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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa jun. 2016

 

ENTREVISTAS

Inês Fontinha

 

 

Fernando Ribeiro*

*Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro de História d’Aquém e d’Além e Universidade dos Açores, f.ribeiro@fcsh.unl.pt


 

A vida agreste no feminino

vista e dita por Inês Fontinha

dedicada a “O Ninho”

para que mulher pelas ruas e bares

da amrgura

consiga construir o lar

para a vida.

Como nasceu, na Dr.ª Inês Fontinha, o interesse por esta realidade, esta causa social?

Trabalhava em investigação. Licenciei-me no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, dirigido, à época, pelo Professor Adriano Moreira, que me ensinou valores fundamentais, entre os quais a ética na investigação. Como estávamos em plena ditadura, os resultados das pesquisas eram alterados. Decidi não aceitar isto e fiquei desempregada.

Um amigo jurista trabalhava como voluntário na instituição “O Ninho” e convidou-me a ir conhecê-la. Foi para mim um desafio muito grande. Não conhecia a problemática, nem a situação das mulheres prostituídas. Escutei histórias inabitadas de afectos, vidas percorridas por violências extremas. Ganhei consciência para as profundas desigualdades existentes na nossa sociedade e decidi tomar partido.

Vem de uma família preocupada, responsável, da Madeira, cujo povo tem uma atitude bastante humana. Só estive lá em trabalho, mas deu para ver e sentir a preocupação das pessoas umas pelas outras. Herdou tal postura da mãe ou do pai?

Da mãe e do pai. A Madeira era uma ilha muito ignorada pelo continente. Na altura, quando ia para a Madeira, as malas eram fiscalizadas como se fôssemos para outro país; levar um maço de tabaco era considerado contrabando. Tenho seis irmãos, somos quatro raparigas e três rapazes, e os meus pais, na altura, fizeram algo contrário ao uso da época. Na Madeira, os rapazes iam estudar e as raparigas ficavam em casa a aprender costura e piano; a opção partiu do meu pai: “Vão as raparigas estudar e os rapazes estudam até ao que existe aqui”. Agora existe a universidade, mas na altura não: havia o liceu e a escola industrial e comercial. “Porque as mulheres têm de ser independentes; um homem pode trabalhar em qualquer coisa; uma mulher não; de modo que uma mulher tem que ser independente para não depender de um homem, tem de ter a sua independência, porque o amor é fundamental entre um homem e uma mulher e esta não deve depender do marido para a sustentar. Não! Os dois têm de trabalhar para construírem a sua vida!” O meu pai foi muito criticado, porque não era comum as raparigas virem sozinhas para aqui [continente]. Ensinou-me outra coisa: a tomar partido por aquilo em que se acredita. Quando eu vim trabalhar para “O Ninho”, tomar partido era tomar o partido das mulheres e não ficar calada; e isto tudo ajuda-nos também a dizer aquilo que se pensa: lutar por aquilo em que se acredita.

Essa luta tem sido a sua luta pel’“O Ninho”, pela consciência… Apenas em Lisboa? Nas grandes cidades, Lisboa e Porto?

“O Ninho” é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que tem por objectivo a promoção humana e social de mulheres vítimas de prostituição e mulheres traficadas para fins de exploração sexual. Foi fundado, em Portugal, em 1967,  seguindo o modelo d’“O Ninho” francês, criado em Paris pelo padre André Marie Talvas, em 1936. A história d’“O Ninho” insere-se assim na história do trabalho de colaboração entre os movimentos da França, da Bélgica (1980) e do Brasil, bem como de outras organizações e movimentos que trabalham directamente com pessoas prostituídas. “O Ninho” nasce a partir das necessidades sentidas pelas mulheres prostituídas e estrutura uma metodologia de intervenção que se vai adequando às realidades. Conhecer o meio prostitucional e os seus agentes foi o início de uma intervenção inovadora que, na década de 60, poucas pessoas compreendiam. Os serviços vão sendo estruturados de acordo com as solicitações feitas pelas mulheres e com a aprendizagem que os técnicos foram fazendo ao longo do seu percurso de trabalho directo com elas. Conhecemos a origem social das mulheres e dos clientes. Conhecemos os proxenetas (os companheiros, como elas dizem). Conhecemos mulheres que foram traficadas. O tráfico de mulheres é organizado por associações criminosas.

Quando me confrontei com raparigas que tinham a minha idade, na altura, ou mais novas e mais velhas, quando consegui criar uma relação, ganhar a confiança para me contarem as suas vidas, chegava a casa com   o corpo a doer, porque nunca imaginei que houvesse vidas tão violentas, que as pessoas tivessem percorrido um caminho tão violento, tão cheio de traumas. Eu, n’“O Ninho”, adquiri consciência política. Sentia-me como se estivesse numa linha onde, de um lado, estavam meninos e meninas, crianças, filhos de raparigas e mulheres que nada tinham e, do outro lado, estavam os outros, que tinham tudo. E pensei: “Mas que sociedade é esta? Que assimetrias sociais estamos nós a criar? Como é que podemos contribuir para que isto mude? Porque tem de mudar. A utopia é realizável.” Fui estudante do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, hoje ISCSP, e, na altura, Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina, para onde vinham os jovens das províncias ultramarinas de então fazerem o curso de política ultramarina, para serem administradores de província. Jovens muito politizados. Na década de 60, época do apartheid na África do Sul, um jovem negro falou-me desse grande país: a África do Sul; disse-me existirem aí autocarros para brancos e autocarros para negros. Para mim, uma coisa inconcebível. E ainda uma outra coisa: “Existe um negro, preso recente, de nome Nelson Mandela, que acredita plenamente vir a ser presidente da África do Sul.” Lembro-me de lhe dizer: “Estás doido. Com essa separação toda, com o domínio dos brancos sobre os negros, como será tal possível?” Replicou: “Se ganhares consciência de que algo é profundamente injusto e se passares a um amigo teu e esse amigo passar a outro amigo, vai criar-se uma consciência internacional desta profunda injustiça e o apartheid terminará por pressão internacional.” E isso aconteceu! É uma questão de tempo e de acreditarmos na concretização da utopia.

“O Ninho” aposta na libertação da mulher, para que não fique isolada na sua consciência de culpa? Quer fortalecer na mulher essoutra consciência: cabe à sociedade tratar a sexualidade?

O modelo de sociedade existente gira à volta do dinheiro, do lucro. O Estado incentiva a sociedade civil a organizar-se para criar instituições que ajudem as pessoas, mas não lhes dá o apoio necessário para cumprirem os objectivos a que se propõem. O papel que devia ser do Estado passa para as instituições, porque fica mais barato. Em nome da crise, o governo optou por uma política de empobrecimento das pessoas. Em nome da dívida, destruiu      a vida de muitas famílias e criou cantinas sociais para dar refeições aos pobres. Retirou a milhares de pessoas o Rendimento Social de Inserção de uma forma desumana. Há muitas famílias que estão desempregadas e não têm nenhum apoio do Estado. Como vivem estas pessoas? Que sociedade estamos a construir?

Há tempos, num debate, alguém afirmava que as mulheres ainda tinham, pelo menos, a possibilidade de se prostituírem para dar comida aos filhos. Mas que valores têm as pessoas que ousam fazer tal afirmação? É chocante! Tento dar o meu contributo para a construção de uma sociedade justa. É uma obrigação de todos nós. E o meu trabalho n’“O Ninho” foi decisivo para compreender o sofrimento que atravessa a vida de muitas mulheres. A culpa que se instala e que é necessário tratar, a culpa que destrói e que as leva a dizer “eu mereço isto”. A mulher sente-se um instrumento, um objecto para dar prazer ao homem. Isto é admissível? É admissível que a prostituição entre para o Produto Interno Bruto?

Mas entra como?

Não sei como se fazem as contas. Sei que a prostituição é um negócio muito lucrativo. Rende milhões de euros. Um estudo feito pela Fundação Scelles afirma que este negócio representa cinco por cento do PIB da Holanda.

Mas ao mesmo tempo há um aumento da criminalidade, não é?

O tráfico é proibido e há um plano nacional contra ele, mas não se pode combatê-lo, sem combater as causas e as consequências da prostituição. Como é que se pode combater uma situação de tráfico para fins de exploração sexual se se acha que a prostituição é uma escolha? A Holanda está a arrepiar caminho, porque, ao considerar a prostituição um trabalho, transformou organizações criminosas em “honestos” empresários do sexo. E o tráfico aumentou.

Nós temos isso lá em baixo no Martim Moniz, não temos? Aquelas jovens que estão à esquina? “O Ninho” consegue actuar aí?

Nunca tivemos, até hoje, problemas com os proxenetas. Mas existe uma diferença substancial entre o proxenetismo organizado e o proxeneta/companheiro. Com este é fácil conversar e, em algumas situações, eles também podem ser ajudados. Para a mulher, este chulo é a sua componente afectiva. Ela vive com ele aquilo que eu chamo a ilusão do amor. Ela quer acreditar que ele gosta dela e que não a quer explorar. Com o cliente ela tem uma relação mercantil, e com o seu “companheiro” ela vive o afecto e pensa que, quanto mais dinheiro lhe der, mais ele gosta dela. Quando toma consciência desta exploração, existe muito sofrimento.

E é aí que “O Ninho” trabalha, na desculpabilização?

O apoio psicológico e a psicoterapia são fundamentais para a mulher reorganizar a auto-estima e, consequentemente, compreender e interiorizar que a culpa não é dela, que nunca merece nem nunca mereceu estar naquela situação. É claro que o apoio social também é fundamental para reorganizar um projecto de vida. É um caminho, por vezes, longo.

E “O Ninho” contacta directamente com o chamado “chulo”?

“O Ninho” faz o acompanhamento psicossocial da mulher e do seu agregado familiar. E também pode ajudar o chulo/companheiro, se ele quiser. E por vezes, ele também faz a sua caminhada, mas isto só acontece se ele gosta da mulher e não está com ela apenas para lhe retirar o dinheiro. São situações pontuais, mas existem. Este chulo/companheiro funciona como a componente afectiva, como protector e como elemento de socialização.

O nosso objectivo na intervenção no meio prostitucional não é retirar as mulheres de lá. É sim ajudar à tomada de consciência, e são elas próprias que pedem ajuda para deixarem de se prostituir, porque o seu plano não é a permanência no meio mas sim encontrarem alternativas. E “O Ninho” pode ser a alternativa.

E o que é que “ONinho” oferece para os primeiros anos: uma sopa, uma casa…? “O Ninho” não faz caridade. “O Ninho” faz intervenção psicossocial. Tem um centro de atendimento, um lar de acolhimento, cantina e serviços de apoio, oficinas de treino e aprendizagem para o trabalho, um protocolo com a Câmara Municipal de Lisboa para a reinserção social em contexto laboral, serviço de seguida (follow up), acompanhamento psicológico e psicoterapia, apoio social e apoio jurídico.

Ao longo destes anos, o “Ninho” tem lutado pela Mulher à luz de uma visão de Mulher e para defender esta mesma Mulher no terreno; e também junto das instituições estatais?

“O Ninho” existe há 49 anos Foi a primeira instituição a intervir junto de mulheres prostituídas. “O Ninho” colaborou, em 1979, num estudo a pedido do Conselho de Ministros para dar um parecer sobre a moldura jurídica mais adequada para o enquadramento da prostituição, porque vigorava o sistema proibicionista que criminalizava as mulheres. A partir de 1 de Janeiro de 1983, com a entrada em vigor do Código Penal, passou a vigorar o sistema abolicionista, consoante uma das conclusões do estudo.

Até 2003/2004, as instituições sediadas na cidade de Lisboa eram subsidiadas pela Misericórdia de Lisboa. A partir de 2004, passou tudo para a Segurança Social.

E até 2003?

“O Ninho” era subsidiado pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, que nomeou um grupo de trabalho para estudar a rentabilidade social de “O Ninho”. Foi-nos dado parecer positivo. Pela mão da Dr.ª Maria José Nogueira Pinto, fez-se o primeiro acordo escrito, um “acordo atípico”. E atípico porque a intervenção estava fora dos parâmetros dos apoios dados a creches, a jardins-de-infância, a lares da terceira idade, etc. A Dr.ª Maria José Nogueira Pinto tinha uma sensibilidade muito forte para o social. O nosso caminho tem sido feito de acordo com a sensibilidade das pessoas que fomos encontrando no nosso percurso.

Em Janeiro de 2004, “O Ninho” passou a ser subsidiado pela Segurança Social; assinámos o acordo com esta instituição só em 2013. Porquê? Porque a Segurança Social teve e tem muita dificuldade em compreender a especificidade de uma intervenção desta natureza, muita dificuldade em compreender que a prostituição é uma questão complexa, e que complexa é também a procura de soluções para os problemas que lhe estão inerentes, pelo que é essencial um verdadeiro trabalho em rede que possibilite uma intervenção mais eficaz, centrada nas pessoas prostituídas.

“O Ninho”, como instituição, constitui por si só um sistema de trabalho em rede: intervenção no meio prostitucional, centro de atendimento, lar, oficinas de treino e aprendizagem para o trabalho, serviço de seguida, informação/sensibilização, que constituem subsistemas integrantes do sistema “O Ninho”, que por sua vez faz parte integrante do sistema societal em constante interacção e comunicação.

A instituição “O Ninho” tem uma intervenção específica, isto é, atípica, e por isso era necessário que o acordo contemplasse a especificidade, ainda hoje inovadora, da instituição, que constitui uma resposta integrada com sucesso. Não há nenhuma instituição no país que constitua por si própria um trabalho em rede e que também trabalhe em rede com outras organizações, nomeadamente, Segurança Social, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, juntas de freguesia, organizações não governamentais, etc.

Trabalhar com seres humanos, com percursos de vida profundamente violentos e que permanecem numa situação de violência, exige o respeito pelo tempo do Outro. O tempo da intervenção psicossocial não se compadece com as estatísticas, com os números que, ilusoriamente, muitos pensam serem demonstrativos da eficácia do trabalho social. N’“O Ninho” faz-se um trabalho qualitativo. Qualidade no trabalho com pessoas significa que não temos pressa, que respeitamos o tempo dela, da mulher, que necessita de ajuda, e que fazemos o melhor que sabemos e com o capital de experiência adquirido ao longo dos anos, respeitando sempre os princípios norteadores da intervenção social e a ética do trabalho social. A abordagem qualitativa permite descrever, interpretar e compreender o sentido da lógica que os actores sociais imprimem às suas acções, onde a interpretação e compreensão desenvolvida por eles e a busca do sentido dado à realidade social figuram como principais objectivos.

Podemos considerar cinco, seis anos de recuperação?

Raparigas com uma desorganização tão grande podem precisar, e precisam, de um ano, dois anos, três anos; costumo dizer, é o tempo delas. Nós temos de respeitar o tempo delas e não o nosso tempo ou o tempo dos políticos. É muito variável; há raparigas que em seis meses podem estar preparadas para o mundo do trabalho, há outras carecendo de um ano; outras de dois, outras de três. Respeitamos o tempo que elas, as mulheres, precisam. Não trabalhamos para as estatísticas, mas para as pessoas, e por isso o tempo é diferente consoante a evolução que cada uma for fazendo.

Há que deixar investimento gerar rendimento…

É um investimento nas pessoas que precisam de ajuda, há menos retrocessos. Aprendi muito com o Dr. João dos Santos (pedopsiquiatra), que, quando lhe perguntavam como é que ele avaliava o tempo para terminar a psicoterapia com uma criança, ele respondia que a criança dizia: “Eu agora vou-me embora.” N’“O Ninho” acontece o mesmo. Elas dizem: “Já sou capaz de procurar um trabalho.” Trabalhamos com as mulheres a sua autonomia. Sentem-se valorizadas e desejam a sua independência, tendo consciência de que “O Ninho” tem sempre a porta aberta.

Como se faz esse interface entre esse momento de estágio da mulher que aceita o apoio d’“O Ninho” e o mercado de trabalho?

Apoiamo-las na procura de trabalho, através dos jornais, da internet, vamos com elas aos Centros de Emprego, ajudamos a fazer o currículo, a saber estar numa entrevista, etc.

O medo do passado está sempre presente. Têm receio de serem reconhecidas por algum cliente. Posso dar um exemplo: se uma rapariga trabalha num restaurante e entra um cliente que a reconhece, de um modo geral, ele conta que ela foi «prostituta»; e aquela mesma mulher, que era considerada uma excelente trabalhadora, deixa de o ser. Lá está a sombra do passado  a estigmatizá-la e a não a deixar construir o futuro. Temos de ajudá-las a saber conviver com esta situação.

Ao longo destes 40 anos ajudaram muitas mulheres. Haverá casos de reincidência?

Há algumas que voltam a prostituir-se.

Tem uma percentagem?

Não, não tenho uma percentagem. Voltam a prostituir-se mas passado algum tempo, acho isso importante, voltam e dizem: “Já não consigo fazer aquela vida.” Isto significa que “O Ninho” as ajudou a criar auto-estima, porque uma pessoa com auto-estima não se prostitui; quando gosta de si, não faz mal a si própria. E isso aconteceu: reincidiram e voltaram, sempre, porque “O Ninho” nunca fecha a porta a ninguém. Temos mulheres que passaram pel’“O Ninho” há 30 anos e que reorganizaram as suas vidas e que ainda hoje nos visitam. Costumo dizer que elas estão sempre no fio da navalha, porque a gente sabe que, a nível geral, quando há uma empresa a fechar ou com dificuldades, as mulheres são as primeiras a serem despedidas; é verdade isso. E nós lutamos para que consigam ter um contrato de trabalho. “O Ninho” é sempre uma porta aberta para ajudar as mulheres. Para muitas delas, “O Ninho” é a família a quem recorrem num momento de aflição, ou com o filho, ou com o marido, ou com o trabalho, ou com a saúde; é uma porta que fica sempre aberta.

Qual o nível de escolaridade?

Muito baixo, a maior parte não tem o secundário.

“O Ninho” apoia-as nas escolas, na faculdade?

Ah!, sim, sim, apoiamos. Algumas, inclusive, incentivamos a tirarem cursos superiores.

E há empresas que apoiam “O Ninho” oferecendo postos de trabalho, donativos, mecenato? Quando falámos há 30 anos, disse-me que um cavalheiro deixava um donativo n’“O Ninho”, discretamente.

Acontece. Há pessoas que apoiam “O Ninho” fazendo donativos. Houve uma única empresa ligada à saúde, durante três ou quatro anos, que escolheu conceder um donativo a “O Ninho”.

A nível de bens, géneros?

A esse nível, recebemos ajuda do Banco Alimentar contra a Fome. Sucedeu também dar-se o fecho de uma loja cujo dono era do conhecimento de um técnico d’“O Ninho”. Ofereceram-nos roupa nova. Casos como este: dois ou três. Mas mecenato, não. Organizámos um concerto em 2003 e pedimos apoio aos bancos: apenas um respondeu. Como instituição, trabalhando na reintegração da mulher prostituída, vamos enfrentando o estigma típico. Também não somos uma instituição que diz “sim” só para obter o dinheiro. A ética tem estado presente na nossa intervenção profissional por ter de estar nas nossas próprias vidas.

Mas a Câmara Municipal de Lisboa continua a reconhecer “O Ninho” disponibilizando-lhe algum apoio institucional?

Pessoa muito sensível a “O Ninho” foi o Dr. Jorge Sampaio, à época presidente da Câmara.

O Dr. João Soares fez um protocolo connosco através da vereadora do Urbanismo, que se mantém desde 2001, protocolo este que visa “em conjugação de esforços proporcionar a mulheres acompanhadas a nível psicossocial pelo Ninho, um programa de reinserção social/formação profissional em contexto laboral, para a concretização de tarefas específicas com especial relevância na área da manutenção e conservação de áreas ajardinadas e espaços verdes da Cidade de Lisboa”.

As mulheres trabalham integradas nas equipas dos trabalhadores da Câmara, com a farda da Câmara, o que as faz sentirem-se iguais a eles. Estamos já em 2015 e tem-se mantido o apoio a 12 mulheres, porque o poder local tem também responsabilidade social para a inclusão. Também o Dr. António Costa tem tido uma sensibilidade para esta problemática. Deu-nos uma casa lindíssima com todos os requisitos que a Segurança Social exige.

E quantas mulheres conseguem apoiar?

A casa tem 17 quartos.

Tem quartos para crianças?

Tem quartos para crianças consoante a sua idade… consoante as situações que vão surgindo.

É dentro de Lisboa?

É em Lisboa, com bons acessos, é tudo muito bom. É propriedade da Câmara, cedida, através de protocolo, a “O Ninho”. Por exemplo, este espaço da Luciano Cordeiro é da Misericórdia; foi cedido a “O Ninho” por protocolo.

Quantas pessoas, na sua totalidade, trabalham para “O Ninho”?

Somos 13 técnicos, é uma equipa pluridisciplinar, para todos os serviços d’“O Ninho”.

Ao todo, são 13 técnicos para Setúbal, Sesimbra e Lisboa?

Sim.

E têm a ajuda de voluntários?

Os membros dos corpos gerentes, Mesa da Assembleia-Geral, Direcção e Conselho Fiscal são todos voluntários. É muito difícil ter voluntários. A maioria destes pretende falar com as mulheres. Mas primeiro há que ter formação. Ver também as necessidades da instituição. Há que saber se estão disponíveis ou não para as necessidades da instituição.

Não será a mesma coisa que ser voluntário num hospital…

Não, não é. É um trabalho violento, é violento pelas histórias de vida; é violento, mas aprende-se tanta coisa! Tivemos um técnico durante ano e meio num projecto: um projecto do Programa Operacional Potencial Humano (POPH). Segundo ele, a sua vida mudou. Ouviu coisas que nunca tinha imaginado; um rapaz com 30 anos. Nunca tinha imaginado que tal violência acontecesse. Até costumava dizer: “Ouvi, vi e cheirei.” Aprende-se muito,  é uma escola.

Uma escola dura.

É uma escola dura, mas e as pessoas que estão a sofrer a situação? Como é que elas se sentirão, se nós nos sentimos assim?

E de entre as mulheres assistidas pel’“O Ninho”, algumas terão refeito a sua vida: casamento, família, filhos, algumas como assistentes sociais?

Sim, a maior parte delas reorganiza a sua vida. Casam ou vivem em união de facto, com os seus filhos.

E a nível profissional…

Passam as mesmas dificuldades, como qualquer trabalhador com um trabalho precário e não qualificado.

Aqueles, com quem vivem, sabem do passado atribulado?

Elas contam a sua história.

Tal homem tem grandeza. Pertence a meio operário ou de serviços?

Pertence, de um modo geral, à mesma classe social das mulheres.

Quarenta anos: qual o saldo?

Positivo e gratificante.

Sai de coração cheio.

Longo percurso, com erros cometidos sem dúvida, mas com a aprendizagem proporcionada por esses mesmos erros; com a consciência, muito sinceramente, de que defendi uma causa, com muita sinceridade e com muita coerência, e continuo a defender.

E gosta de andar de avião?

Nem por isso.

Valeu a pena a viagem do Atlântico?

Valeu a pena. Quero acabar com uma frase que as mulheres me pediram para dizer: “O nosso corpo não nos pertence. Pertence à vontade do chulo e ao desejo do cliente.”

Aceite, em nome de “Faces de Eva” e em nosso, um muito obrigado!

 

Ficha técnica:

Transcrição, realização e co-edição: Adriana Passarinho e Ana Covita. Foto © por Ana Covita a Inês Fontinha na sede de “O Ninho”.