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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.34 Lisboa  2015

 

LEITURAS

Ochoa, R. (2015). As Noivas do Sultão. Lisboa: Edições Parsifal, 235 pp.

Eva–Maria von Kemnitz

A obra em apreço, referida na capa como “romance histórico” é mais um do género de “ficção histórica” que tem aparecido em profusão nos últimos tempos nos escaparates das livrarias, testemunhando um interesse redobrado pela temática histórica, quiçá sinal de várias crises e meio de buscar no passado a compensação que o presente nega. É curioso constatar que entre os autores figuram historiadores de formação que procuram levar a história a vários públicos, de modo informal, mas mantendo­‑se fiéis aos factos e à documentação existente, os apaixonados por determinadas épocas ou por certas personagens históricas, que investigam em profundidade para as transpor numa narrativa, para questionar os problemas do passado que também são problemas do presente, outros ainda com o intuito de subverter a própria História, tal como veiculada por manuais, desafiando o leitor a desenvolver uma reflexão própria e crítica e, ainda, jornalistas que se tentam nessa senda procurando algo de sensacional e de impacto imediato garantido.

Num recente inquérito, promovido pelo Jornal de Letras (n.º 1170/2015), dirigido a diversos autores que praticam este género literário, todos foram unânimes em afirmar que se trata de uma tarefa nada fácil e que para se embrenharem no espírito da época se lhes exige um apurado trabalho de investigação, consulta de fontes, de teses, de iconografia e de outras publicações sobre a temática escolhida, quando existirem.

No caso presente, a Autora, formada em Direito, dedica­‑se à escrita jornalística e livresca e costuma organizar viagens de cariz cultural às paragens exóticas da América Latina, da Índia e de Cabo Verde. Como a própria confessa num texto do Jornal de Letras (de 8 a 21 de Julho de 2015), a ideia de escrever este romance surgiu numa deslocação a Marrocos onde teve ocasião de tomar conhecimento da existência de um relato, que lhe aguçou a curiosidade.

O relato em causa Narração da Arribada das Princezas Africanas ao Porto desta Capital de Lisboa,seu desembarque para terra,alojamento no Palacio das Necessidades,hida para Queluz,seu embarque,e volta para Tângere (1793) não é ficção,antes descreve factos que realmente aconteceram.

As Princesas Africanas, referidas no título eram as mulheres do harém de Mawlay ‘Abdal­‑Salam, irmão do então Sultão de Marrocos Mawlay al­‑Sulayman (1792­‑1822). Embarcadas, com uma numerosa comitiva, em Agadir, tinham Salé como destino. Porém, os navios em que as Princesas viajavam foram desviados da rota pelas tempestades e correntes marítimas, fazendo com que, primeiro, arribassem à ilha da Madeira, depois, por imposição dos ventos, aos Açores, para, finalmente, poderem chegar a Lisboa. Regressaram, mais tarde e em segurança, a Tânger num navio de guerra português.

Trata­‑se de um episódio pouco conhecido, situado no contexto das relações luso­‑marroquinas dos finais do século XVIII, seladas pelo Tratado de Paz, Navegação e Comércio, assinado e ratificado em 1774 e consolidadas pela troca mútua de embaixadas e a renovação sucessiva do Tratado.

A relevância deste episódio deve ser, por isso, entendida à luz das exemplares relações entre ambos os Estados e a circunstância de as Princesas terem sido prontamente assistidas e recebidas com todas as honras devidas ao seu estatuto, derivou precisamente desse relacionamento assente na diplomacia.

Entre a data do seu embarque em Agadir (13 de Abril de 1793) e o seu retorno a Marrocos, com a chegada a Tânger (14 de Agosto de 1793), passaram­‑se quatro meses, cheios de peripécias e acontecimentos de que essas mulheres foram participantes e, simultaneamente, testemunhas. Porém, o conhecimento acerca desses longos dias não foi transmitido por elas, mas sim … por um homem. Frei João de Sousa, intérprete da língua árabe da corte portuguesa, que nessa qualidade acompanhou a etapa final desta viagem involuntária das Princesas Africanas, desde a sua atribulada chegada a Lisboa, em 18 de Julho, e a sua partida para Tânger, no dia 9 de Agosto de 1793.

Entendeu Fr. João de Sousa que o insólito a que lhe foi dado assistir suscitaria o interesse do público mais alargado, por tratar­‑se de uma ocorrência sem precedentes, “… e com effeito he sem exemplo na Historia Portuguesa”, como escreveu na dedicatória da obra ao Príncipe Regente. Decidiu publicar o seu relato a próprias expensas, dado à estampa ainda nesse mesmo ano.

O relato é sucinto, referindo brevemente o contexto da viagem, originada por uma guerra civil que assolava Marrocos por causa de uma sucessão ao trono ainda contestada, nomeia as Princesas e as principais personagens do séquito, ao todo 221 pessoas, e relata a interacção que protagonizou enquanto mediador na assistência e de contactos protocolares entre a corte portuguesa e as distintas viajantes que comunicavam através do arrais ou seja o comandante do navio.

Assim, a presença das Princesas Africanas é notícia; contudo, elas próprias continuam confinadas ao seu universo de reclusão, tornadas invisíveis.

Aqui, Rachel Ochoa, Autora do romance histórico, entra em cena, desenvolvendo uma ficção em torno do texto de Frei João de Sousa, dando voz às Princesas. Através de um diário imaginário, procurando interpretar os silêncios e preencher as lacunas do relato, a Autora conta a história no feminino. A ideia é em si excelente e promissora.

Com efeito, é engendrada uma intriga sinuosa que congrega intervenientes reais e imaginados numa articulação quase impossível, e … com, aparentemente, um final feliz.

O produto final, todavia, com que o leitor é presenteado, é francamente decepcionante, diríamos, escusadamente.

Assinalaremos, em primeiro lugar, o desencontro com os factos históricos. A fortaleza de Mazagão não foi conquistada pelos marroquinos como afirma (pp. 38 e 41), mas cedida por Portugal de modo que pudessem ser iniciadas as negociações que conduziram à assinatura do Tratado de Paz, Navegação e Comércio, base que doravante sustentou as relações entre Portugal e Marrocos. O Príncipe Mawlay ‘Abd al­‑Salam, de cujo harém são narradas as peripécias de viagem nesse romance, nunca foi designado como sucessor (pp. 9 e 30) por causa da cegueira, que segundo a lei islâmica o excluía da governação. As perseguições contra a população judaica e a embriaguez constante e violência, atribuídas a Mawlay Hisham (p. 43) foram, de facto, perpetradas por Mawlay al­‑Yazid, morto em 1792. A referência ao tributo pago por Portugal à Regência de Argel, em 1793 (p. 126), é infundada na medida que, na altura, estavam em curso as já longas negociações que apenas em 1813 viabilizaram a assinatura do Tratado de Paz e Amizade. No que respeita à história mais próxima, a de Portugal, surgem afirmações que despertam apenas um sorriso como a referência aos “ares do Brasil na infância deram­‑lhe [à Sereníssima Princesa do Brasil, futura D. Maria I] algum interesse e carisma” (p. 76) … que apenas conheceu o Brasil em 1808, aquando da transmigração, e não da fuga (pp. 129 e 235), da Família Real para o Brasil. Igualmente, não se percebe com que intuito de efeito literário a Autora dá Frei Manuel do Cenáculo por falecido em 1793 (pp. 35, 53 e 65), quando este se encontrava, na altura, em Beja no exercício das suas actividades de eclesiástico, pedagogo e mecenas e ainda por muitos anos, até a sua morte em 1814.

É mister esclarecer quanto aos Estudos Orientais em Portugal, segundo o texto “em decadência evidente, depois da tomada de Mazagão” (p. 38) que foi, precisamente, a partir do início das negociações com Marrocos, ainda em 1769, aquando da cedência de Mazagão, que se tornou imprescindível de dispor de intérpretes portugueses da língua árabe.

Há também desencontros com a geografia; as Princesas embarcaram no Sul de Marrocos, na região de Tafilet, como a Autora refere, mas partiram de Agadir e não de Casablanca (p. 9), o que pela geografia seria impossível, e que inclusive, na altura, seria designada com o nome português de Casabranca ou de Dar al­‑Beida, em árabe.

Frei João de Sousa, o intérprete, é referido de forma surpreendente como “monge” (passim) ou como “clérigo” (p. 138), esquecendo que na qualidade de monge não teria autorização para se ausentar do mosteiro. Este, nascido em Damasco, era oriundo de uma família cristã oriental e, por isso é incorrecta a informação de um “baptismo tardio”(p. 37) ou de uma conversão (pp. 106 e 107).

As formas de se dirigir às pessoas de estratos sociais diferenciados no século XVIII não se coadunam com a linguagem de hoje, mas a ignorância é atrevida e não se importa. A linguagem utilizada, de um informalismo extremo: “futurou um molho de problemas” (sic!, p. 15); exclamações “oipá” (pp. 89 e 96); “… vem falar com o nosso monge, que ele vai gostar de se familiarizar contigo(p. 138) ou noutros casos de artificialismo: “… numa palestra em tributo, concedida junto ao corpo, em breve disponível para ser velado(sic!, p. 49); “curvou a vénia que o protocolo português aconselhava(p. 84); “exercia fidalgia na Casa Real como gentil­‑homem” (p. 129), destoam. O pior ainda é a linguagem brejeira: “levantou o pesado rabo do banco…” (p. 28); “aquele sol directamente na mona …” (p. 117) ou mesmo desbragada: “mandar o arrais bardamerda” (p. 65); “espectáculo de se mijar pelo hábito abaixo(p.104), da qual os exemplos citados, entre muitos outros, são suficientemente esclarecedores.

Acresce que o facto de a trama da história, tal como contada pela Autora, assentar no questionamento da honorabilidade de algumas das concubinas, no caso, pessoas reais, não parece augurar, em Marrocos, o interesse pelo livro, antes pelo contrário. A condizer com esta perspectiva interpretativa, vem a capa do livro insinuando “carnais delícias estivais” num harém imaginário …

Não importa por que razões a Autora optou por não se inteirar dos acontecimentos inseridos num contexto particular, compreender a época, os seus usos e costumes, o estilo da linguagem, etc., todos os ingredientes imprescindíveis para o sucesso da obra que se propusera escrever para resgatar do esquecimento a história “caída nas teias da biblioteca da Academia(p. 235), quando, na verdade, ela foi objecto de vários estudos, alguns bem recentes.

A história do relato de 1793 oferece imenso interesse e talvez, um dia, tenha a sorte de um realizador de cinema se lançar nessa empresa com conhecimento e arte.