SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número33Man meets WomanViver pela Liberdade índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

LEITURAS

Machado, I. (2014). Vitória de Inglaterra: A Rainha que Amou e Ameaçou Portugal. 2.ª edição. Lisboa: A Esfera dos Livros, 406 pp.

Iolanda Ramos

 

Esta obra constitui o segundo romance histórico de Isabel Machado, que em 2012 deu à estampa Isabel I e o seu Médico Português. Dois anos depois, seguiu­‑se o volume consagrado à rainha Vitória, cujo sucesso se comprova pelo facto de ter conhecido uma segunda edição, volvidos apenas três meses da sua publicação.

O volume, significativamente dedicado “Ao génio português, apesar de tudo”, compõe­‑se de uma Nota Prévia sobre a nomenclatura utilizada, de quatro partes num total de 51 capítulos, e de um epílogo, que termina frisando que a aliança luso­‑britânica se mantém e é a mais antiga do mundo. Segue­‑se uma Nota da Autora, na qual se sublinha o carácter ficcional da obra, apesar de estar construída em torno de personagens e de factos históricos reais, e, por último, uma elucidativa bibliografia, composta pelas cinquenta principais obras que foram consultadas.

Com efeito, a autora, que é jornalista e licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade de Lisboa, procedeu a uma aturada investigação em arquivos nacionais e britânicos, o que lhe permitiu reconstituir acontecimentos tendo por base muita literatura epistolar. O recurso aos diários da própria Vitória e à correspondência trocada entre diversas personagens ilustres do seu tempo revela­‑se uma fonte inestimável, não só de informação factual, mas de pormenores surpreendentes.

Apesar da sequência narrativa ser essencialmente linear, o texto parte de uma prolepse ao começar por evocar Vitória no seu leito de morte, em Janeiro de 1901, uma data especificada como 22 de Janeiro no derradeiro capítulo da obra. O pedido secreto quanto a Portugal – uma das liberdades criativas presentes na narrativa – que formula ao seu herdeiro, o futuro Eduardo VII, e que constituía “o único desejo que não cumprira na Terra” (p. 15), é apenas revelado nas páginas finais (pp. 396­‑7).

Narrado a duas vozes, numa presença autodiegética de focalização interna e externa devidamente assinaladas pela distinção gráfica de dois tipos de fonte, o texto acompanha o percurso privado e público da rainha, desde a acessão ao trono, aos 18 anos, até ao seu último dia de vida. A expressividade do registo, bastante fiel ao que a autora encontrou nas fontes consultadas, provoca no leitor uma grande empatia para com a protagonista. Evoquem­‑se, a título de exemplo, os momentos íntimos relacionados com a noite de núpcias (“Quase não dormimos”, p. 73) ou o desespero quanto à morte prematura do muito amado marido (“Acabou tudo. Tudo”, p. 243).

Os documentos, que foram objecto da tradução de Isabel Machado, comprovam também os fortes laços familiares e de genuína amizade que uniam a rainha de Inglaterra à casa real portuguesa. A título complementar, note­‑se que a comunicação entre Vitória e os seus parentes portugueses se fazia em francês, ao passo que Alberto optava pelo alemão quando era possível, o que sucedia, por exemplo, com D. Pedro V. Tendo em conta que o acesso aos arquivos reais é restrito e que algumas das fontes britânicas mais acessíveis ao público, como antologias e edições críticas, praticamente ignoram a correspondência trocada entre Vitória e os seus parentes portugueses, é de louvar uma obra que traz à luz as interacções entre as duas casas reais. Contudo, fica patente que o carinho da monarca britânica pela prima, D. Maria II, bem como por D. Fernando, D. Pedro V, D. Luís e D. Carlos, não a impede de tecer duras críticas ao povo português, numa demarcação entre laços afectivos e institucionais.

Importa reter que a Grã­‑Bretanha, durante as seis décadas do reinado de Vitória, conheceu a estabilidade política da monarquia constitucional e a alternância de poder entre os partidos conservador e liberal, pelo que o leitor partilha a indignação de Vitória perante a recorrente incapacidade de governação em Portugal ao longo de cinco reinados (“Ninguém se entende”, p. 141). Na verdade, as últimas décadas do século XIX constituem um período particularmente conturbado em Portugal e tenso para a Aliança. A crise do Mapa Cor­‑de­‑Rosa, causada pelo mais antigo aliado da Grã­‑Bretanha, é evocada como algo incompreensível para a monarca (“Como se atrevem?”, p. 342), e totalmente inaceitável para a nação detentora do maior Império que o mundo conhecera.

Ao longo da narrativa, o leitor apercebe­‑se que, por coincidência, o período mais feliz da vida pessoal de Vitória coincidiu com o período de maior prosperidade da nação de que era soberana. Além disso, a complexidade da própria época não só reflecte como se manifesta na personalidade contraditória, simultaneamente progressista e retrógrada, da rainha. É de salientar que só em 1918 foi aprovado o sufrágio feminino e que a monarca censurava tanto a emancipação feminina como o divórcio, o que não a impedia de expressar opiniões surpreendentes sobre o casamento (“Casar uma filha é como levar um cordeiro ao sacrifício”, p. 211) e a repulsa pelo estado de gravidez (“o egoísmo dos homens é tal que jamais passariam pelo que nós, escravas deles, temos de suportar!”, p. 218).

Verifica­‑se, assim, que ao contrário da representação convencional de uma mulher puritana, austera e com pouco sentido de humor, a autora traz ao conhecimento do público português do século XXI a personalidade fascinante de uma mulher sincera, emotiva e irreverente. Na verdade, a obra contribui para divulgar dados conhecidos, se bem que relegados para segundo plano nos relatos mais tradicionais, e ajuda a contestar as idealizações, geradas na era oitocentista e em larga medida mantidas na actualidade, de Vitória como mãe, como mulher e como rainha.

O modo como Isabel Machado retrata a emotividade, a sensualidade e a sexualidade da protagonista pode, em determinados passos, parecer excessivamente ficcional, fruto de uma leitura pessoal, subjectiva e romântica. Ao longo das páginas do romance, o leitor partilha os sentimentos de Vitória, pautados pela paixão obsessiva, repleta de desejo por Alberto, enquanto mulher casada. O amor proibido em relação a John Brown, durante a viuvez, é um tema polémico, objecto da má língua popular e da curiosidade dos periódicos oitocentistas, que permanece por comprovar nos dias de hoje. Note­‑se, contudo, que os Estudos Vitorianos e Neovitorianos actuais – na senda do precursor Lytton Strachey e de obras da autoria de Margaret Homans, Adrienne Munich e Elizabeth Langland, para além de filmografia como Her Majesty, Mrs. Brown e The Young Victoria – dão relevo a uma representação mais humanizada da rainha­‑imperatriz à semelhança de qualquer mulher e cidadã comum.

Com efeito, embora não se possa deixar de ter em consideração o processo criativo de apropriação de uma época, patente num romance histórico que articula realidade e ficção, ou porventura devido a esse factor, o texto apresenta um tratamento de dados eficaz e apelativo, dirigido quer ao público­‑leitor em geral, quer ao público mais especializado nas relações culturais luso­‑britânicas, na era vitoriana e nos Estudos sobre a Mulher.

A capa do volume merece uma última menção, visto tratar­‑se de uma montagem que recupera uma fotografia de Vitória, à qual se deu o toque da cor e se acrescentou um mapa do Império. O resultado é, sem dúvida, impactante e contribui para deixar na mente do leitor a imagem de uma mulher consciente tanto do seu papel na ordem mundial como da sua femininidade. Em suma, tal como os motivos do nosso interesse pela era vitoriana podem permanecer uma incógnita e uma fonte de constante debate, também a rainha Vitória evocada por Isabel Machado alimenta a nossa atracção pelo eterno feminino.