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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.34 Lisboa  2015

 

ENTREVISTAS

Marilia Lucília Estanco Louro

 

 

Ilda Abreu e Maria José Remédios

 

Licenciada em Ciências Histórico­‑Filosóficas pela Universidade de Lisboa, dedicou a vida a atividades pedagógicas de natureza diversificada. Enquanto cidadã, pertenceu à Associação Feminina Portuguesa para a Paz, movimento que tinha como objetivo a emancipação feminina e a educação na esfera familiar para o valor do pacifismo.

A atenção aos constrangimentos políticos do país, desde 1940, tornou­‑a participante nas atividades do Partido Comunista Português, no qual se filiou na década de 70. Orgulha­‑se de ter subscrito as listas da Oposição Democrática, aquando da campanha de Humberto Delgado para Presidente da República.

Pertenceu ainda à Associação de Amizade Portugal – Cuba e participou nas actividades desenvolvidas pelo Conselho Português para a Paz e Cooperação. Hoje, aos 93 anos, mantém a ideologia que estruturou a sua vida.

Num agradável encontro de fim de tarde, em casa de Maria Lucília Estanco, partilhámos com ela memórias, onde transparece o desejo de viver apaixonadamente a vida.

 

Disse o poeta seu vizinho1 “O que é o presente? / É uma coisa relativa ao passado e ao futuro. / É uma coisa que existe en virtude de outras coisas existirem.”2

 

Comecemos então pelo passado...

Nasci em Beja a 27 de janeiro de 1922, quando o meu pai ali lecionava no Liceu e exercia a advocacia. Esperava­‑se que nascesse dia 31, no aniversário da primeira revolta republicana, que eclodiu no Porto, a 31 de janeiro de 1891. Para uma família republicana, era uma data importante. Mas houve uma grande tempestade, em Beja, a minha mãe assustou­‑se muito e eu nasci mais cedo.

Foram meus pais Manuel Francisco Estanco Louro (1890­‑1953) e Albertina Emília Freire (1898­‑1971).

Quando eu tinha dois anos, viemos para Lisboa, onde nasceu o meu único irmão. Viveu connosco a minha madrinha/”avó” materna até 1948, data em que faleceu. Em Lisboa, o meu pai ficou colocado no Liceu Pedro Nunes e deixou de exercer a advocacia, por não ter meios para montar escritório.

A minha mãe, embora tendo frequentado o curso de Filologia Clássica até ao fim, só lhe faltando concluir a tese, era dona de casa. Cresci numa família da média burguesia, com um bom nível cultural.

 

Os seus pais foram contemporâneos no Curso Superior de Letras?

Sim. Chegaram, no entanto, ao ensino superior com percursos bem diversos. O meu pai era de Alportel, concelho de S. Brás de Alportel, no Algarve. Vinha de uma família modesta de pequenos proprietários rurais que trabalhavam a terra, com oito filhos. Na escola primária, o meu pai distinguiu­‑se pela inteligência e o padre da terra influenciou os meus avós para o deixarem ir para o Seminário de Faro. Naquele tempo, era importante, para uma família, ter um elemento padre ou advogado.

Mas por volta dos 14 anos, o meu pai reconheceu que não tinha vocação para ser padre e fugiu do Seminário. Esta fuga foi mal recebida pelos pais, que o obrigaram a trabalhar a terra e, como não estava habituado, ficavam­‑lhe as mãos ensanguentadas. Decidiu que não podia, nem queria, permanecer em casa dos pais.

Não sei pormenores, mas sei que regressou a Faro, onde dava explicações, enquanto cursava o ensino liceal.

Acabado o curso liceal, feito em dois anos, contraiu um empréstimo junto de um familiar, a juros altíssimos, e matriculou­‑ se no curso de Filologia Românica da Faculdade de Letras de Lisboa. Ainda no curso, foi mobilizado para a Guerra de 14­‑18, como oficial miliciano [interrompe o discurso para mostrar um retrato do pai com a farda de oficial miliciano]. Antes de ir para a guerra, baseado na formação académica, tentou um lugar nos serviços administrativos do exército, mas foi­‑lhe negado. Esteve na Flandres e foi um dos sobreviventes da batalha de La Lys, por ele narrada num documento publicado pela revista Ler História3.

 

Como mulher, a vida da sua mãe foi bem diferente...

A minha avó materna faleceu de parto e a minha mãe ficou apenas com o pai, que tinha uma profissão que o obrigava a viagens frequentes. Numa dessas ausências, deixou a minha mãe, então com cerca de dois anos, com uma família amiga de dois irmãos solteirões, Ana Gomes de Almeida e António Gomes de Almeida, que se afeiçoaram imediatamente a ela. Quiseram­‑na, funcionando como seus pais e, mais tarde, foram os meus padrinhos e também do meu irmão.

O meu padrinho era secretário dum empresário, Manuel Martins – conhecido como o Martins das carnes.

 

Como lembrava a sua mãe, esses anos de convívio familiar?

Como de uma verdadeira família. A minha “avó” esteve sempre connosco e ajudou­‑nos a criar, porque a minha mãe era uma pessoa de saúde muito frágil, teve tuberculose, tinha úlceras no estômago e fez várias operações. Sofreu bastante fisicamente. Afinal, sobreviveu ao meu pai, faleceu em 1971 e ele tinha falecido em 1953.

Na vida privada, o meu “avô” era um homem de cultura, um melómano e motivava a minha mãe para frequentar exposições, conferências e eventos musicais. Até ao fim da vida, a minha mãe foi uma apaixonada por ópera, ainda tenho programas de récitas de grandes cantores, como o Caruso, realizadas no Coliseu.

 

Disse que a sua mãe frequentou o curso de Filologia Clássica. Não acabou o curso?

Na Faculdade, os meus pais tinham cadeiras em comum. Começaram a namorar e o padrinho, quando soube, decidiu que “namorar é para casar”. A minha mãe, a um mês de completar a licenciatura em Filologia Clássica, saiu da Faculdade e casou.

 

A negação da liberdade tem graus, alguns sob a forma de cuidar e de amar...

O padrinho agiu por excesso de zelo e o meu pai como um noivo que se queria casar. A minha mãe acatou e casou em 1921, com 21 anos. O meu pai estava a estagiar no Liceu Pedro Nunes, o casamento foi na Basílica da Estrela e os alunos estenderam a capa de estudante, desde o largo da Estrela até à porta da igreja, para os noivos passarem.

A vida da minha mãe foi completamente atraiçoada por duas pessoas que a amaram muito e a quem ela tanto amou. A fuga foi não se deixar ficar por uma dona de casa, que era na perfeição, mas continuar a interessar­‑se pela cultura. Acompanhava os filhos nos estudos, a mim ajudou­‑me muito no estudo do latim. Continuou a privar com colegas da Faculdade, entre elas, Margarida Silva, reitora do Liceu D. Filipa de Lencastre, durante vários anos. Ela será a madrinha dos meus filhos e uma das pessoas que pela sua bondade e inteligência mais me marcou.

 

A sua mãe nunca se lamentou do desvio do percurso que tinha traçado?

Só uma vez ouvi um desabafo. Estava com a minha “avó”/madrinha a lavar a loiça e ouvi­‑a dizer: “Tirei eu tantos significados de grego para chegar a isto!”. Nunca mais ouvi nada a esse respeito.

Penso, tantas vezes, como as mulheres, sendo muito mais flexíveis, tendo forças invisíveis, poderes espantosos, estiveram, e de certa maneira ainda estão, subordinadas aos homens. Há uma razão, eles consideram que são eles que tudo sabem, que tudo podem.

 

Logo, a vida quotidiana da sua família prosseguiu...

Com os condicionalismos da época. O meu pai foi, durante muitos anos, professor no Liceu Pedro Nunes. Por volta de 1930, ou 32, houve uma remodelação no pessoal docente, quando era reitor o Sá Oliveira. Muitos professores do quadro foram para outros liceus e foram substituídos por outros. O meu pai e António Diogo do Prado Coelho, que era nosso vizinho – nós na rua Tomás da Anunciação e ele na rua Correia Teles –, foram mantidos no Liceu, mas, por solidariedade com os colegas, saíram também. Foram ambos para o Liceu Camões, onde o meu pai ficou até se aposentar, já como diretor da Biblioteca do Liceu, onde era muito considerado.

 

Não houve problema com o regime de Salazar?

O meu pai foi um perseguido político no tempo do Salazar, porque era republicano, sempre lhe foram cortadas todas as possibilidades. Como camoniano, escreveu sobre o poeta. Escreveu ainda outras obras, entre elas uma monografia, muito valorizada entre os estudiosos de etnografia, sobre Alportel [apontando, indica­‑nos a estante onde estão algumas obras que o pai escreveu]. Essas obras e outras que tinha projetado, mas que não seria possível publicar devido às restrições políticas, estão na Biblioteca Dr. Manuel Francisco Estanco Louro, em S. Brás de Alportel, que tem o seu nome.

O meu pai era um homem de casa, passava muito tempo naquela secretária, sentado naquela cadeira, [apontando para os dois objectos que ainda preserva na sua sala de estar], a estudar, a escrever e a corrigir os trabalhos dos alunos.

A minha mãe, por ser justa e pela sua índole, diríamos hoje ser uma mulher de esquerda.

Eram, portanto, ambos de esquerda.

 

Maria Lucília, fale­‑nos do seu percurso estudantil

Eu e o meu irmão fizemos a escola primária no ensino oficial. Fui, em 1932, para o Liceu Filipa de Lencastre, que teve várias sedes desde que lá entrei até que saí: rua do Quelhas, calçada da Estrela na esquina com a rua de S. Bernardo e, no último ano em que lá andei, no Arco do Cego. O meu irmão foi para o Liceu Camões.

Desde sempre manifestei grande propensão para a pintura e para o desenho. Até fui para o atelier da minha prima Maria José Estanco [a primeira mulher portuguesa a formar­‑se em Arquitectura] para preparar o exame de aptidão a Belas Artes, que consistia em copiar uma cabeça de gesso.

 

Como foi parar ao curso de Histórico­‑Filosóficas?

Belas Artes era um curso mal visto e sem grandes perspetivas de futuro. E eu sempre gostei muito de História, pelo que resolvi ir para o curso de Histórico­‑Filosóficas.

Não fui para Arte, mas não deixei de desenhar e pintar, era a minha vocação [mostra­‑nos um dos quadros de sua autoria, pendurado na sala, testemunhando essa paixão pela arte].

Em Letras, correu tudo bem. A batalha começou com a tese de licenciatura. Naqueles anos de 1941 a 1944, na Faculdade de Letras, a cadeira de Estética e História da Arte não era considerada uma “cadeira nobre”. A tese de licenciatura podia ser sobre qualquer tema de Filosofia, mas nunca em Estética. Estava em moda a Biotipologia e entusiasmei­‑me com uma obra de kretschmer4 intitulada A Estrutura do Corpo Humano e o Carácter e propus­‑me fazer – e fiz – um estudo sobre Gauguin a partir dos retratos e autoretratos da autoria do pintor, do que escreveu e do que dele disseram a filha e outros artistas contemporâneos. A ideia era explicar a obra do pintor recorrendo à sua vida e maneira de ser.

 

Foi, portanto, a primeira tese em História de Arte da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Foi, na verdade, um pioneirismo.

O meu professor de Estética e História de Arte era José António Ferreira de Almeida, ainda rapaz, e propôs­‑se defender, junto dos colegas, que a História de Arte tinha dignidade suficiente para uma tese.

Envolvi­‑me, então, numa quase exaustiva consulta da relação de Gauguin com pintores franceses do século XIX. E lá consegui, saiu com o título Paul Gauguin Visto à Luz da CaracterologiaVida e Obra.

Já disse a José Augusto França isto mesmo e ele assentou. Vejam como coisas tão evidentes e naturais precisaram de uma batalha para se conseguirem.

 

Na prova de Exame de Estado, continua a estudar o problema da Arte, do Belo, mas acrescenta­‑lhe o Bem...

Nesse sistema em que eu fiz a tese de Exame de Estado, em 1948, primeiro fazíamos um estágio de dois anos, com um metodólogo. Eu estagiei no Liceu Pedro Nunes. Os professores de licenciatura em Histórico­‑Filosóficas tinham que lecionar as cadeiras de História e de Filosofia. As provas do exame de Estado consistiam numa tese, que era defendida perante um júri, e numa prova prática, que era dar uma aula aos alunos. Se a tese era na área da Filosofia, a aula dada era de História e vice­‑versa. Fui, então, ao programa da Filosofia e escolhi a Arte e a Moral. A tese intitula­‑se FilosofiaValores Éticos e Estéticos.

 

Quando teve que optar por leccionar apenas uma dessas disciplinas, escolheu ensinar História?

Puseram­‑me perante o problema, ou Filosofia ou História. Ora, nessa altura eu estava a orientar o estágio em História, no Liceu de Oeiras, não podia, no meio do ano letivo, fazer outra opção. Penso, no entanto, que teria sempre optado por História. Fui professora em Évora, no Liceu e na Escola do Magistério Primário, e ainda nos Liceus de Faro, Beja, e Oeiras e, em Lisboa, nos Liceus D. Leonor, D. João de Castro, Pedro Nunes e Passos Manuel. Fui orientadora de estágio pedagógico nos Liceus de Oeiras, Pedro Nunes e Passos Manuel

 

Participou da elaboração da colectânea de textos que fizeram parte do programa de História introduzido na sequência do 25 de Abril?

Sim, conjuntamente com Maria Emília Dinis, Ana Leal Faria e outros. Foram programas de História que saíram na altura do 25 de Abril, para substituir os existentes. Esses trabalhos constituíram uma colectânea, que foi publicada, pelo Ministério da Educação, em fascículos. Eu desenvolvi a parte do programa intitulada “Humanismo e Experimentalismo na Cultura do Século XVI” [Mostra a colectânia encadernada, que guarda com cari­nho, numa das muitas estantes de livros]. Trabalhei ainda com João Cruz o último ponto do programa, versando a História da Arte portuguesa entre meados do século XIX e meados do século XX. Este último fascículo não foi publicado, porque o programa foi abolido por motivos ideológicos.

 

Enquanto estudante, no Liceu e na Faculdade, houve professores e colegas que a marcaram?

No Liceu, Emília Barros, professora de Português e Latim, era excelente, marcou­‑me nitidamente. Na Faculdade, tive uma sorte espantosa, relacionei­‑me imediatamente com a esquerda. Fernando Piteira Santos – escrevi sobre esta influência quando ele faleceu, no Jornal de Letras sob o título “O Jovem Piteira” –, foi um incontestável leader, inteligente, diria que insubstituível. Tive como colegas Joaquim Barradas de Carvalho, Jorge Borges de Macedo, Joel Serrão, Rui Grácio.

O grupo estava ligado aos neorealistas de Vila Franca de Xira. Alves Redol, Soeiro Pereira Gomes, Arquimedes Silva Santos, Carlos Pato, António Dias Lourenço, formavam o núcleo. Lembro, ainda, o meu colega de Clássicas, Mário Rodrigues Faria, que escrevia no jornal O Diabo, que se publicava com dificuldade no país.

 

Participava, portanto, nos célebres passeios no rio Tejo?

Nalguns. Esses passeios, organizados por Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes, foram muito importantes na história do pensamento português da época. Estamos em 1941 e 1942. Numa fragata, denominada Liberdade, o grupo era conduzido aos avieiros.

O grupo teria sido preso pela PIDE, se nós tivéssemos sido apa­nhados. Iam nesses passeios, também, Alfredo Pereira Gomes, Anacleto Monteiro, Bento de Jesus Caraça, Cândida Gaspar, Cândida Ventura, Estela Fiadeiro, Fernando Lopes Graça, Francisco José Tenreiro, Huertas Lobo, Hugo Ribeiro, Joana Campina, Jorge Borges de Macedo, Lídia Monteiro, Maria Helena Pulido Valente, Manuel da Fonseca, Olívia Cu­nha Leal, Pilar Ribeiro, Rui Grácio, Sidónio Muralha, Virgínia Redol, Zaluar Nunes e eu própria. Espero não ter esquecido ninguém.

Há fotografias desses passeios, lembro­‑me de uma com Álvaro Cu­nhal à proa da fragata Liberdade, à conversa com António Dias Lourenço e, atrás, o arrais da fragata. Descrições desses passeios, relatos de Luís Augusto Costa Dias e meus, estão no Museu do Neorealismo em Vila Franca de Xira.

 

Tinha alguma atividade no grupo? Chegou a vender o Avante?

Quando integrei o grupo já tinha uma formação de esquerda. Embora considere que nunca fiz nada de importante, participei em muitas actividades.

Por vezes, guardei manuscritos dos poetas Francisco José Tenreiro e Sidónio Muralha.

Apoiei mulheres de esquerda, entre as quais Maria Lamas e Maria Isabel Aboim Inglês, porque essas pessoas, para terem a importância que tiveram, precisavam de anónimos apoiantes, acho que foi isso que fiz e fí­‑lo de alma e coração.

Quanto ao jornal Avante, passava­‑o, nos anos 40. Cheguei, também, a escondê­‑lo nos sapatos.

 

Fez parte da Associação Feminina Portuguesa para a Paz.

Quando entrei para a Faculdade de Letras, a juventude, especialmente liderada por Piteira Santos, como já referi, estava muito ligada a valores, entre os quais à paz mundial. A Associação era, então, formada por um grupo ideologicamente de esquerda e presente em todas as atividades de acordo com os fins a que se propunha.

Nesse tempo, a presidente da Associação era Cândida Madeira Pinto, na direção estavam Estela Fiadeiro, Maria Alice Lamy e Maria Helena Pulido Valente e eu era a secretária da direção e Joana Campina, a tesoureira.

Faziam ainda parte da Associação Cândida Ventura, Maria Ângela Miguel, Maria Luisa Bastos, Maria Virgínia Redol, Olívia Cunha Leal e Ruth Arons. A sede da Associação, em Lisboa, era na Rua D. Pedro V, ao lado do Restaurante Faz Frio.

Durante a guerra, a Associação apoiou os prisioneiros dos campos de concentração nazis, organizando pequenas encomendas de compotas, cigarros e outras pequenas coisas, que enviavamos através do Socorro Vermelho ou outras vias possíveis e plausíveis de se enviar.

Em prol da cultura, organizavam­‑se espetáculos públicos, de cinema, de poesia, de que relembro uma récita colaborada por João Villaret, um evento dedicado ao Novo Cancioneiro de poesia neorealista, com a colaboração de Carlos Alberto Lança, entre outros.

No dia 9 de Abril de cada ano, prestava­‑se homenagem aos soldados portugueses caídos na Batalha de La Lys, colocando flores junto ao monumento aos Mortos da Grande Guerra, na Avenida da Liberdade. Há uma fotografia minha, com Maria Luisa Bastos, na revista Ilustração Portuguesa, quando depúnhamos a coroa de flores.

Especialmente para mulheres, fizeram­‑se cursos de puericultura dirigidos por Maria Palmira Tito de Morais, uma das mais credenciadas enfermeiras portuguesas. Na base de tudo estava a educação para a cidadania e para a paz.

Muito visada pela PIDE, a Associação sofreu várias incursões às instalações, levando livros da biblioteca, atas e outros documentos que julgava subversivos. O meu espólio da AFPP doei­‑o ao Museu do Neorealismo, em Vila Franca de Xira.

 

Maria Lucília, como foi conciliar a vida profissional com a vida familiar?

Não foi difícil, porque tive o suporte magnífico da minha mãe, que tratou dos meus filhos Rui e Vera. O Rui nasceu quando eu estava em Faro e a minha mãe foi para lá, para cuidar dele, enquanto eu ia dar as aulas ao Liceu. Quando estive em Beja, recorri a uma colaboradora que ficava com ele e o levava ao Liceu para eu o amamentar num intervalo de aulas, durante os meses de outubro e novembro. A Vera já nasceu em Lisboa, no ano em que o meu pai morreu. Morávamos na Rua Tomás da Anunciação, eu tinha aulas de manhã, no Liceu D. João de Castro, e, muitas vezes, dava lições à tarde em casa. Idas ao médico e apoio escolar eram assegurados por mim.

 

Fala­‑se muito de feminismo. Como vê o movimento no passado e na atualidade?

Maria Lamas, Maria Isabel Aboim Inglês e Cesina Bermudes, qualquer delas se considerava defensora do papel das mulheres na sociedade, mas sem se considerarem inimigas dos homens, nem dizerem ou fazerem parvoíces.

Estas senhoras eram os meus paradigmas, digamos assim. Maria Isabel Aboim Inglês chegou a ser minha professora na Faculdade de Letras e era grande amiga da minha mãe.

 

Notas

1Fernando Pessoa. Maria Lucília Estanco reside numa casa contígua à Casa Fernando Pessoa.

2 Poemas de Alberto Caeiro. Obras completas de Fernando Pessoa.Lisboa: Edições Ática, p. 97.

3Ver Ler História, n.º 42 (2002), pp. 249­‑282.

4 Ernst Kretschmer (1884­‑1964), médico psiquiatra alemão que estabeleceu uma tipologia da constituição humana, relacionando esta com a personalidade e possíveis patologias psíquicas