SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número34Maria Helena CorrêaFlora Tristán "je dois vous prevenir j'ai idées avancées sur tout" (Tristan, 1980:p.134) índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Indicadores

Links relacionados

  • No hay articulos similaresSimilares en SciELO

Compartir


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.34 Lisboa  2015

 

(AUTO)RETRATO

Maria Clotilde Ferreira - Clô

Mestre Rupa do Yoga

 

 

Se fores ao fim do mundo

Encontrarás o rasto de Deus

E se fores bem dentro de ti

Encontrarás o próprio Deus.

Lao­‑Tsé

 

A prática do kripalu yoga permite­‑nos abordar e suprimir as nossas limitações,limitações essas que nos impedem de fazer a experiência da vida em toda a plenitude e toda a liberdade…

 

Nasci em Olhão a 10 de janeiro de 1924, em casa de meu avô, na avenida principal da vila, hoje cidade. Vim de lá ainda em tenra idade, mas recordo as ferragens trabalhadas das janelas e varandas, caraterísticas das casas do princípio do século XX.

O meu pai tinha emigrado para o Congo Belga e, quando o meu avô faleceu, eu e minha mãe viemos para Lisboa viver com um tio que residia na rua Camilo Castelo Branco, numa casa que ainda hoje existe.

Frequentei a escola de mademoiselle Ferron, onde se aprendia a falar francês. Entretanto, esse meu tio tinha construído uma casa em S. Pedro do Estoril, onde só havia quintas. Mudámo­‑nos para lá quando eu tinha cerca de seis anos. Estudei no Colégio da Bafureira, na Parede, e fazia o trajeto de comboio. Recordo que algumas vezes ia a pé para economizar o dinheiro do bilhete, a fim de comprar alguns livros cuja leitura me transportava a mundos desconhecidos. Não gostava de brincar com bonecas, porque as brincadeiras que proporcionavam não me interessavam. Ora, as bonecas eram os presentes que, naquele tempo, mais se adequavam às meninas. Um amigo do meu pai, em África, veio a Portugal e, quando me visitou trouxe­‑me uma boneca de porcelana, tão linda e tão frágil que a guardei de imediato.

Quando tinha nove anos, fiz o exame de admissão ao liceu. Nessa época, poucas meninas estudavam. O meu pai achou que era altura de eu ir para o Congo Belga “para me casar”, segundo me informou por carta. Claro que eu não queria ir,nem ouvir falar em casamento. Convenci­‑o, então, de que concluiria o curso liceal que terminava no 6.º ano e depois iria.

Quando começou a II Guerra Mundial, em setembro de 1939, tinha 15 anos e já havia concluído os estudos. Pareceu sensato eu ir para o Congo.

 

A estadia em África marca um segundo período da minha vida…

Parti de Lisboa no navio Quanza com os meus pais.Desembarquei em Santo Antóno do Zaire, a norte de Angola. Não havia transportes e vieram buscar­‑nos, de camião, para casa de uns primos em Matadi. Daí, seguimos de comboio para Leopoldville, onde passámos o Natal de 1939, seguindo depois num grande barco para Coquilhatville,donde transitámos para outro barco chegando a Thyssville, onde um dos meus tios nos veio buscar, num barco a motor, para nos conduzir à plantação de Mondjolongo, que ficava no mato junto ao rio Lapori, afluente do rio Congo e em frente à Ilha dos Papagaios.

Foi o iniciar de uma vida completamente diferente, fora dos meios urbanos e cuja população era na totalidade negra com hábitos muito próximos da natureza. Aprendi a valorizar outras vivências. Tornei­‑me muito amiga de uma rapariga da minha idade, a Madeleine, filha de trabalhadores da plantação com quem ia às festas e bailes dos nativos que ali viviam. África levar­‑me­‑ia à descoberta da minha própria energia, sem disso ter consciência naquela altura. Nos três anos e meio que lá vivi plantei palmeiras, aprendi três dialetos e estudei as culturas africanas. De Leopoldville, enviavam­‑me muitos livros.

Numa das vezes que fui à capital, conheci um rapaz que estava a estagiar numa empresa da qual o meu tio e o pai dele eram sócios. Tornámo­‑nos amigos. Entretanto a mãe deleq ue era belga tinha­‑se instalado em Lisboa quando a guerra começou e ele regressou para junto dela. Escreviamo­‑nos e um dia recebi uma carta em que me perguntava “E se nos casássemos?”, à qual respondi “E porque não? ”. Hoje parece estranha esta simplicidade mas foi assim.

Informei o meu pai da decisão, a qual lhe agradou. Voltei a Lisboa repetindo o percurso extenuante da ida. Por indicação do meu pai dirigi­‑me a uma firma que pertencia a amigos dele para obter o dinheiro necessário para as despesas de estadia e casamento verba que o meu pai regularia depois. Um processo quase medieval que era comum por aqueles tempos. Fiquei em casa do meu tio, a quem queria como a um pai, e que sempre me considerou como se fosse sua própria filha.

Casei na minha casa e para a festa só foram convidados familiares. Eu mesma fiz a comida, o noivo comprou lagostas e camarões para cozinhar porque ficava mais barato. Confraternizámos até cerca das cinco horas da tarde e depois saíram todos.

O meu marido trabalhava então na firma Carvalho, Ribeiro & Ferreira que se dedicava ao comércio de importação e exportação. Ganhava mil escudos mensais e não se previa um futuro muito brilhante.

Aquando da passagem de um dos meus primos por Lisboa, mostrei­‑lhe vontade de voltar ao Congo caso ele conseguisse por lá um emprego para o meu marido. Voltámos então para Leopoldville para uma empresa portuguesa de comércio por grosso com a condição de lá permanecermos três anos ininterruptos. Como a empresa recebia muitos clientes tanto do mato congolês como de outras localidades e até estrangeiros dispunha de instalações próprias para alojá­‑los enquanto por lá se demoravam. Como gostava de me ocupar fora de casa lembrei­‑me de me propôr para superintender o alojamento no sentido de tornar as estadias mais confortáveis o que me permitia usar as línguas francesa e inglesa, que dominava, e receber uma remuneração muito aceitável. Tudo corria bem. Tive lá o meu filho aos 24 anos de idade. A minha filha nasceu sete anos depois.

Por volta de 1955, tornaram­‑se mais evidentes os sinais da vontade de independência da colónia por parte dos nativos. O processo de separação foi muito duro durante essa guerra as mulheres e as crianças dos europeus regressaram aos seus países. Eu mandei os meus filhos para casa do meu tio em Lisboa.

Os homens que trabalhavam na empresa ficaram para garantir a segurança. Fiquei com o meu marido e como havia muitos feridos dos confrontos militares ofereci os meus préstimos ao hospital de Leopoldeville. Foi um tempo muito doloroso, tanto para os doentes, como para quem os tratava ou apoiava.

Durante esse tempo, também assisti a reuniões organizadas por partidários da independência do Congo onde se discutiam os problemas políticos e os processos de separação da colónia que envolviam pessoas de ideologias diferentes e por vezes contraditórias. Fiquei três anos em Leopoldville era a única mulher branca gozava da liberdade possível em clima de tensões. Senti­‑me sempre segura não tive problemas com a população local e senti­‑me protegida pela polícia que seguia todos os meus passos.

Em África, havia então doenças graves, como o paludismo e a tuberculose. Quando se deu a independência, em 30 de junho de 1960, não ficaram estruturas sanitárias para tratar estes males. O meu marido tuberculizou e veio para Portugal para se tratar. Só viveu três meses, faleceu ajudado pela prática de yoga, durante os últimos tempos.

Fiquei viúva com dois filhos numa situação económica confortável.

 

O yoga como percurso de vida

Foi em África que tive o primeiro contacto com o yoga através do meu médico, que era praticante. Desde logo, intuí que seria uma prática útil naquele momento e para toda a minha vida. Mostrei­‑me entusiasmada e ele referiu­‑me André Van Lysebett, em Bruxelas. Eu praticava yoga para bem­‑estar pessoal.

Quando regressei a Lisboa, procurei continuar os exercícios de yoga e encontrei nesse caminho a Maria Helena de Freitas Branco que foi a minha primeira professora. Quando o atual Ginásio Club Português das Amoreiras abriu fizemo­‑nos sócias, ela como professora e eu como aluna.

Um dia depois de uma meditação, a Maria Helena testou­‑nos a todos para aferir quem tinha mais capacidade para se exprimir sobre um assunto que escolheu e convidou todos a pronunciarem­‑se. Estava a selecionar uma professora e fui a eleita. Hesitei em aceitar pesando como conciliar responsabilidades familiares, tempo e dinheiro para estudar porque era necessário tirar um curso adequado em Bruxelas. Aceditei e tive o apoio financeiro dos meus amigos belgas e a ajuda dos conhecimentos da Maria Helena de Freitas Branco.

Fiz um curso em que os livros e a orientação vinham da Bélgica com exames de provas escritas e orais porque o yoga envolve também comunicação e persuasão. Recordo uma professora alemã, então com cerca de 60 anos, que propôs uma aula para pessoas mais velhas. Foram de tal modo importantes os conhecimentos que passou, que, agora, posso melhor compreeendê­‑los e aproveitá­‑los para mim e para os alunos.

Acabado o curso passei a lecionar. Recordo o trabalho que desenvolvi com crianças entre os cinco e os sete anos. Para avaliar os efeitos do yoga nos alunos dividimos uma classe entre praticantes e não praticantes do yoga. O aproveitamento mostrou­‑se superior entre os praticantes o que me interessou bastante.

Ao mesmo tempo, dei aulas a deficientes. Foi uma experiência extraordinária, o representante da Associação dos deficientes era tetraplégico e conseguia fazer toda a aula de yoga mentalmente.

Em Bruxelas inseri­‑me num grupo de 25 pessoas com idênticos interesses. Orientados pelo Mestre Gerard Blitz organizámos um seminário em Zinal, na Suiça, a 3000 metros de altitude, em que decidimos ser ponto de encontro para um congresso destinado a yoguistas de todo o mundo a realizar em agosto de cada ano. Foi um sucesso, tem vindo a aumentar o número de adeptos e a participação de praticantes de yoga de reconhecido mérito internacional.

Trabalhei então com os Mestres Yenghar, Sathyamanda e Satchisananda.

Num dos seminários conheci pessoalmente o Yogy Amrit Desai (Gurudev) indiano e logo senti que seria o Mestre que eu queria para me orientar pessoal e profissionalmente. Disse­‑lhe que gostaria que ele fosse o meu Mestre. Lamentei, no entanto, as condições económicas que dificultavam uma deslocação aos EUA onde ele trabalhava. Respondeu­‑me simplesmente: “Quando estiveres pronta o dinheiro aparecerá! ”.

Durante cinco anos trabalhei o kripalu yoga para compreender os seus ensinamentos. Para mim o kripalu yoga consiste em aprender a eliminar a agitação mental e através da energia chegar às posturas. Nesta prática, é o movimento que permite a meditação porque é utilizado para ligar o mental e o corpo fazendo­‑o participar nas sensações na nossa experiência interior. O kripalu yoga propõe uma prática holística que inclui o físico e o psíquico de maneira a ser encontrada a unidade.

Ao fim de cinco anos cumpria­‑se a “profecia ” de Gurudev e fui para os EUA com viagem paga pela Agência Abreu e estadia a expensas do Ginásio Club Português. Tirei o mestrado em prânayâma1 no Kripalu Center, em Lennox, perto de Boston. Gurudev aceitou­‑me como sua discípula e deu­‑me o nome de Rupa que significa energia,força.

Há entre mim e Gurudev uma comunicação profunda: sinto o meu Mestre com o coração, o centro do amor, proporcionando a sua presença energética e subtil existente em todos os momentos. Senti desde então que o meu trabalho se devia pautar pelo coração e não pela mente e nesse sentido sigo a sua orientação, embora adaptada à minha experiência pessoal como professora e como yoguista.

Participo, desde o seu início, nos congressos da Union Européenne de Yoga, em Zinal e,em 2005,convidaram­‑me para dar aulas. Fiz duas conferências e dei cinco aulas integradas no tema O yoga e a Consciência Social proposto para esse ano. Para a primeira conferência escolhi falar de Paz,ambiente e meio social e na segunda sobre yoga: ciência e alma.

Em outubro de 2006, a International Yoga Federation conferiu­‑me to Mestre Rupa the degree of the World Wide Yoga Concil.

Em dado momento, achei útil reunir as lições e publicá­‑las sob forma de livro ilustrado com figuras explicativas de posturas de yoga dirigido a professores, alunos e interessados acerca do que é o yoga e as atitudes que tornam a vida mais enérgica2.

 

Como remediar o sofrimento moral e físico que tenho de suportar?

Esta é a pergunta que fazemos a nós próprios quando estamos na eminência de uma operação que sabemos dolorosa. Já com 90 anos necessitei de próteses em ambas as ancas. Fui operada no Hospital da Parede pelo Dr. Carlos Evangelista um médico extraordinário tanto como clínico como no relacionamento humano. Fiz uma intervenção que em geral vamos adiando devido ao sofrimento que causa a recuperação.

Posso afirmar que tudo correu muito bem, recuperei e continuo a dar as minhas aulas no Ginásio embora com horário mais reduzido, não por minha escolha, mas porque julgam ser agora melhor para mim. Continuo também com as alunas de muitos anos por quem nutro grande amizade e que sempre me apoiaram.

Recentemente, o programa da manhã da RTP dedicou um espaço para informar acerca dos problemas de mobilidade dos idosos, com incidência nas operações à anca, para o qual convidou o Dr. Carlos Evangelista que explicou, por imagens, a técnica de implantação das próteses e evidenciou a sua importância na vida quotidiana dos operados.

Fui uma das pessoas convidadas que fizeram com êxito estas intervenções cirúrgicas o que me permitiu testemunhar a ajuda da prática do yoga na recuperação pós­‑operatória desta e de outras intervenções. Até contei um episódio engraçado que se passou no Hospital da Parede onde fiz a recuperação. Levantei­‑me fui ao jardim fazer a minha meditação matinal e quando a enfermeira foi ao quarto, e não me viu, ficou tão preocupada que telefonou a uma pessoa da minha família sobre a minha imprevisível ausência. Quando regressei pelo meu pé do jardim nem queriam acreditar. Tenho consciência de que sem o yoga seria bem mais difícil a recuperação.

Enquanto estive no hospital, aproveitei para ensinar a respirar às pessoas que estavam à minha volta falar­‑lhes da importância desse exercício e outros como o caso da influência da postura nas posições de sentadas e deitadas na qualidade de vida em qualquer idade.

No dia Mundial do Yoga, que se comemorou a 21 de junho deste ano, houve no Estádio Moniz Pereira um encontro presidido pelo Mestre Veiga e Castro, da Confederação Portugesa de Yoga, que reuniu pessoas de todas as nações e que, num dado momento, foram chamadas ao palco. Por insistência do Mestre também fui e estive uma hora de pé, enquanto todos, eu inclusivé,demos testemunho dos nossos percursos pessoais profissionais e até internacionais enquanto yoguistas.

Quero deixar uma mensagem às mulheres de todas as idades. Em qualquer época da vida, na saúde, na gravidez, na doença ou nas limitações que a idade sempre traz, a disciplina que envolve a respiração, a postura do corpo, a concentração e a meditação as quais o yoga proporciona, é salutar e traz a felicidade.

Constatei, durante a minha carreira profissional, que há mais mulheres a praticar yoga e são mais assíduas às aulas.

Continuo a lecionar no Ginásio Clube Português, a minha segunda casa há 42 anos.

 

OM Shanti,Shanti,Shanti – Paz, Paz, Paz.

Lisboa, 2 de julho de 2015

 

Notas

1A palavra prânayâma é composta por prâna, força do Criador (segundo os Vedas) e ayâma, o movimento para ir em direção ao Criador (movimento espontâneo), ou seja, define-se como meio de encontrar o Criador. A maneira física de ir em direção ao Criador é a respiração e a respiração é vida. A prática de prânayâma pressupõe a aprendizagem da forma concreta de respirar.

2Ferreira, C.(2007). O Yoga na nossa vida. Cascais: Arteplural edições.