SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número33Isabel RilvasElza Chambel índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

PIONEIRAS

Noémia Emília Bagarrão Martins Pereira

 

 

Ilda Soares de Abreu e Maria José Remédios

 

“Fecho os olhos por instantes.

Abro os olhos novamente.

Neste abrir e fechar de olhos

Já todo o mundo é diferente.

 

Já outro ar me rodeia;

Outros lábios o respiram;

Outros aléns se tingiram

De outro sol que os incendeia.

........

Tudo é foi. Nada acontece.”

 

António Gedeão, “tudo é foi”, Poesias Completas (1956­‑1967), Lisboa, Portugália Editora, 1978, pp. 41­‑42.

 

 

Nasceu no Algarve, em Olhão, então vila piscatória a poucos quilómetros de Faro, capital do distrito, a 4 de Agosto de 1916, a terceira de quatro irmãos, dois rapazes, os mais velhos, e uma rapariga. O pai, António Martins Bagarrão, era mandador de redes de pesca, actividade ligada à malhagem das redes para os diferentes tipos de pescaria. A mãe, Maria Inácia Bagarrão, era doméstica.

A pesca era uma actividade sazonal, com paragens cíclicas nos meses de Março de cada ano, coincidentes com a recolha das embarcações, a fim de serem retocadas, pintadas e arranjadas as armações e respeitado o tempo de defeso do peixe, período destinado ao crescimento das espécies capturadas naquelas águas. No mês de Março de 1926, o pai ponderou os repetidos convites de uma irmã, que residia com a família em Angola, para emigrar para Moçâmedes. As promessas eram aliciantes, falavam de uma vida maravilhosa e da possibilidade de ganhar muito dinheiro. Era a oportunidade para um chefe de família com quatro filhos, um dos quais já casado e com uma filha pequena, de singrar na vida. Para pagar a passagem, hipotecaram a casa própria em que viviam e foram, pai e filho, com carta de chamada e emprego numa empresa de pescaria pertencente a João Tomás da Fonseca e João Martins Pereira, conhecido, tanto em Olhão como em Angola, por João da Carma, por ser filho de Maria do Carmo.

A parte feminina da família, esposa, duas filhas, nora e neta, seguiram seis meses mais tarde, quando os homens já estavam instalados e não aguentavam mais as saudades familares. Assim, aos 9 anos, Noémia embarcava para Angola, fazendo os 10 anos na ilha da Madeira, quando o vapor em que seguiam atracou durante uma semana.

Em Angola, foram para a Baía dos Tigres, na enseada pequena, terra árida, de areal, com fortes ventos, onde só chegavam transportes semanais, numa embarcação pequena, com alimentos, com a frescura perdida. A mãe de Noémia era muito doente e ali só se alimentava de caldos de peixe cozido; a restante família completava a dieta com pirão feito pelos naturais, arrefecido, fatiado e frito. A continuação naquele local era insustentável e o pai entrou em contacto com João da Carma para o pôr ao corrente da situação. Saíram, então, da Baía dos Tigres para Mocuio, mais perto da cidade, até que noutro mês de Março, quando as tempestades assolavam a costa, receberam ordem de fazer as malas e regressar a Moçâmedes.

Em Moçamedes, alojaram­‑se por algum tempo em casa de amigos, até que o pai foi convidado por um francês, de nome Rascaret, para ingressar na sua firma como mandador, em Praia Amélia, ficando responsável por todas as actividades, excepto a da contabilidade, atribuída a outro português, o “velho Mangericão”. A vida da família melhorou até pela curta distância à cidade de Moçâmedes.

Noémia podia, então, seguir o percurso das raparigas prendadas do tempo. Concluída a instrução primária, ainda em Olhão, a menina foi para uma escola aprender a bordar e a pintar seda, em grandes bastidores, donde saíam lindas almofadas e quadros. Também se tornou exímia no croché, de que conserva, ainda hoje, colchas e toalhas de mesa de esmerado labor. A família estava, por fim, fixada geograficamente num local aprazível e numa situação económica confortável, diga­‑se, instalados comodamente na colónia.

A amizade com João da Carma, também ele natural de Olhão, mantinha­‑se para lá dos laços laborais iniciais. Como nunca esquecerá, foi João da Carma que a recebeu, num dia de tempestade, à chegada a Moçamedes, vinda num baleeiro que, dado não haver cais, fazia o transporte de passageiros e mercadoria do navio para terra. O primeiro local africano onde Noémia se instalou, depois de mais de um mês de viagem, foi na casa de João da Carma. Foi também nesse dia e aí, que recebeu o primeiro beijo dado por um rapaz – o filho de João da Carma, também ele de nome João ­‑, quando brincavam na varanda da casa, em Torre do Tombo1, enquanto os adultos lembravam memórias do solo pátrio, no salão. Noémia recorda como ficou atrapalhada com a situação, escondendo o acontecimento da mãe.

A figura de João torna­‑se presente, convivendo nos fins­‑de­‑semana com os irmãos de Noémia. Os seus olhos ainda hoje se iluminam, lembrando a chegada a sua casa do rapaz veloz na bicicleta, a qual lhe permitia colmatar a distância entre Moçamedes e Praia Amélia. Quando Noémia completou 14 anos, João, com 17 anos feitos, veio pedir autorização ao pai dela para iniciar o namoro. Namoro este desejado e incentivado por aquele que virá a ser o seu sogro. Ficou­‑lhe registada na memória, a frase que o seu segundo pai – como gosta de chamar a João da Carma ­‑, dizia à sua mãe, nas visitas semanais que esta fazia à família, referindo­‑se a Noémia “deixe estar a pêra na pereira, não apodreça” e, subtilmente, a seu filho, ao acrescentar “que lá virá quem a mereça”.

A sete meses de concluir os 18 anos, em Janeiro de 1934, casa com o único homem com quem namorou e diz ter amado. Noémia também não esquece que ele assistiu à primeira gincana da sua vida, da qual saiu vencedora, aplaudindo­‑a. Revelaram­‑se, então, as suas capacidades competitivas, a par da descoberta por si mesma do prazer pelas actividades desportivas e pela visibilidade social, que lhe permitiriam participar num grande número de eventos locais.

Anos mais tarde, com 34 anos e já com dois filhos, uma rapariga com 17 anos – Coca (Noémia) – e um rapaz de 13 anos – Jone (João) ­‑, Noémia, a nossa pioneira, resolveu fazer uma experiência, quiçá, matar tempos mortos do seu dia­‑a­‑dia. Liberta da realização da grande maioria das tarefas domésticas, para as quais contava com o pessoal indígena – que ia formando para responder às necessidades e hábitos da família –, com os filhos ocupados na escola e o marido ausente nas suas actividades empresariais ou no Grémio da Pesca – do qual foi funcionário e depois presidente –, pensou divertir­‑se a aprender a conduzir. Recorreu ao irmão Arnaldo, que a ensinou a fazê­‑lo numa das carrinhas de caixa aberta ao serviço da sua fazenda agrícola.

Nessa fazenda, de cuja extensão nunca conheceu os limites, como recorda, a par da criação pecuária – porcos e bezerros – e do cultivo de produtos hortículas e de frutos autóctones, que vendiam para o Grémio da Agricultura, desenvolveram, ainda, a cultura de camarão em cacimbas, espécie de poços feitos na margem do rio Bero, o qual a atravessava. A facilidade com que aprendeu a guiar despertou o interesse de um examinador, que vinha de Sá da Bandeira avaliar os candidatos a encartados, o qual a aprovou. Noémia, tornou­‑se, assim uma das primeiras mulheres residentes em Angola com carta de condução, a primeira a tê­‑la, em Moçâmedes.

A destreza nas manobras e o pé pesado no acelerador, a par do bichinho pela competição, levaram­‑na a participar em provas automobilísticas, algumas das quais todo­‑o­‑terreno, de que lembra a subida da montanha de Giraúl. Exibe­‑nos uma folha do jornal local O Namibe, de 24 de Setembro de 1955, onde é abordada a sua participação pioneira numa corrida e gincana automóvel, patrocinadas pela Rádio Club de Moçamedes, sendo Noémia entrevistada.

Foi a primeira mulher a obter a licença de concorrente nacional, emitida pela Comissão Desportiva do Automóvel Touring Clube de Angola. Como se assinala, no documento que ainda hoje conserva, esta licença era válida, pelo período de um ano, em todo o território nacional e era requerida para tomar parte em manifestações desportivas.

Foram muitas as provas em que participou e os prémios ganhos também foram alguns. Reconhece, com uma certa mágoa, que o favoritismo determinava alguns dos resultados das provas, afirmando “quando começaram a entrar na competição esposas de certas figuras do poder local deixei de ser a vencedora”.

À pergunta se reconhece ter sido uma mulher que foi diferente das do seu tempo, responde que não. Considera que sempre foi uma dona­‑de­‑casa e mãe de família, exemplares, e que era o seu marido quem orientava a vida económica, garantindo que no presente nada faltasse aos seus e investindo para assegurar um futuro ainda melhor. Identifica claramente papéis sociais tradicionalmente atribuídos à mulher e ao homem, sintetizados por si na expressão “ele mandava na rua e eu em casa”, denotando um reconhecimento dos limites do poder do feminino, circunscrito à esfera do privado. Com uma lucidez crítica afirma ter participado, e as outras senhoras também, nas competições porque eram os maridos que, mais do que aceitarem que participassem, as incentivavam a fazê­‑lo. Remata, em tom de confirmação da sua avaliação, “eram eles que nos inscreviam”. Conjectura­‑se que as competições automobilísticas femininas eram potenciadoras da exibição das esposas como troféus dos respectivos maridos.

Acrescentando, diz­‑nos que as senhoras só entravam em provas competitivas locais, reservando os homens, para si, a participação noutras cidades. Assumindo eles uma função disciplinadora e normativa da actividade feminina, ditavam as regras da presença das suas mulheres no espaço público. Limitada a prática desportiva às competições locais, via­‑se salvaguardado o lugar das mulheres no meio familiar, dado estas provas não requererem um assinalável afastamento do mesmo.

Não se adivinha resignação no seu discurso, mas tão só aceitação daquilo que se considera ser a realidade da vida de então, norteada pelo princípio de subalternidade, por si implícito na expressão “mandava ele [o marido] e eu aconselhava­‑o”.

A componente lúdica, assim como o carácter social, está sempre presente na abordagem saudosista que faz da vida em África. Recorda as festas de âmbito mais alargado, como os bailes, sobretudo, os do Casino, do Atlético Clube de Moçamedes e do Aero Clube de Moçamedes, a “Festa de Moçamedes, Mar e Março” ou, ainda, o Carnaval, organizando um carro alegórico para desfilar com os seis netos – Mário, João, Filipe, Carlo, Sílvia e Sérgio. Torna também presente os encontros com grupos restritos de amigos, em sua casa, para jogar à sueca ou para fazer caçadas no mato, pernoitando no acampamento turístico desenvolvido para safaris pela família do marido da sua filha. E das festas familiares, retém o Natal, preparando para os seus criados uma mesa com o mesmo tipo de iguarias às servidas para os senhores, assim como a Festa de Ano Novo, brindando efusivamente à Passagem do Ano, na varanda que acompanhava toda a sua casa, sob a marginal, com cálices de Marie Brizard, sua bebida preferida.

Fazem ainda parte das suas memórias o cinema e as viagens. Em Moçâmedes a família frequentava assiduamente o Cine­‑Moçamedes, não deixando ainda de ir às tão apreciadas sessões cinematográficas, ao ar livre, no Impala Cine. Reconhece, mesmo, que o cultivo do cinema terá influenciado o amor que o seu fiho lhe tem devotado, tendo fundado uma sala de cinema, em Peniche, localidade onde se veio a fixar quando teve de abandonar Angola. Refere, ainda, que o seu neto “Jonica” gosta de recordar que foram os avós que o levaram, a ele e ao primo Mário, pela primeira vez a uma sessão de cinema com cenas de nus, muito ousadas para os costumes da época, com a exibição de A Piscina (1969), de Jacques Deray e tendo por protagonistas Romy Schneider e Alain Delon. Acrecenta, por último, que tem quase a certeza que passavam lá filmes que na Metrópole não eram exibidos ou, quando o eram, tinham partes censuradas.

Das viagens recorda ter sabido do fim da II Guerra Mundial, em 1945, quando estava na ilha da Madeira, escala da sua primeira vinda à Metrópole. Com uma frequência média de dois anos visitava Portugal, aproveitando para conhecer minuciosamente o país, assim como Espanha, que percorreu de lés­‑a­‑lés, e algumas capitais europeias. As férias na África do Sul também são por si lembradas com um misto de prazer e de dor, dado ter sido numa destas que teve conhecimento da morte do sogro, que havia anos deixara o continente africano e residia em Lisboa.

Se o clima era propício a banhos, a proximidade do mar, residindo, uma grande parte da vida na Avenida Marginal de Moçâmedes, fazia com que a chamada “ida à praia” fizesse parte do seu espaço quotidiano. Noémia confidencia­‑nos, divertida, que o seu fato­‑de­‑banho preferido, branco e vermelho, de duas peças, a que hoje chamaríamos de biquíni, tinha a cor do Benfica. A expressão deste culto pelo seu clube desportivo de sempre evidencia­‑a exibindo­‑nos um exemplar da secção desportiva do jornal O Namibe, de 4 de Agosto de 1955, referindo a participação do clube na “Pequena Taça do Mundo”, e ao revelar­‑nos o fetiche de ver os jogos do clube sempre com o simbólico cachecol ao pescoço. Dizendo­‑se uma desportista e uma fanática benfiquista, não esquece um dos ídolos do futebol, o moçambicano Eusébio.

A forte ligação emocional à sua experiência de vida em África, consubstancia­‑se no interesse que teve em seguir o destino da moradia familiar, conservando um retrato da residência que a viu partir e da mesma ocupada na actualidade pelos serviços policiais da Namibe (actual nome de Moçâmedes).

Invocando o poeta António Gedeão, diremos que Noémia experimentou que tudo é foi, tendo a filosofia de vida suficiente para, reconhecendo a implacável lei do devir, entender que neste abrir e fechar de olhos/já todo o mundo é diferente.

 

1Designação de um dos bairros de Moçamedes, onde a família de João da Carma tinha, para lá da sua residência, a empresa ligada à actividade piscatória – frota de armação de pesca, fábrica de secagem de peixe e de produção de óleo e farinha do mesmo ­‑, a qual seria vendida, no final da década de 60, para ser construído o cais de Moçâmedes. Entende­‑se que o nome atribuído àquele bairro faça alusão ao registo de memórias, dado naquele local terem sido encontrados vestígios da passagem de corsários e mareantes, que esculpiram na rocha sinais da sua presença.