liceu, levando à Universidade, lhe parecia reservada. Suzanne sempre foi boa aluna e pensava vir a ser professora primária. Por isso, pretendia seguir para a École Normale d’Institutrices de la Seine, onde se entrava por concurso. Mas o Governo de Vichy tinha então encerrado esta instituição por considerar que formava “comunistas”. Mandava por isso os jovens recebidos no concurso para o liceu, mas numa turma especial, de muito bom nível pela seleção prévia. Após três anos de estudos no liceu, fez um ano de formação pedagógica de novo na École Normale, pois Paris tinha entretanto sido libertada em 1945.

Decidiu então prosseguir os estudos na Universidade, renunciando à segurança de uma carreira de Professora do Ensino Primário. Licenciou-se em Geografia na Universidade de Paris em 1947 e obteve o Diplôme d’Études Supérieures em 1948, tendo apresentado a monografia: “Un pays de côte: la bordure sud-est du Pays d’Othe”, orientada por Georges Chabot, ou seja, a apresentação do recanto da Borgonha donde vinha o avô materno. Após a agregação em Geografia (que em França, ao contrário do que se verifica em Portugal, se destina aos professores do ensino secundário), em 1949, foi contratada para lecionar no liceu da cidadezinha de Gap, no Sul dos Alpes. Iniciou, então, a preparação duma tese de doutoramento sobre a fronteira franco-suíça. Corria o ano de 1950 quando lhe surgiu a oportunidade de trabalhar como assistente do Professor Lucien Gachon, na Faculdade de Letras da Universidade de Besançon (1950-52). Entretanto soube que procuravam um professor para o Ceilão e, querendo conhecer o mundo, ficou a ponderar a hipótese, depois de ter informado o professor. Encontrou-se de repente substituída por um jovem colega, no fim das férias estivais. O Professor Gachon, originário duma família de camponeses do Centro da França e inicialmente professor primário, tinha já dito a Suzanne Daveau, que a tinha contratado por não haver então nenhum candidato masculino – o que reflete bem a mentalidade da época.

Gorada a hipótese de ir para o Ceilão e depois de um ano a ensinar no liceu de Lille, no Norte da França, Suzanne Daveau teve o eficaz apoio do Professor Georges Chabot, seu professor na Universidade e orientador da sua tese de doutoramento, para conseguir um destacamento no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), em condições muito favoráveis.

Suzanne Daveau doutorou-se em Geografia (Letras), pela Universidade de Paris, com Mention Très Honorable, em 1957, com a tese intitulada: “Les Régions Frontalières de la Montagne Jurassienne. Étude de Géographie Humaine”, dirigida por Georges Chabot. A tese complementar do doutoramento, orientada por Jean Dresch, versou o tema: “Recherches Morphologiques sur la Région de Bandiagra”. A atribuição de uma bolsa de investigação permitiu-lhe passar seis meses na então Afrique Occidentale Française, tendo sobretudo trabalhado no atual Burquiina Faso e no Mali. A criação da Universidade de Dacar, no Senegal, em 1957, abriu-lhe as portas para a docência no ensino superior em África, continente que muito a atraía. O naturalista Théodore Monod, que tinha criado em 1938 o Institut Français d’Afrique Noire (IFAN) em Dacar, contratou vários jovens geógrafos franceses para dirigir os Centros que ia então implantando nos diversos territórios da África Ocidental Francesa. Paul Pélissier, que trabalhava em Dacar, foi o primeiro a ensinar na jovem Universidade. Suzanne Daveau viria a trabalhar na recém-criada Faculdade de Letras, como Maître de Conférences e depois Professora, entre 1957 e 1964, tendo sido destacada como Directeur de recherches no CNRS em 1962-63. Desse tempo guarda uma recordação muito positiva dos alunos, muito interessados em aprender, e das relações entre professores e alunos, boas e francas. Os alunos provinham não apenas do Senegal mas de toda a África ocidental. A maior parte eram rapazes africanos, mas havia também algumas filhas de militares e de diplomatas franceses.

Porém, o encontro com o Professor Orlando Ribeiro e o interesse recíproco que logo nasceu viriam a ditar um outro rumo para a sua vida. Veio pela primeira vez a Portugal em 1961 e, nos anos que intermediaram até ao seu casamento, em 1965, várias foram as visitas que fez a este país, que percorreu de lés a lés na companhia de quem o conhecia melhor do que ninguém. Só depois do casamento se estabeleceu definitivamente em Portugal, renunciando à carreira em África, não apenas porque era a norma naquele tempo para as mulheres casadas mas, sobretudo, porque as condições familiares de ambos impunham esta solução. Era ainda o “Portugal dos velhos tempos”, a que teve de se habituar. O ambiente que se vivia à época recordava-lhe o tempo da guerra em França, em que as pessoas mostravam desconfiança e medo de falar ou, até, na forma de vestir das crianças, que se assemelhava à dos tempos idos mais antigos em França.

Tentou ainda continuar as suas investigações em África, tendo dirigido o Projeto de investigação “Estudo Quaternário no Sudoeste do Sahara” (196466), mas as débeis condições de saúde do marido levaram-na em breve a renunciar às temporadas prolongadas em regiões afastadas, sem nenhum contacto possível com a família. De 1966 a 1970 beneficiou duma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian. Na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa foi professora catedrática convidada (1970-93), tendo lecionado na Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Reims (França), no ano de 1967-68, durante o qual o marido foi convidado como Professor visitante na Sorbonne. Ensinou Geografia Regional na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1977-78. No Centro de Estudos Geográficos de Lisboa, desempenhou as funções de Diretora em 1973-74 e orientou as secções de Geografia Física (1976-81) e de Geografia Regional e Histórica (1981-92).

Foi distinguida com os títulos de Chevalier de l’Ordre du Mérite Sénégalais (Senegal, 1964), Chevalier de l’Ordre National du Mérite (França, 1981), Grande Oficial da Ordem Militar de Sant’Iago da Espada (Portugal, 2002) e com o título de Doutora Honoris Causa pelas Universidades de Coimbra, Lisboa e Porto.

À semelhança do que se afirmou em relação à família de Suzanne Daveau, também a família de Orlando Ribeiro era originária da província, e o pai, nascido em Viseu, como a mãe, trabalhou primeiro como jovem empregado de droguista no Porto, antes de se estabelecer numa loja na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa.

Por um feliz acaso, Orlando e Suzanne encontraram-se em 1960 na Suécia, no Congresso Internacional de Geografia, e Suzanne Daveau, que se considerava “muito tímida, mas determinada”, não resistiu aos encantos de Orlando Ribeiro (na altura com 49 anos) e em breve lhe escreveu dizendo como esse encontro a marcara. Os anos que se seguiram não foram fáceis, mas aproveitaram todas as oportunidades para se encontrarem e prosseguirem, ao mesmo tempo, os estudos que lhes interessavam, em vários países da Europa, da África e no Brasil. Tendo conseguido casar em 1965, o gosto que ambos nutriam pelo campo levou-os a procurar uma casa fora de Lisboa, tendo-se instalado em 1966 em Vale de Lobos, onde ela ainda hoje reside. Os antigos alunos da Professora Suzanne Daveau ressaltam a sua boa disposição, disponibilidade e grande energia, que os “punha de rastos” durante as visitas de estudo, e métodos de trabalho inovadores para a época, como a leitura de fotografias aéreas e a elaboração de croquis, que muito contribuíam para registar e sintetizar a paisagem e os seus elementos mais importantes. Suzanne Daveau aprendeu a praticar este tipo de cartografia temática e esquemática na Sorbonne, com o Professor Chabot, que ensinava aos alunos a juntar a documentação acessível sobre um tema e a esquematizá-la em croquis.

Como ilustração de um desses exercícios, apresentado no âmbito da cadeira de Geografia Regional, lecionada pela Professora Suzanne Daveau no ano letivo de 1979-80, na Faculdade de Letras de Lisboa, curso de Geografia, inclui-se um excerto dum croquis (figura abaixo) executado debaixo de forte chuvada, no dia 17 de novembro de 1979, às 11h15 da manhã, na região de Torres Vedras.

 

 

Apesar das vantagens introduzidas pelas novas ferramentas de trabalho, como as oferecidas pelos computadores, que nos permitem elaborar cartografia com grande precisão e em pouco tempo, o processo é todo automático e não dá tempo para uma reflexão tão amadurecida como a que resulta da cartografia feita pacientemente em papel milimétrico. Para quem, como Suzanne Daveau, sempre gostou de desenhar, as ferramentas modernas cerceiam-lhe esse prazer.

A cadeira de Geografia Regional foi posteriormente retirada do programa mas, segundo a nossa pioneira, foi um erro, porque permitia estudar um espaço para o qual se procurava uma abordagem holística. Estrabão já chamava Corografia ao descrever dos lugares, distinguindo-a da Geografia ou conhecimento de conjunto da Terra; e os alemães desenvolveram muito esta área da Geografia, como nos ensinou Lautensach relativamente a Portugal. Suzanne Daveau explicaria ainda que os franceses, depois de perderem a guerra com a Alemanha, em 1871, inspiraram-se nos alemães para desenvolver a Geografia Regional. Foi Vidal de La Blanche que elaborou novos métodos para o magistério da Geografia do ensino primário até à Universidade. Criou um excelente Atlas Mundial e formou toda uma geração de geógrafos que estudaram várias regiões francesas nas suas teses de doutoramento. Salienta-se o nome de Demangeon, que estudou a Picardia, uma região que não se define como uma região natural mas pelas suas características humanas. Por seu lado, De Martonne é autor de um Tratado de Geografia Física notável. Orlando Ribeiro, que foi discípulo de ambos, mostra bem a interferência entre estas duas vertentes da Geografia no seu livro sobre o Portugal Central (1949).

Para Suzanne Daveau, a especialização ocorre cedo demais na Universidade. Advoga uma preparação mais geral antes de se empreender a especialização. Os seus trabalhos próprios versaram temas muito diferenciados, às vezes em resultado de desafios propostos por outras pessoas que com ela trabalharam (como Brum Ferreira, que foi seu discípulo e a quem orientou a tese de doutoramento em Geomorfologia; ou José Mattoso, com quem escreveu O Sabor da Terra (1997, reeditado em 2010, uma evocação geo-histórica das regiões portuguesas). Hoje, apesar de reformada, continua a investigar com dois antigos discípulos – Maria Fernanda Alegria 2 e João Carlos Garcia 3, na área da Geografia Histórica 4.

É verdadeiramente notável a capacidade de trabalho que evidencia aos 90 anos, mantendo a memória dos dados e factos passados e continuando a organizar a obra de Orlando Ribeiro, realizando em simultâneo outros trabalhos como a reconstituição do mais antigo Mapa Corográfico de Portugal (de cerca de 1525), publicado em 2010, em resultado de dez anos de labor, entre outras iniciativas. A Orlando Ribeiro, que foi um marco decisivo na sua vida, continua a dedicar com paixão o seu trabalho, compilando e publicando os seus textos.

 

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

Belo, D.; Daveau, S. & Mattoso, J. (2010). O sabor da Terra (2.ª ed.). Lisboa: Temas & Debates/Círculo de Leitores.         [ Links ]

 

NOTAS

1 Jules Daveau é autor da Geografia Botânica de Portugal e a sua vida e obra estão documentadas no artigo “Jules Daveau, sa vie et son œuvre géobotanique”, publicado, em 1983, na Revista de Biologia, 12, 367-384. Jules Daveau, que morreu pouco depois do nascimento de Suzanne Daveau, teve quatro filhos nascidos em Portugal.

2 Professora aposentada da FCSH/Universidade Nova de Lisboa, dedicou grande parte do seu trabalho à formação de professores de Geografia, tendo sido presidente da Comissão Pedagógica e da Comissão Científica do Departamento de Ciências da Educação da FCSH/UNL.

3 Professor associado com agregação da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, tem interesses de investigação na área da História da Cartografia, História da Geografia e Geografia Histórica.

4 Tenham-se em conta alguns dos trabalhos mais recentes: Maria Fernanda Alegria, Suzanne Daveau, João Carlos Garcia, Francesca Relaño (2012). História da Cartografia Portuguesa (séculos XV-XVII), Porto: Fio-da-Palavra; Maria Fernanda Alegria, Suzanne Daveau, João Carlos Garcia (2011). Leite de Vasconcelos e Orlando Ribeiro. Encontros Epistolares (1931-1941), Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia e Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Suzanne Daveau, João Carlos Garcia, Maria Fernanda Alegria e Maria Joaquina Feijão (coords.) (2011). Orlando Ribeiro (1911-1997). Ponto  de partida. Lugar de encontro. Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, Instituto de Geografia e Ordenamento do Território e Centro de Estudos Geográficos.