SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número35Maria Barroso: a Directora do meu ColégioInês Fontinha índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.35 Lisboa jun. 2016

 

ENTREVISTAS

Maria Teresa Tito de Morais - Presidente do Conselho Português para os Refugiados

 

 

Maria José Remédios*, Natividade Monteiro**

* Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva, Lisboa, Portugal, mariajoseremedios@gmail.com

**Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais, Faces de Eva, Lisboa, Portugal, nati.monteiro@netcabo.pt


 

Como descreveria a sua infância?

Uma infância feliz mas nem sempre muito tranquila pelas adversidades sentidas no rescaldo da II Guerra Mundial. Embora protegida pela família, que nos escondia as dificuldades, o ambiente vivido sofria algumas restrições. Sendo filha, neta, irmã mais nova, fui sempre rodeada de mimos.

Que influência terá tido a educação familiar e escolar que recebeu na formação da mulher que é hoje?

Sou oriunda de uma família em que os valores humanistas passaram de geração em geração. Foi muito importante na minha formação e colmatou as falhas que a escola do Estado Novo transmitia.

A sua juventude decorreu num período em que as liberdades eram muito limitadas e os opositores ao regime eram perseguidos. Que sentido dá, hoje, à sua experiência de exilada?

Foi uma experiência dura porque vivi a privação da liberdade ainda muito jovem, com apenas 18 anos, cheia de sonhos e vontade de contribuir para um mundo melhor. Vivi o exílio e reconheço que a Suíça, país que me acolheu, contribuiu para abrir os meus horizontes, sentir a liberdade contrastando com o meu país atrasado, fechado, cinzento e repressivo.

Esteve ligada à criação do Conselho Português para os Refugiados. Como surgiu esta ideia?

Depois da revolução do 25 de Abril de 1974, regressei a Portugal e fui convidada para trabalhar no escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) que abriu uma delegação em Portugal em 1977 com o objectivo de elaborar a primeira Lei de Asilo. Esta Lei foi um instrumento jurídico fundamental na regulação dos fluxos migratórios que chegavam a Portugal durante o processo de descolonização.

Devido a problemas financeiros do ACNUR e de reorganização interna e regional, a sua delegação foi diminuindo a actividade em Portugal e, em 1991, foi-me proposta a criação de uma organização não-governamental com responsabilidade de intervir inicialmente no plano jurídico de determinação do estatuto de refugiado. Mais tarde viria também a desenvolver um conjunto de actividades no âmbito social para o acolhimento e integração dos refugiados em Portugal. Nasceu assim o Conselho Português para os Refugiados (CPR), com um conjunto de 20 fundadores, personalidades independentes de reconhecido mérito, ligadas à sociedade civil. Após o encerramento do ACNUR em Portugal, em 1998, o CPR passou a representar esta organização internacional no nosso país.

Inicialmente vocacionado para o acolhimento pontual de pedidos de asilo, o que é que o CPR pode oferecer, se efectivamente se concretizar o acolhimento por Portugal de 4754, ou 10 500 refugiado/as, como agora está previsto?

O CPR tem uma experiência de 25 anos no apoio aos requerentes e beneficiários de protecção internacional, quer no apoio directo a esta população tão vulnerável, quer na criação de um espaço de protecção em Portugal. Nesse sentido, esta experiência acumulada é essencial no actual contexto, em que se espera que o nosso país tenha um papel activo nesta partilha de responsabilidades entre Estados-membros. De facto, ao longo destes anos, o CPR esteve sempre na linha da frente em matéria de acolhimento e integração de refugiados, com a gestão de dois centros de acolhimento, com o apoio jurídico e social, as aulas de língua portuguesa, o apoio para o emprego e sensibilização da sociedade civil, pelo que tem muito a oferecer tanto a nível técnico, como também teórico. No âmbito da recolocação de refugiados, o CPR integra o Grupo de Trabalho da Agenda Europeia da Migração, coordenado pelo SEF e, através de consórcios locais criados com diferentes municípios portugueses, tem capacidade para acolher e apoiar imediatamente cerca de 100 requerentes. Em conjunto com os seus parceiros nas autarquias, o CPR desenha planos de intervenção, promove formação aos técnicos e voluntários. A par deste trabalho, a sensibilização da opinião pública, com sessões nas escolas, universidades e o contacto permanente com os órgãos de comunicação social, ajudam a promover um ambiente favorável ao acolhimento de refugiados em Portugal.

Em seu entender, que políticas deviam ser incrementadas pela União Europeia para apoiar a Grécia e a Itália no registo e reencaminhamento dos/as refugiados/as que ali chegam diariamente?

Numa altura em que se registam mais de 60 milhões de deslocados forçados no Mundo, observa-se que é cada vez mais difícil para estas pessoas acederem a territórios seguros, particularmente aquelas que viajam por mar. É fundamental uma gestão de fronteiras sensível às obrigações internacionais em matéria de direitos humanos e que não bloqueie o acesso à protecção daqueles que dela tanto necessitam. Ao invés, o que estamos a assistir actualmente, com as novas regras do Acordo EU-Turquia, é à sucessiva transformação de locais de registo de refugiados, particularmente na Grécia, em centros de detenção.

O que é essencial, em meu entender, é permitir o acesso ao território para quem precisa de refúgio e continuar a apoiar as autoridades gregas e italianas a desenvolver a capacidade de acolhimento adequada. Os mecanismos de partilha de responsabilidades, designadamente a recolocação de refugiados a partir da Grécia e Itália para outros Estados-membros, também deverão ser incrementados.

Quando países como a Alemanha, a Áustria, a Eslováquia, a Hungria e a Polónia suspendem, neste momento, o Espaço Schengen, controlam ou fecham fronteiras e outros, como a Dinamarca, impõem condições duras para acolher refugiado/as, que poderão fazer as ONGs para substituir as inexistentes políticas da União Europeia?

Os Estados têm o direito soberano de controlar as suas fronteiras, a residência e a expulsão de não-nacionais, mas estão igualmente sujeitos a obrigações decorrentes do direito internacional dos refugiados e dos direitos humanos. Justamente, no caso dos refugiados, diz a Convenção de Genebra que nenhum poderá ser (re) enviado para um país onde a sua vida ou a sua liberdade possa estar em perigo (Princípio do Non-Refoulement), pelo que os Estados têm de admitir no seu território as pessoas que requerem protecção internacional, respeitando, assim, os direitos humanos fundamentais. Todavia, não é o que assistimos hoje em dia, com devoluções arbitrárias ou mesmo detenções. As ONGs têm um papel fundamental de advocacia junto dos decisores políticos, assim como de sensibilização da sociedade para o drama dos refugiados.

Em sua opinião, deveria haver também uma carta comum a todos os países de acolhimento que especificasse os direitos e deveres do/as refugiado/as no processo de integração?

Os direitos e deveres dos refugiados estão consagrados em diferentes instrumentos europeus e nacionais, como Directivas ou Leis do Asilo. Um refugiado tem, acima de tudo, direito a um asilo seguro. Os refugiados devem usufruir, pelo menos, dos mesmos direitos e da mesma assistência básica que qualquer outro estrangeiro a residir legalmente no país, incluindo direitos fundamentais que são inerentes a todos os indivíduos.

Da sua experiência de acolhimento a refugiados/as, considera que o facto de ser mulher reforça a discriminação?

As mulheres que viajam sozinhas ou com crianças correm mais riscos de sofrerem qualquer tipo de violência sexual ou de género no processo de fuga. Estão numa situação de maior vulnerabilidade, estando sujeitas a discriminações várias, ao longo do seu percurso migratório, até chegar a um lugar seguro.

Ao longo da sua vida, sentiu, alguma vez, discriminação por ser mulher?

Não, nem na família nem no trabalho. Mas não quer dizer que a discriminação não continue a existir em pleno século XXI.

Historicamente as mulheres apropriaram-se das actividades relativas ao cuidar do outro. Pensa que o facto de ser mulher interfere na forma de actuar perante aqueles que fogem da guerra e das perseguições políticas, religiosas e outras?

Não particularmente. Tentamos fazer o nosso trabalho com grande isenção, profissionalismo e sentido de responsabilidade. Somos sensíveis a muitas histórias de dor e de desespero tal e qual como os nossos colegas do sexo masculino. Não somos uma organização caritativa mas sim uma instituição que se rege por direitos e deveres, instrumentos legislativos que visam proteger aqueles que são perseguidos em virtude da sua raça, religião e/ou opiniões políticas e que, por isso, não podem regressar aos seus países de origem, necessitando assim de protecção internacional.

Na sua perspectiva e atendendo à sua história de vida, os movimentos feministas, ainda hoje têm sentido?

Nunca fui muito entusiasta dos movimentos feministas, embora entenda a sua existência histórica. Acho que os homens e mulheres têm de caminhar juntos para combater pelas mesmas causas de liberdade, paz e desenvolvimento. Reconheço que a mulher na maior parte dos países do mundo ainda é discriminada no seu local de trabalho, no acesso à educação e na vida familiar. É-lhe exigido um esforço muito maior para se afirmar na sociedade. É um caminho que se vai fazendo.