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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

(AUTO)-RETRATO

Ana José Guedes da Costa

 

 

Marília Viterbo de Freitas e Natividade Monteiro

 

Ana José Guedes de Carvalho e Meneses da Costa é uma referência da cidade do Porto, onde viveu grande parte da sua vida e desenvolveu actividades beneficentes na área da saúde pública, no apoio aos combatentes da Grande Guerra e como vereadora da Câmara Municipal, com o pelouro da Assistência. A vereação da cidade reconheceu o seu valor e nomeou­‑a Cidadã Honorária do Porto em 1943 e atribuiu­‑lhe a Medalha de Ouro. Veneranda Enfermeira e Sócia Honorária da Cruz Vermelha Portuguesa, à qual prestou relevantes serviços, foi condecorada com a Placa de Honra e com o Grande Oficialato da Ordem de Benemerência.

O seu nome foi atribuído ao Recinto Infantil do Palácio de Cristal em 1945, por iniciativa da Cruz Vermelha Portuguesa, e à primeira Escola Pública de Enfermagem em 1954, por proposta do provedor da Santa Casa da Misericórdia. A Escola de Enfermagem D. Ana José Guedes da Costa teve a sua origem numa das escolas mais antigas do país, a Escola de Enfermeiros do Hospital Geral de Santo António, fundada em 15 de Junho de 1896. A actual Escola Superior de Enfermagem do Porto resultou da fusão, em 2007, da Escola Superior D. Ana José Guedes da Costa, Escola Superior da Cidade do Porto e Escola Superior S. João.

Ana José Guedes da Costa nasceu em Luanda em 14 de Dezembro de 1860, cidade onde o seu pai exercia as funções de presidente do Tribunal da Relação. Foi a primeira filha do desembargador Joaquim Guedes de Carvalho e Menezes da Costa e de Maria José Soares Franco Coelho do Amaral e neta paterna do 1.º Visconde da Costa, Francisco Guedes de Carvalho e Meneses da Costa e de Ana de Portugal e Meneses Brandão. Teve duas irmãs, Maria Augusta e Maria José, mas foi ela quem herdou os títulos nobiliárquicos de Condessa da Costa e Viscondessa de Guedes e representante da Casa da Costa. O seu pai, bacharel em Direito pela Universidade de Coimbra, foi fidalgo da Casa Real, pertenceu ao Conselho do Rei D. Luís, foi deputado pelo Círculo de Castelo Branco em duas legislaturas (1853­‑1856 e 1857/1858), Governador Civil de Coimbra e de Portalegre, entre 1851 e 1852 e Comendador da Ordem de Cristo. A família tem as suas raízes em Mancelos, Vila Meã, Amarante, onde detinha o Solar da Costa. Ana José Guedes da Costa tê­‑lo­‑á recebido em ruínas mas reconstruiu­‑o a expensas próprias e em 1918, por ocasião da epidemia da pneumónica, cedeu­‑o à Cruz Vermelha para aí instalar um hospital, onde prestou serviço e foi contagiada.

Foi como dama­‑enfermeira da Cruz Vermelha Portuguesa que Ana José Guedes da Costa se distinguiu durante a Grande Guerra, no combate ao tifo exantemático no Hospital da Cruz Vermelha para Tifosos, instalado no Hospital de Crianças Maria Pia, no Porto. Programado em Setembro de 1917 para receber feridos de guerra, foi confrontado com a epidemia de tifo e solicitado para internar soldados que não eram recebidos nos hospitais civis e militares por não terem condições de isolamento que impedissem o contágio a outros doentes. Quando a epidemia atingiu o auge na cidade do Porto e arredores, o hospital recebeu também civis, mulheres e crianças. Por vezes, eram famílias inteiras ali internadas. A doença era tão mal vista pela sociedade que nas listas de internamento, os soldados, homens, mulheres e crianças eram identificado/as apenas pelas iniciais de nomes, os apelidos e a proveniência; a arma e o regimento, no caso dos militares e a localidade, no caso dos civis. A formação sanitária da Cruz Vermelha manifestava assim um certo pudor em expor a identidade daquele/as a quem prestava assistência, fazendo jus aos princípios desta instituição humanitária, “filha da compaixão humana”, cuja “missão é feita de bondade, de doçura e de misericórdia”, que acolhe, por igual, sob a sua protecção todos os deserdados da vida”, que está presente nos hospitais para tratar as doenças “mais diferentes e perigosas” e que não há “perigo de contágio que a detenha”. (Programa do Grande Concerto Sinfónico no Teatro Rivoli a favor da Cruz Vermelha Portuguesa, 1943)

O corpo médico e de enfermagem foi rigorosamente seleccionado para poder responder a situação tão delicada, o que não foi fácil, visto ter havido a mobilização geral para o Corpo Expedicionário Português, inclusive alguns médicos, enfermeiros e maqueiros das formações sanitárias da Cruz Vermelha. Sob a direcção do Dr. José Domingos de Oliveira e do assistente Dr. Mário de Castro, Filho, funcionou a equipa clínica que se orgulhava de usar os mais rigorosos métodos científicos no tratamento e erradicação da doença e, sobretudo, de não ter tido um único caso de contágio.

Ana José Guedes da Costa, enfermeira diplomada, desempenhou as funções de enfermeira­‑mor, superintendendo um grupo de damas­‑enfermeiras voluntárias que corresponderam ao apelo, “desprezando comodidades do lar, carinho e conforto dos seus, arriscando­‑se ao contágio da terrível doença, sacrificando­‑se pelo seu semelhante, sem outra recompensa, que não fosse a tranquilidade da sua consciência e as bênçãos dos que socorriam.” (Castro Filho, 1921, p. 9). O direito à memória leva­‑nos a registar o nome dessas damas­‑enfermeiras que tão relevantes serviços prestaram à comunidade: Beatriz da Costa Frias, Laura Maldonado d'Almeida, Margarida Vilas­‑Boas Guilhomil, Maria Amélia Rodrigues, Maria Arade, Maria da Nazareth Ferreira Martins, Maria José Faria e Silva e Sofia Frias. Ana José Guedes da Costa, como enfermeira­‑mor, foi elogiada pelo exemplo, correcção do porte, “verdadeiramente fidalgo”, excepcional desempenho das suas obrigações profissionais, “abnegação levada ao extremo com risco da própria vida e carinho constante e permanente dispensado aos doentes sem distinção de categorias ou classes sociais.” (Castro Filho, 1921, p. 10) Foi elogiada a forma como ela consolava as mulheres doentes que choravam de desgosto quando lhes cortavam os cabelos, símbolo da feminilidade. O corte do cabelo era um acto prévio ao banho de desinfecção para erradicação dos parasitas transmissores da doença.

Contida a epidemia do tifo, surgiu a da gripe pneumónica que afectou o velho e o novo mundo e matou em Portugal mais de 50 000 pessoas, sobretudo gente jovem, fragilizada pelas más condições de higiene, pela pobreza e deficiências alimentares resultantes das sucessivas crises de subsistências ocorridas durante a Grande Guerra. À falta de estruturas sanitárias adequadas, muitas entidades oficiais e particulares se mobilizaram para acudir aos doentes, criando pequenos hospitais ou postos sanitários temporários em colaboração com a Cruz Vermelha. Ana José Guedes da Costa cedeu o seu solar em Mancelos para instalar um hospital e participou activamente na sua montagem, bem como na montagem do hospital de Candemil, sob a orientação do Comissário da Cruz Vermelha, Sr. Casimiro Barreto Sachetti. Entre 2 de Outubro e 22 de Novembro de 1918, Ana José Guedes da Costa e as damas­‑enfermeiras Isménia Barros Bacelar, Maria Margarida Guilhomil e Maria Teresa Guilhomil organizaram e orientaram os serviços destes hospitais.

O fim da guerra não pôs termo ao seu empenho e dedicação como dama­‑enfermeira da Cruz Vermelha. Por ocasião da Restauração da Monarquia do Norte, ela continuou a prestar assistência a feridos e doentes na Formação Sanitária nº 4, tendo por companheiras algumas das senhoras acima mencionadas e também Bridget Clark, Maria Cândida de Lacerda Lobo e Maria José de Morais Faria e Silva. Na revolta ocorrida no Porto, entre 3 e 9 de Fevereiro 1927, também assistiu aos feridos no Posto de Socorros da Cruz Vermelha e recolheu donativos para auxiliar viúvas, órfãos e deficientes, “tendo conseguido mais de 300 contos que distribuiu rigorosa e cuidadosamente.” (Freitas, 2005, pág. 101)

A Grande Guerra despertou sentimentos de solidariedade para com os soldados mobilizados, as famílias mais desfavorecidas a quem faltava o ganha­‑pão e os órfãos de guerra. Surgiram por todo o país comissões, sociedades e associações que recolhiam fundos para custear obras de assistência social e hospitalar, roupas, calçado e outros bens que eram enviados para as frentes de combate, em França e em África. Ana José Guedes da Costa teve a iniciativa de criar a Liga das Mulheres Portuguesas, em 1917, para apoiar os soldados feridos e dinamizou a primeira Festa da Flor no Porto, cujos proveitos reverteram também a seu favor.

A Cruz Vermelha e as obras de benemerência estiveram sempre no centro da sua acção social. Como membro da Comissão Protectora da Cruz Vermelha, participou com mais 22 senhoras do Porto, entre elas, as Condessas de Lumbrales e de Aurora, na promoção do Grande Concerto Sinfónico no Teatro Rivoli, em 20 de Janeiro de 1943, em benefício daquela instituição. Como decana das damas da Cruz Vermelha, o seu nome figurava em primeiro lugar. O discurso pronunciado antes da abertura do Concerto pelo Reverendo Padre Guimarães Dias foi dedicado a estas senhoras da Comissão Protectora e às senhoras inscritas nos cursos de enfermagem da Cruz Vermelha.

“Vós, Senhoras, nessas romagens de bem­‑fazer, (…) converteis as rosas rubras da Cruz Vermelha em pão, em lenitivo, em bálsamo, em caridade. Sois verdadeiramente os anjos transformadores da cor rubra do sofrimento nos encantos perfumados da bondade. Por vosso intermédio, o nosso estremecido burgo, alimenta e enflora uma eterna primavera de flores, pão de todo o ano para os nossos irmãos que têm fome, perfume de todos os dias para os infelizes que precisam de carinho. (…) Vós, Senhoras, alistadas no Curso de Enfermagem, para alinhar no grupo de Damas Enfermeiras da Cruz Vermelha, prossegui, por igual, no vosso caminho para a missão de sacrifício que tão corajosamente aceitastes. Atingireis assim o sumo grau de dedicação, ao expor, como oferta magnífica, a vossa vida por Deus e pela Humanidade.” (Programa do Grande Concerto Sinfónico a favor da Cruz Vermelha Portuguesa no Teatro Rivoli: 1943)

Todos os males sociais a preocupavam e comoviam e, como vereadora da Câmara Municipal do Porto, com o pelouro da Assistência, interessou­‑se por todos os assuntos de administração camarária e dedicou especial atenção aos problemas dos mais humildes e desprotegidos. Eleita vereadora em 28 de Novembro de 1937, marcou presença em quase todas as sessões da Câmara e participou activamente nos trabalhos. Logo em Janeiro do ano seguinte, preocupada com o estado e a eficácia da assistência em Portugal, interveio para lembrar que era conveniente que a Câmara Municipal tivesse conhecimento “do estado pecuniário das classes mais necessitadas e pobres da cidade e da acção social” que se exercia nessa área, para uma distribuição mais equitativa das ajudas solicitadas e também para encontrar as melhores soluções para os problemas da Assistência Social. (Freitas, 2012, p. 3) Nesse sentido, propôs que a Câmara solicitasse à Comissão Central das Juntas de Freguesia informação sobre o cadastro dos pobres e indigentes, bem como sobre as casas de beneficência oficiais e particulares onde se dispensasse educação, alimentação, auxílio e protecção gratuita, a fim de realizar um trabalho útil. Propôs também que uma Comissão de Vereadores estudasse a reorganização interna da administração da Câmara Municipal, sobretudo no que respeitava aos quadros de pessoal dos estabelecimentos de assistência dependentes da municipalidade.

Em Janeiro de 1939, propôs que se completasse a educação das raparigas da Secção Feminina do Internato Municipal com cursos de culinária, corte e confecção, de modo a dotá­‑las de habilitações práticas que lhes permitissem ganhar a vida honradamente e que se inscrevesse no Orçamento Suplementar a verba necessária ao pagamento das mestras dos referidos cursos. O presidente da Câmara considerou a proposta digna de louvor e propôs a sua aprovação.

Em 1941, Ana José Guedes da Costa homenageou publicamente Mário Soares Peixoto, proprietário da Fábrica da Carcereira, pelos apoios concedidos à Misericórdia do Porto, aos Asilos de Crianças Abandonadas, às Creches de S. Vicente de Paulo, às Oficinas de S. José e ao Asilo das Velhinhas Pobres, bem como pela protecção dada aos operários da sua fábrica. No ano seguinte, apoiou também a homenagem ao pintor Acácio Lino e congratulou­‑se com as novas instalações do Internato Feminino Municipal, onde já se ministravam os cursos por ela propostos. Quando em 1944 o Abrigo dos Pequeninos, sob a tutela da administração camarária, passou para a responsabilidade do Instituto Maternal, tutelado pelo Ministério da Assistência Social, homenageou a Directora, funcionárias e serventes pelo zelo demonstrado no cumprimento das suas funções e propôs a construção de um pavilhão de isolamento para crianças com doenças transmissíveis.

Também se interessou por outros assuntos não directamente relacionados com o seu pelouro. Por ocasião das obras das Escadas do Codeçal, propôs a reconstrução da Escadaria dos Guindais por o estado de degradação da mesma representar um perigo para os utentes e defendeu a colocação de “pousos ou colunas” para que as pessoas pudessem amparar­‑se na subida e descansar dos pesos que transportavam. O presidente da Câmara louvou a intenção humanitária da senhora vereadora e prometeu considerar o assunto. Em 1944, também se insurgiu contra a legislação de Salazar que retirava às câmaras municipais a autonomia executiva e as transformava em meras repartições do Estado. Embora desejasse que a obra do Estado Novo fosse perfeita, enquanto vereadora eleita não podia calar­‑se em defesa dos interesses da Câmara Municipal do Porto e apoiou os deputados que na Assembleia Nacional defenderam a autonomia das câmaras municipais.

Corria o ano de 1943 e em reunião de 12 de Agosto, pediu a palavra para sugerir o apoio camarário à pretensão da direcção do Instituto Português de Oncologia de abrir o primeiro Centro Regional no Porto e propôs que a câmara oferecesse o terreno para a sua construção na zona de Paranhos, onde se previa um novo hospital. Lembrou que o cancro era uma doença mais implacável que a tuberculose e que no Porto havia apenas duas enfermarias no Hospital da Misericórdia, onde os doentes cancerosos eram tratados com a ajuda do Dr. José Domingos de Oliveira. O presidente e toda a Câmara concordaram com a proposta da “ilustre vereadora”. O Instituto Português de Oncologia do Porto só viria a concretizar­‑se em Abril de 1974, após dois anos de preparação.

Enquanto cidadã empenhada em causas benévolas, participou na Campanha de Auxílio aos Desempregados e salvou da ruína o Hospital de Crianças Maria Pia quando se preparava para fechar por falta de recursos. Graças à sua intervenção, o Hospital reorganizou­‑se e continuou a sua actividade. A memória da sua benfeitora perdurou no tempo, através do retrato que passou a ornamentar uma das salas. Fundado em 1882, fechou 130 anos depois, sendo os serviços de consulta e internamento de pediatria transferidos para o Hospital de Santo António, em 2012.

Ana José Guedes da Costa despediu­‑se do cargo de vereadora da Câmara Municipal do Porto em 18 de Dezembro de 1945, numa sessão de entrega de prémios às educandas do Internato Municipal, lembrando­‑lhes que o agradecimento pela educação que receberam só podia fazer­‑se com “aplicação e diligência” no trabalho. Apesar de já ter dado por terminadas as funções de vereadora, foi ainda convidada a condecorar com as medalhas de ouro e prata dois “lobos do mar”, por terem dedicado a vida ao salvamento de náufragos e pessoas em perigo na Foz do Douro.

Além de enfermeira, vereadora e benfeitora, foi também uma das primeiras industriais femininas como proprietária e administradora de uma fábrica de cartonagem no Porto, empresa que lhe garantia os meios financeiros para apoiar as obras de beneficência, para restaurar o Solar da Costa e manter o património familiar, património que, por vezes, teve de alienar para patrocinar algumas das causas sociais a que se dedicou.

Solteira e sem filhos, deixou em testamento a representação do Solar da Costa e dos títulos ao seu sobrinho­‑neto, Dr. José Damásio Guedes da Costa Ferreira de Sequeira Braga que a passou à sua filha, D. Maria Leonor Satúrio Pires de Sequeira Braga. Após uma curta doença, faleceu em 11 de Outubro de 1947, com 87 anos, e foi sepultada no jazigo dos generais no Cemitério de Mancelos. Foi um exemplo de vida ao serviço dos outros, lutando contra a dor, a miséria e a indiferença.

 

Fontes

Arquivo Histórico da Cruz Vermelha Portuguesa.

 

Referências bibliográficas

Castro Filho, M. (1921). O Hospital da Cruz Vermelha durante a epidemia do Tifo Exantemático 1917­‑1918. Relatório dos serviços prestados, apresentado à Exmª Comissão Central da Sociedade Portuguesa da Cruz Vermelha. Porto: Imprensa Social.

Freitas, M. V. (2005). Ana José Guedes da Costa, Dicionário no Feminino. Séculos XIX e XX (p. 101). Lisboa: Livros Horizonte.

Freitas, M. V. (2012). Vidas de Enfermeiras. Loures: Lusociência.         [ Links ]

Programa do Grande Concerto Sinfónico no Teatro Rivoli a favor da Cruz Vermelha Portuguesa. 1943.