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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.34 Lisboa  2015

 

PIONEIRAS

Maria Helena Corrêa

 

 

Maria José Remédios e Natividade Monteiro1


A Liberdade

A mensagem escrita tem data

Foi dita e redita por muitas gerações

De mulheres submissas

De mulheres maltratadas

Que tinham de seu a medida linear

Da vida consentida e não querida

Muito pensadas e mal amadas

Todas sentiram o doce amargo das coisas

No dia e na hora da mudança

Do tempo em que nada se passava

Para o renascer do dia.

E o silêncio deu lugar à liberdade.

Maria Helena Corrêa

 

Liberdade! Palavra mágica para Maria Helena Corrêa, nascida em Lisboa em 17 de Janeiro de 1932, na quinta dos avós maternos, situada no Lumiar, freguesia que, naquela época, apesar do Paço, palacetes e jardins que a enobreciam, era ainda muito ruralizada. O contacto com a natureza e o convívio com os grandes espaços contribuíram para o seu espírito livre, gosto pela aventura das viagens e prazer de conhecer outras gentes e culturas. Defensora dos princípios e valores republicanos, valoriza a educação pela arte, a igualdade de direitos e oportunidades, o diálogo intercultural e a participação cívica de homens e mulheres na sociedade democrática.

Maria Helena é presidente da Comissão Permanente dos Centros Republicanos, a primeira mulher a ocupar o cargo, após o desaparecimento de Ramón de la Féria. Foi directora do República e co-fundadora e presidente da Associação de Mulheres Socialistas.

 

Revele-nos as suas origens, a sua infância.

Nasci numa família de classe média, fui a terceira filha do casal, Lucinda Braz Pessoa M. B. Corrêa e Joaquim Mendes Belo Corrêa. O meu pai era médico da Marinha, mas ganhava pouco, pelo que a família, antes do meu nascimento, mudou-se para a quinta dos pais da minha mãe. O meu avô era um homem de negócios, bem sucedido, originário de Gouveia e com ligações à elite republicana e maçónica.

Fiquei órfã de mãe aos dois anos, continuando a viver com os avós, rodeada de mimos, sobretudo da minha avó e das tias. Quando eu tinha cinco anos e meio, o meu pai, que casara novamente e tivera mais uma filha, foi buscar-me. Esta mudança revoltou-me muito. Sentia-me espoliada do meu mundo vivencial. Frequentei várias escolas, uma mista, perto de casa, que tive de abandonar devido à lei da separação dos sexos, promovida pelo Estado Novo; depois, o Colégio Valsassina, o Colégio das Doroteias e, por fim, o Colégio de S. José. Não era uma aluna exemplar. Gostava de Línguas, Literatura, História, Geografia e Artes, mas não acertava com a Matemática. Entretanto, comecei a aperceber-me da realidade familiar e social. O meu pai, que era um homem autoritário e conservador, cortou relações com a família da minha mãe, não permitindo que os filhos a contactassem e quando se apercebeu do meu primeiro e inocente namorico, transferiu-me para o Colégio das Doroteias. Sentia-me completamente deslocada no ambiente do colégio. As freiras eram severas e todo aquele ritual da farda preta, dos prémios para as boas alunas e dos castigos para quem se portava pior, era-me estranho. É também por esta altura que me apercebi da presença dos judeus que chegavam a Portugal, devido às perseguições nazis. No colégio, ouviam-se histórias das dificuldades e do sofrimento dessa gente que atravessava a fronteira em busca da salvação e as freiras salientavam o facto de receberem alunas judias, o que, naquelas circunstâncias, mostrava compaixão e alguma abertura. As dominicanas, onde estive interna, mostraram alguma sensibilidade pela minha situação, permitindo que as minhas tias me visitassem às escondidas do meu pai.

Viviam-se os tempos sombrios da Guerra Civil Espanhola e, a seguir, os da II Guerra Mundial. Lá em casa, apesar de o meu pai não se definir politicamente, ouvia-se a BBC, o Fernando Pessa, às escondidas. O meu pai era um mistério! Nunca se pronunciou a favor ou contra o Estado Novo. Ele era obrigado a ir às paradas militares, a acompanhar presos políticos deportados para África e a votar, mas permitia que eu fosse dispensada das actividades da Mocidade Portuguesa. Ele, na sua juventude, pretendeu ser músico. Mas tal veleidade num jovem, filho de um advogado de Gouveia, vila perdida na Beira, e de uma sobrinha-neta do Cardeal Patriarca António Mendes Belo, era, à partida, pouco viável. Pessoa muito inteligente e culta, médico extraordinário, mas humanamente frágil.

Morámos na Rua Pinheiro Chagas e em frente ao nosso prédio vivia uma família de judeus, fugidos da Alemanha, com crianças da minha idade e do meu irmão. Os alemães tinham brinquedos extraordinários, cujos modelos o meu irmão copiava em madeira e cartão. A propaganda nazi e as notícias da guerra no cinema influenciavam as nossas brincadeiras. Brincávamos às guerras, no corredor, com tanques, submarinos, aviões e telefones, inventados por nós. Eu desenhava, pintava e recortava os soldados em papel vegetal e depois projectávamos as imagens na parede, como se fosse um filme. Lembro-me, ainda, o que me marcaria, de ver alguns dos foragidos a comer um pão duro e negro, como nunca tinha visto. Essas pessoas, que chegavam aqui sem nada, viviam à nossa volta e aí comecei a aperceber-me do mundo.

 

Os valores republicanos que professa foram-lhe transmitidos pelo ambiente familiar ou foram adquiridos ao longo da vida pela socialização, a convivência ou o exercício da docência?

Desde pequena que prezo muito a liberdade. O meu avô paterno, antes de tirar o curso de Direito, estudou num seminário e já estava no último ano quando conheceu a minha avó e se apaixonou. Quando passávamos as férias em casa dele, que era a casa do senhor Cardeal Patriarca Mendes Belo e que este doara à sobrinha, minha avó, obrigava-nos a recitar as orações em latim, francês e português. Contudo, ele dizia-me que tinha de tirar um curso para ser livre. Foi o meu inspirador. Além disso, em frente de nós, tínhamos o Centro Republicano Pedro Botto Machado. Lembro-me dos ensaios da Banda Filarmónica, todas as noites. O meu avô foi não só colega de curso como amigo de Afonso Costa, apesar de professarem ideologias diferentes. Teve um papel importante na solução do problema causado pelo exílio do Cardeal Patriarca de Lisboa, em Gouveia. Aliás, Afonso Costa chegou a convidar o meu avô para deputado, mas ele recusou porque não quis abandonar a profissão e por saber que seria ingrato ser deputado republicano em tempos de exacerbado anticlericalismo, sendo ele, além de homem crente, familiar do Cardeal Patriarca.

 

Fale-nos do seu percurso académico e profissional.

O meu percurso académico foi atribulado. Estudei sempre em colégios particulares, saltando de um lado para o outro, o que emocionalmente era desestabilizador, porque não se criavam raízes nem se preservam amizades. Sempre quis ir para a Universidade, para fazer o curso de História, mas o meu pai não permitiu que continuasse os estudos. Ingressei no Conservatório porque já estudava música e aí encontrei pessoas extraordinárias, entre elas, uma senhora que dava lições particulares de piano e que era prima do Mário Soares. Falávamos muito da família Soares e, poder-se-á dizer, daí ficou o “bichinho da política”. No 3.º ano de piano, encontrei Maria Cristina Lino Pimentel, a filha do arquitecto Raúl Lino, uma professora extraordinária e uma grande amiga. Com 21 anos, decidi afirmar a minha maioridade junto do meu pai.

Anunciei-lhe que iria retomar o contacto com as minhas tias, após dez anos de afastamento forçado, e em seguida, viajar por Itália. Convidei a minha professora de piano e amiga e fiz a primeira viagem cultural e emancipadora. A segunda viagem esteve relacionada com o estudo do francês. Fui para Pau, aí conheci uma jovem holandesa que me convidou para visitar a família. Quando cheguei a um castelo na Holanda, nem queria acreditar, fiquei assombrada com o estatuto social da minha amiga. A partir daí, viajei muito. Tinha necessidade de alargar horizontes. Eu era muito tímida. Fiz-me professora de música do ensino particular, casei com um argentino, tive três filhos, construí uma casa de família, com a herança da minha mãe e dos meus avós, e separei-me quinze anos depois.

Após o 25 de Abril, empenhei-me na política. Ainda me matriculei na Universidade Clássica de Lisboa, em Filosofia e, mais tarde, na Universidade Nova, em Ciências Musicais, mas os tempos conturbados da Revolução e as exigências da vida familiar e profissional – trabalhava em vários colégios, dava aulas particulares e ainda ensinava no curso de educadora da Associação de Jardins de Infância João de Deus – não permitiam o sossego necessário aos estudos. Em 1974, antes ainda do 1.º de Maio, filiei-me no Partido Socialista e inscrevi-me na secção de trabalho da educação e na dos direitos das mulheres. Conheci gente extraordinária, mas comecei a perceber que, na realidade, pouco se fazia pela efectiva promoção dos direitos das mulheres. Eram as próprias mulheres que não queriam trabalhar pela causa das mulheres. Tinham uma imagem negativa delas próprias. Com Teresa Azevedo Gomes, neta de Afonso Costa, Madalena Barbosa, Áurea Rego, entre outras, trabalhei, por esta causa nos alvores da Revolução de Abril. Em 1987, eu e Áurea Rego, Maria do Carmo Romão, Maria da Conceição Tito de Morais Pires e Maryvone Campinos, entre outras, fundámos a Associação de Mulheres Socialistas, associação autónoma do Partido Socialista, que visa a efectiva igualdade de direitos e oportunidades e a equitativa participação das mulheres nas organizações nacionais e internacionais ligadas à promoção dos Direitos Humanos, do Desenvolvimento e da Paz. Para o efeito, promovemos seminários, conferências e mesas redondas, em várias cidades do país, visando a troca de experiências, o debate de ideias e a reflexão sobre a valorização das mulheres na política, os desafios do futuro em democracia, a educação, a cidadania, a paridade, o emprego, a pobreza, a emigração, entre muitos outros temas de interesse para a construção da igualdade no processo democrático. Apostámos também na realização de encontros de mulheres, quer nacionais quer internacionais. Realizámos ainda visitas culturais pelo país e pelo estrangeiro. Como presidente, participei na criação do lobby internacional das mulheres.

 

Conte-nos como sucedeu a Ramón de la Féria na missão de preservar e dinamizar os Centros Republicanos...

Conheci no Partido Socialista a Raquel Reis, professora de Matemática que se havia doutorado na Hungria, e que desenvolveu em Portugal a Educação pela Arte, projecto iniciado por Alice Gomes, Maria Barroso e Marinela Valsassina, entre outras. Nessa altura, estava eu no Ministério da Educação, a trabalhar com Sottomayor Cardia e Romero de Magalhães. Com a Marinela Valsassina e outras pessoas, desenvolvemos o primeiro Estatuto da Carreira de Educadores de Infância. Liguei-me afincadamente ao projecto da Educação pela Arte, dedicando-me à vertente da música, da educação infantil até à Universidade. Preparei um documento que foi entregue à Madalena Azeredo Perdigão, na altura, assessora do Ministro da Educação. A Raquel Reis pertencia à direcção dos Centros Republicanos e assim conheci também o presidente Ramón de la Féria que, entretanto, aderiu ao Partido Socialista. Os nossos laços intensificam-se – a saúde e a educação andam associadas – e reforçam-se, dado ele e o meu irmão serem médicos no mesmo hospital e estimarem-se. As lutas pelo protagonismo dentro do partido desgostam-me e eu vou-me afastando da militância activa e passo a dedicar-me ao trabalho nos Centros Republicanos. O Ramón apercebe-se que eu, além de ter um espírito republicano, tinha a força necessária para continuar este projecto e convidou-me para integrar a direcção. Comecei a trabalhar no Centro Escolar Republicano Almirante Reis e depois no Centro Botto Machado para solucionar um problema. Uma escola profissional que estava a surgir e que ainda tentara funcionar no Almirante Reis, mas o espaço era reduzido, viria a instalar-se no Botto Machado. Entretanto, a direcção da escola veio a apropriar-se, indevidamente, de todo o espaço, impondo o fim do Centro Escolar Republicano.

 

Foi também directora do jornal ‘República', fundado em 1911, por António José de Almeida para difundir os valores do republicanismo laico e democrático. Fale-nos dessa sua experiência.

Eu fui com o Ramón a casa do Raúl Rego para conversarmos sobre a reedição do jornal, preservando-se a sua identidade. O jornal República ainda foi publicado durante cinco ou seis anos. Inicialmente, era publicado trimestralmente, depois passou para semestral e, por fim, era anual. As pessoas que apoiaram esse projecto foram envelhecendo e afastando-se, o próprio Ramón adoeceu e eu, quando ele morreu, assumi a direcção. Ainda se publicou alguns anos. Acontece que, sozinha, não tinha meios para o manter e, entretanto, perdeu-se o direito a usar o nome do jornal.

 

Em 1910, o Partido Republicano contava com mais de 170 Centros Republicanos no continente, ilhas, colónias e Brasil e com uma população escolar que ultrapassava os 4100 alunos. Após um século, quantos Centros Republicanos ainda existem e que actividades desenvolvem?

Como sabem, cada centro tinha os seus estatutos. Viviam muito da ligação à população. Processaram-se grandes alterações na sociedade que interferiram na vida dos Centros Republicanos. Primeiro, a queda da República e a instauração de um regime autoritário que se opunha à liberdade de pensamento e de reunião e a outros princípios que sustentavam o ideário republicano. Depois do 25 de Abril, temos de reconhecer que os Centros não satisfaziam os requisitos necessários à construção de uma escola da modernidade. Mesmo assim, houve governos que os subsidiaram, pois reconheciam o papel que eles tinham dado em prol da educação e o que ainda poderiam oferecer, devido à falta de escolas.

No Centro Escolar Republicano Almirante Reis, tenho o espólio do Centro Botto Machado, que funcionava na Rua do Paraíso, e a cujo encerramento já me referi, e do Alferes Malheiro, que estava instalado no Campo Grande. O centro que continua a manter a tradição da oferta escolar é o Grémio de Instrução Liberal de Campo de Ourique. Graças ao dinamismo do seu director, o José Baptista, conseguiu adaptar-se às novas modalidades do ensino, disponibilizando, num edifício adaptado para o efeito, além de uma creche com berçário, o ensino pré-escolar e o curso do ensino básico, a par de um conjunto de actividades extracurriculares. A escola pública foi-se implementando no país, proporcionando a escolaridade a todas as crianças. Os Centros Republicanos deixam de ter a missão de escolarizar a população. Hoje, além do Centro Republicano Almirante Reis e do Grémio de Instrução Liberal de Campo de Ourique, continuam a funcionar o Centro Escolar Republicano da Ajuda, que teve de mudar de instalações, o Centro Republicano Dr. Magalhães Lima, em Alfama, o Centro Republicano Alberto Costa, em Santa Apolónia, e o Centro Tenente Valdez, na Paiã. Existem ainda, espalhados pelo país: o Centro Democrático de Instrução Latino Coelho (Vila Nova de Gaia); o Centro Republicano e Democrático de Fânzeres (Gondomar); a Associação Social Recreativa Republicana Guerra Junqueiro (Matosinhos); o Centro Republicano Pedro Botto Machado (Gouveia). Alguns destes centros oferecem aos associados actividades de lazer. Uma das formas encontradas pelos centros republicanos para a sobrevivência, durante o Estado Novo, foi a oferta de actividades de lazer, digamos travestirem-se em centros de carácter recreativo. Isso não quer dizer que muitos não tivessem continuado a oferecer salas de aulas – o caso do Almirante Reis, do Botto Machado e do Tenente Malheiros, entre outros –, até depois do 25 de Abril ainda o fizeram, assumindo a vertente de associações de ensino particular. Não obstante, mesmo durante o salazarismo, envolveram-se na oposição democrática ao Estado Novo, cedendo as instalações para a realização de reuniões/encontros políticos. A reunião fundadora do MUD (Movimento de Unidade Democrática) ocorreu, em 8 de Outubro de 1945, no Centro Almirante Reis e a sessão eleitoral da candidatura de Norton de Matos, de 28 de Janeiro de 1949, decorreu no Centro Fernão Botto Machado.

Actualmente, no Centro Almirante Reis, desenvolvemos actividades culturais e cívicas. Fazemos conferências sobre a República e a Democracia. Na comemoração do 5 de Outubro, organizamos um almoço ou jantar, no qual participam alguns centros. Também estivemos presentes nas exposições “Educar. Educação para todos. Ensino na I República”, quando das comemorações da implantação da República, e na do centenário da Universidade de Lisboa. Assumimos que temos um papel fundamental a desempenhar: preservar a memória. No 5 de Outubro, organizamos também uma romagem ao monumento de homenagem aos heróis anónimos da cidade de Lisboa, discursando uma figura da cultura portuguesa, aos túmulos dos vultos da revolução republicana, entre eles Machado Santos, e com uma oração de sapiência junto dos de Miguel Bombarda e Almirante Reis e, nos últimos anos, acrescentámos o de Adelaide Cabete. Nesta ida ao Cemitério do Alto de S. João, relembramos todos aqueles que nos acompanharam, ao longo de anos, e que a morte já levou. O Centro Almirante Reis continua a oferecer aos sócios um pequeno bar, onde podem confraternizar. Cedemos ainda o seu espaço para funcionarem associações amigas e os associados realizarem festas. Alimento, ainda, a ideia de criar ali um pequeno museu dos centros republicanos.

 

No auge da propaganda republicana, Manuel de Arriaga chamava aos Centros Republicanos “capelinhas da liberdade”; Fernão Botto Machado desejava ver um Centro Republicano em cada bairro e Maria Veleda escrevia que, multiplicar os Centros Republicanos, baluartes da escola laica, era preparar as gerações futuras para a grande revolução social que faria triunfar os humildes. Fale-nos da importância dos Centros Escolares Republicanos num país que entrou no século XX com cerca de 80% de analfabetos.

Esqueceu-se um pouco a história dos Centros Republicanos. A sua história tem de ser lembrada. Os centros estavam sempre nos bairros mais pobres e tinham uma missão muito importante – a instrução e a educação cívica dos associados e dos filhos destes –, incrementando o laicismo. Tinham uma visão muito interessante do ser humano, a qual tinha de ser cuidada pela educação – o ideal da mente sã em corpo são. Assim, todas as escolas tinham um espaço para a prática do exercício físico. Nesta linha, promoviam, pelo menos uma vez no ano, um piquenique para os associados e sua família. Às crianças, era oferecido um ensino activo, no qual se privilegiavam as visitas de estudo, os passeios, o contacto directo com a natureza e os teatrinhos. A celebração do Dia da Árvore era uma regra, bem como a Caixa de Solidariedade. Havia um projecto pedagógico inspirado em importantes pedagogos, como Montessori, privilegiando a autonomia e a sensibilidade da criança, e Ferrer, apostando numa educação livre e solidária. Mais tarde, muitas das escolas inscrever-se-iam no movimento da Escola Moderna, adoptando a metodologia de Freinet. Fazia-se um ensino inovador. Temos de ter consciência que elas competiam com as escolas pertença de associações da Igreja. Os centros disponibilizavam ainda lições aos sócios não alfabetizados e sessões de formação cívica/política. A história dos centros está por fazer. Apesar da investigação realizada pela Dra. Célia Pestana, sobre o Centro Escolar Republicano Almirante Reis, os centros no seu conjunto não foram estudados. Há um trabalho a ser realizado, ainda que tenha chegado até nós um reduzido número de documentos. Se alguma documentação foi destruída, depois da queda da República, alguns arquivos devem ter sido guardados nas casas das pessoas ligadas à direcção dos centros e depois ter-se-ão perdido, assim como não podemos ignorar que, durante o Estado Novo, privados os cidadãos de liberdade de expressão, os documentos rareiam, as actas, por exemplo, são lacónicas, a fim de não se comprometer os intervenientes nas sessões.

 

Os Centros Republicanos foram a vanguarda da revolução e as feministas tiveram aí um papel importante como professoras, oradoras e dinamizadoras de cursos nocturnos, ciclos de conferências, visitas de estudo, romagens e manifestações cívicas. Quer acrescentar algo sobre estas mulheres?

Estas mulheres republicanas, algumas delas professoras, eram, na maioria dos casos, autodidactas. Elas não tinham frequentado nem os liceus, nem a universidade, à excepção da Adelaide Cabete que tirou o curso de Medicina. É interessante pensar que nas últimas décadas de Oitocentos, um conjunto significativo de meninas frequentavam colégios de freiras, geralmente estrangeiras. As minhas tias e a minha mãe saíram de Gouveia para estudar num colégio de freiras alemãs, no Porto, que fechou quando da I Guerra Mundial. Depois frequentaram, em Lisboa, o Colégio do Bom Sucesso, de freiras irlandesas, onde aprenderam a língua inglesa, a seguir à alemã. Foi o pai que as mandou para o colégio, percebendo as mudanças sociais que se estavam a registar. Voltando às professoras republicanas, temos de dizer que elas foram também apoiantes e propagandistas do ideal republicano. É necessário divulgar o nome destas mulheres. É preciso perceber o que significava ser republicana, quando o regime se implementou e até antes da revolução. Ser republicana depois do 25 de Abril é facílimo. Mas, mais, é importantíssimo compreender o que é ser mulher. As mulheres não gostavam de trabalhar para a causa das mulheres, achavam que isso as menosprezava. No passado, elas queriam ser senhoras, ser mulher inferiorizava-as.

 

Em que moldes o pioneirismo das feministas republicanas pode constituir um exemplo de um incentivo aos combates dos feminismos actuais?

Desde criança, tive o sentido que tínhamos de ser livres e para atingir essa liberdade tínhamos de nos empenhar em conquistá-la, não só para nós, mas também para os outros. Intuí que tinha de fazer algo para ser eu própria e para os outros serem eles mesmos. Há que compreender que não podemos estar isoladas no mundo. Reparem que essas mulheres republicanas, de quem falamos, formaram organizações e associaram-se. Temos de ser livres e fraternas. A maior parte das mulheres, enquanto tem o seu emprego, considera que não há problema nenhum com o facto de ser mulher. Quando o perdem é que descobrem o que é a discriminação. A vidinha, para muitas mulheres, é fácil; melhor, aparentemente fácil. O facilitismo é, sem dúvida, muito perigoso. Não têm consciência do que é ser mulher; só despertam para essa realidade quando têm conflitos laborais ou familiares. Para as jovens, hoje, enquanto não vivem o primeiro embate com a realidade, é tudo um “mar de rosas”. Nós, apesar de o mundo ser fechado, líamos muito, o que nos dava uma visão mais ampla da condição humana.