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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

ESTUDOS

Género e discurso proverbial no Portugal moderno

Isabel M. R. Mendes Drumond Braga* e Maria Elsa Mourão**

* Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

** Mestranda da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

 

RESUMO

Partindo do corpus paremiológico português da Época Moderna, designadamente das compilações de provérbios de António Delicado e de Rafael Bluteau procura perceber-se como se estruturam as relações de género e como se qualificam homens e mulheres no discurso proverbial de então.

Palavras-chave: género; homem; mulher; provérbios.

 

ABSTRACT

Based on the Portuguese paremiological corpus of Modern Age, including the proverbs compilations of António Delicado and Rafael Bluteau, this paper aims to understand how gender relations were structured and how men and women were qualified in the ancient proverbial discourse.

Keywords: gender; men; women; proverbs.

 

1. Os provérbios, enquanto elementos da cultura popular, são relativamente atemporais no sentido em que aparecem como o resultado da antiga sabedoria, impondo-se, por isso, como argumento de autoridade, veiculando acepções tidas como verdadeiras para diferentes tempos e espaços, não obstante remeterem mais para o passado do que para o comportamento futuro (Mattoso, 1987; Costa, 1987; Lopes, 1992; Viana, 1993; Braga, 2002). Podem assumir o aspecto de sugestões, conselhos, avisos e regras práticas e caracterizam-se, de entre outros aspectos, por se apresentarem no tempo presente, expressando verdades sempre válidas (Schmidt-Radefeldt, 1984, p. 216). Descrevem estados de coisas gerais, não admitindo leituras episódicas só compreensíveis num espaço ou num tempo. No entanto, se uns suscitam uma interpretação literal, outros desencadeiam a necessidade de uma interpretação figurada (Lopes, 1992, p. 21). São textos curtos, com uma estrutura concisa, anónimos, ou melhor, da autoria da respectiva comunidade linguística e cultural, os quais fazem circular uma experiência colectiva (Schmidt-Radefeldt, 1984, p. 213), o que não impede a semelhança de provérbios da autoria de comunidades diferentes (Ghitescu, 1991; Funk, 2000).

A paremiologia detém um acervo informativo privilegiado do senso comum, pelo que se pode considerar interlocutora dilecta no estudo das mentalidades, que formatam os quotidianos de cada época e de cada lugar. Em poucas palavras, aparecem-nos sistematizadas ideias que se quer sejam grandes verdades. José Pedro Machado captou lapidarmente esta realidade ao escrever: “As máximas são como os algarismos que compreendem grandes valores em poucas letras” (Machado, 1998, p. 95). Com efeito, os provérbios portugueses, tal como os de qualquer outro espaço, são um património edificado a partir da dinâmica e da essência do seu colectivo, ao longo de gerações, pelo que é intrínseco o seu valor informativo.

Os provérbios, apesar de eventual origem erudita, acabaram por ser consagrados e preservados pelo povo, principalmente através da transmissão e divulgação oral, ao longo de gerações. Encerram conhecimentos milenares feitos de experiência acumulada e seduzem pela acutilância, pedagogia, beleza das suas metáforas, muitas vezes impregnadas de humor e duplos sentidos. A sua origem perde-se no tempo. A própria Bíblia admite a existência de paralelismos doutrinários com a literatura afim, proveniente de outras civilizações, em especial com as do Crescente Fértil (Bíblia Sagrada, 1974, pp. 598-624), o que atesta a sua importância e o seu aproveitamento pelos mais diversos quadrantes. Daí a sua universalidade e omnipresença nos mais diversos contextos civilizacionais.

O Cristianismo Medieval português deu algum contributo na preservação deste legado, apesar da sua utilização, antes do século XV, praticamente se restringir ao clero. Desse tempo, foram contabilizadas 50 fórmulas proverbiais, por José Mattoso (Mattoso, 1987, p. 6). Teófilo Braga, num artigo da Revista Lusitana, divulgou diversos anexins coligidos de fontes dos séculos XIII a XVI, destacando: o Cancioneiro da Vaticana, o Livro de Monteria, de D. João I; o Leal Conselheiro, de D. Duarte; o Cancioneiro Geral, de Garcia de Resende; os Refranes, do Marquês de Santillana, e ainda a obra Ulyssipo, Eufrosina e Auleografia, de Jorge Ferreira de Vasconcelos, além de textos em poesia e em prosa de Gil Vicente, de Gonçalo Fernandes Trancoso, de Ribeiro Chiado, de Sá de Miranda, etc. (Braga, 1914; Delicado, 1923). Contudo, foi só com a literatura seiscentista e setecentista que essa preservação e divulgação se iniciaram de forma consistente, quando alguns autores começaram a dedicar obras a este assunto, designadamente: a Filosofia Moral de alguns Provérbios, 1640, de frei Aleixo de Santo António (Vasconcelos, 1986, p. 30); os Adágios Portugueses reduzidos a Lugares Comuns, de António Delicabíbliado, em 1651 e reeditada por Luis Chaves em 1924; o Florilegio dos Modos de fallar e Adagios da Lingua Portuguesa, de Bento Pereira, de 1655 (com posteriores edições inseridas na Prosodia); o Vocabulário Portuguez e Latino, […], de Rafael Bluteau, 1712- 1728, o qual contemplou os adágios e provérbios portugueses que, mais tarde, em 1780, constituíram a principal fonte da colectânea de Francisco Rolland, intitulada Adagios, Proverbios, Rifãos, e Anexins da Lingua Portugueza, Tirados dos melhores Authores Nacionaes, e recopilados por ordem Alfabética por F. R. I. L (Delicado, 1923, p. 18) e tantos outros. Posteriormente, os autores do Romantismo, ao valorizarem a cultura tradicional, pugnaram pela sua popularização e divulgação, como foi o caso de Francisco António da Cunha de Pina Manique, com a obra Ensaio Phraseologico, ou Collecção de Phrases Metaphoricas, Elegancias, Idiotismos, Sentenças, Proverbios e Annexins da Lingua Portugueza, publicada em Lisboa, no ano de 1856.

Não obstante o exposto, os provérbios têm sido bastante negligenciados no que aos estudos aprofundados sobre os mesmos se refere. Se, como acabámos de verificar, a primeira compilação de provérbios portugueses é a obra Adagios Portuguêses reduzidos a Lugares Communs, de António Delicado, publicada em meados do século XVII, D. frei Rafael Bluteau, no seu Vocabulario Portuguez e Latino, dado à estampa no início do século seguinte, apresentou, em muitas entradas, diversos provérbios relativos à temática em explicitação. Na verdade, entre as suas fontes encontra-se o próprio António Delicado, mas, mesmo assim, integrou outros provérbios que, entretanto, conseguiu arrolar.

Do padre António Delicado pouco se sabe. Foi presbítero secular e prior da igreja paroquial de Nossa Senhora da Caridade, em Évora. Nas-ceu, provavelmente, em 1641, em Alvito, mas nada consta sobre a data do seu falecimento. Já sobre D. frei Rafael Bluteau, as informações são muito abundantes. Viveu em Portugal 56 anos, a maioria dos quais nas Cortes de D. Pedro II e de D. João V. Nascido em Inglaterra mas originário de uma família francesa, este teatino (religioso da Divina Providência ou caetano), conhecido especialmente em resultado da sua obra referida o Vocabulario Portuguez e Latino, foi alguém dado a uma intensa actividade académica, alguma ligada às preocupações inerentes à produção do dicionário e outra à margem desse trabalho. Além disso, foi um pregador apreciado e, desde 1676, qualificador do Santo Ofício, ocupação que desempenhou com particular cuidado e esmero, ao mesmo tempo que não deixou de “trabalhar pela causa francesa”, contra a facção espanhola no Portugal de D. Pedro II e de D. João V. A sua acção esteve ainda ligada ao movimento de renovação cultural e económica contemporânea do chamado primeiro surto industrial português (Braga, 2005).

Os Adagios Portuguêses reduzidos a lugares communs, de António Delicado, integraram um extenso reportório de enunciados proverbiais, mais de 3600, agrupados por 59 temas e ordenados alfabeticamente, cujo fundamento o autor esclareceu:

 

“Os Adágios são as mais approvadas sentenças que a experiência achou nas acções humanas, ditas em breves e elegantes palavras. Compreende esta doutrina não só as coisas moraes, mas todas as artes e sciencias; e por isso, em mais das nações, procuram Auctores graves pô-las em memória e escrever d´ellas, como foram, entre os antigos, os philosophos Aristóteles, Crisippo, Plutarcho, Aristides, Theophrasto, e sobre todos todos El-Rei Salomão, que, entre os seus livros sapienciaes, nos deixou os dos Provérbios que é um dos Canónicos da sagrada Escriptura […]. Pelo que, vendo eu que, sendo a lingua portuguesa não menos abundantes d´estas sentenças que todas as outras da Europa, me dispús a colligir de vários exemplares esta pequena obra” (De-licado, 1923, p. 69). Acrescenta que só incluiu os provérbios que não atentavam a “decência e a utilidade publica” (Delicado, 1923, p. 70).

 

Convém sublinhar o facto da sinonímia proverbial ser abrangente, incluindo designações como: adágio, máxima, ditado, anexim, rifão, sentença, ditado, etc., mormente alguns especialistas discordarem da unicidade sinonímica, o que se verifica desde o século XVII. O próprio António Delicado referiu-se à questão alegando: “Também conheço as dúvidas que há sobre a verdadeira definição dos Adágios, na qual differem os Auctores, segundo várias opiniões, porque como os nascimentos dos Provérbios sejam muitos, não pode uma definição compreender a todos” (Delicado, 1923, p. 70). Não é propósito da presente exposição discorrer sobre o assunto, tendo ainda em presença que os dicionaristas da época contemplam sinonimicamente os vocábulos “adágio” e “provérbio” (Car-doso, 1613, p. 4v; Bluteau, 1720, p. 804), opta-se pela utilização dos dois termos, salvo nas abonações ou citações aduzidas.

Actualmente, os provérbios continuam a seduzir, sobretudo pelo enunciado da ideia, já que reflectem experiências de vida e outros aspectos do senso comum. São, pois, um veículo da cosmovisão do colectivo. Além disso, a unidade proverbial pode figurar em contextos diferentes, sem, no entanto, perder o seu substrato ideológico. Compete ao utilizador referenciá-la adequadamente. A tipologia proverbial tem carácter dicotómico, ou seja: provérbios do tipo descritivo e provérbios do tipo normativo.

 

 

2. Centremo-nos na temática proposta: género e discurso proverbial sobre as mulheres nos provérbios (Barrocas, 1988; Maciel, 1999; Mourão, 2011). A dicotomia homem/mulher é o vector determinante da sociedade humana, pois ambos são agentes dos acontecimentos no tempo e no espaço que percorrem e partilham. Sócios num ideário comum, mas diferentes na forma e no modo de o materializar no devir social. Ora, é nesse domínio diferenciado que reside toda a complexidade relacional dos seus agentes: homens e mulheres. São essas diferenças conceptuais, quer ao nível do género quer às que impendem sobre os grupos sociais, familiares, conjugais, etc., que actuam como dialécticas normalizadoras da estrutura organizacional e funcional da sociedade da Época Moderna. Sendo, pois, uma unidade agregadora, é, simultaneamente, discriminatória quanto às valências dos seus constituintes. Porém, essa desigualdade faz parte da representação mental do colectivo da época. Assim, a sociedade sendo um todo, obedece a uma ordem estabelecida e comummente aceite. Rafael Bluteau ilustra bem esse universo, quando explicita a denominação desse vocábulo:

 

“Companhia, união, aliãça. A sociedade he o baluarte da fraqueza humana, o remédio das suas dores, o alivio das suas penas. Tirada do mundo a sociedade, fica destruída a unidade do género humano, sem a qual não póde subsistir a vida. […]. Não necessita Deos de sociedade, o animal não he capaz della. Mas o homem, cuja natureza não he perfeyta como a de Deos, nem tão imperfeyta, como a do animal, tem capacidade para ser parte do corpo civil; & assim não há lugar no mundo, onde o homem não seja membro de algũa família, ou Republica. Há homens de bem, que não deixam de ter sociedade com maos. São como certas flores, que plantadas junto de alhos, & cebolas exhalam mayor fragancia. Este mal tem a sociedade humana, sempre se topa com gente, da qual se houvera de fugir, […]. Consiste a sociedade humana em três cousas, conversação, negocio, governo, também tem três bens, consolação na soledade, alivio no negócio, patrocínio nos infortúnios” (Bluteau, 1720a, pp. 684-685)

 

Portanto, a sua perspectiva traduz as lógicas e dinâmicas do ser social da época1. Ou seja: a sua falibilidade “o homem cuja natureza não é perfeita”, perante a omnipotência de Deus, ideação reforçada no provérbio “Homem põe e Deus dispõe”; o sentido de pertença/identidade “não há lugar no mundo, onde o homem não seja membro de algũ a família, ou Republica”; a sua interactividade “conversação, negócio, governo”, como algo que concorre para a unidade e subsistência humana; enquanto a solidariedade “consolação na soledade, alivio no negócio, patrocínio nos infortúnios”, é o elo, por excelência, do relacionamento e cooperação, fazendo jus à sinonímia “campanhia, união, aliança”.

Outro testemunho importante é a representação sociológica da mulher e do homem. Ambos protagonistas no devir humano, porém com funções e estatutos diferenciados, como alude o provérbio “Todos somos filhos de Adão e Eva, só a vida nos diferença” (Bluteau, 1720, p. 42). Segundo o mesmo autor, a mulher “é uma criatura racional do sexo feminino e que concebe dentro de si e pare” (Bluteau, 1716, pp. 543-544). Avoca alguns depoimentos, oriundos do passado histórico, sobre a imagem feminina. Uns, manifestamente desfavoráveis, enquanto outros realçam as suas prerrogativas, como se pode observar:

 

“Escreve Salamão, que entre mil homens achàra hum bom, entre todas as mulheres, nenhuma boa. Diphilo, famoso Arquitecto da Antiguidade, costumava dizer, que huma boa mulher e huma boa mula, & huma boa cabra, erão três más bestas. Dizia Sócrates, que hũa mulher fermosa & bem composta, era hum altar armado sobre hum monturo2. Demócrito, Philósofo de alta estatura, perguntado porque razão casára com mulher pequenita, respondeo: Do mal, o menos. Faz Tácito menção de huma ley que prohibia aos Romanos, que levassem comsigo suas mulheres para as terras, que hião governar. Não permittião os Athenienses, que suas mulheres fizessem compra alguma, que excedesse o preço de uma certa medida de cevada. […]. Abrahão chamava a sua mulher, irmã; a própria fragilidade do sexo pede que se trate com mais mimo, & respeito. Na República de Platão as mulheres erão chamadas para cargos políticos, & militares. Entre as leys fundamentaes de Roma, humas mandavão, que se desse às damas a mão direita; & que em matérias criminaes não fossem chamadas a juízo” (Bluteau, 1716, 533-544).

 

Aduz, ainda, que ambos os géneros têm as suas virtualidades e, por vezes, a mulher até pode superiorizar as do homem. Não deixa de ser curioso o facto de expressar que a atitude mais censurável na mulher é “não calar o que sabe”. No entanto, contrapõe que também existem homens assim (Bluteau, 1716, p. 543). Quanto à perspectiva da mulher casada, o autor projecta-a na seguinte frase: “é a coroa do seu marido” (Bluteau, 1716, p. 544).

Numa sociedade em que a educação feminina se baseava, essencialmente, na sua preparação para as funções conjugais, o governo da casa e as práticas espirituais, não é despiciendo o destaque que é dado a este estado, porquanto é nesta condição que assenta a trilogia funcional da mulher social: boa mãe; boa dona de casa, boa esposa. Reforça as características femininas com recurso à inclusão de 86 locuções proverbiais (Bluteau, 1716, p. 546). Destas, 77 encontram-se catalogadas no tema “mulher” da fonte em presença, quiçá um indicador da valência deste tipo de enunciados, como recurso de disseminação e aprendizagem de conceitos e normas instituídos. Eis alguns dos exemplares retirados: “A mulher de bom recado enche a casa até o telhado”; “A mulher e a gallinha, com sol recolhida”; “A mulher de bondade, outrem fale e ella cale”; “A mulher mal toucada, ou é formosa, ou mal casada”; “A mulher, o fogo e os mares são três males” (Bluteau, 1716, p. 546).

Já a ideação do homem social, desde logo, sobressai uma certa dicotomia conceptual. Ou seja, o “homem” ser humano ou homo (Bluteau, 1713, p. 44), isto é a palavra latina para essa designação, e o “homem” género masculino. Portanto, a imanência das duas perspectivas é bem perceptível, como se pode avaliar:

 

“O Homem, Criatura, que tem natureza humana, Animal racional, capaz da Graça Divina & Glória eterna. Aos moços não menos, que aos velhos compete o nome de Homem, porque significa toda a espécie geral. No capitulo 10 de Pynandro faz Trismegisto, em breves palavras, o maior panegyrico do Homem, diz que he hum Deos terrestre, mortal, assim como Deos he hum homem celeste immortal. Por isso disse Favorino, que no mundo não há cousa mayor que o homem. Os Theólogos chamam-lhe Omnis criatura, porque é o epílogo de todas; & nesta conformidade, Aristóteles chama-lhe Microcosmos, que val o mesmo que Mundo pequeno. É o homem coisa tão grande que o mesmo Deos se fez homem & todos os que a antiga gentilidade fez Deoses forão homens […]. O Homem, compendio das perfeiçoens do universo, he o epílogo das misérias. Em nascendo começa a morrer, & vivendo continua. Quer pobre quer opulento, quer súbdito quer Monarca sempre lhe falta alguma cousa, se não aprende não sabe; se sabe esquece; se espera, recea; se logra, despreza; se não consegue, desespera; considerações prudentes o governam, paixoens loucas o arrebatam: prefere a tudo a liberdade, por cousas de nada se cativa; sempre mal contente, do que tem, anda com a mira no que não tem; em tudo busca o descanso, em nada o pode achar; amigo finalmente, & inimigo de si próprio idolatra o seu corpo, & homicida de sua alma; he a mais bella, & mais frágil, a melhor, & a peor cousa do mundo. O homem, como verdadeira medida de tudo, deve occupar, como a virtude, o lugar do meyo. Até no corpo lhe está bem a mediania […]”. Homem (quando o queremos distinguir da mulher). Os homens, género humano. Homines, ou mortales”. (Bluteau, 1713, pp. 43-45)

 

Face ao que antecede, insiste-se na conceptualização prevalecente e binária de “homem”: o humano e o homem indivíduo masculino, não obstante o esclarecimento inicial, quando alega que “Aos moços não me-nos que aos velhos compete o nome de Homem, porque significa toda a espécie geral”. Mas, por outro lado, quando é referido, já no final, “Homem (quando o queremos distinguir da mulher) [...]. Os homens, género humano. Homines, ou mortalhes”, nada mais é acrescentado, o que é lídimo questionar se, eventualmente, a sua ideação ficou implícita na antecedente. Assinala-se, igualmente, a inclusão de 51 frases paremiológicas (Bluteau, 1713, pp. 46-47), das quais 46 fazem parte do tema “homem”, da obra utilizada como referência. Do rol, consignado pelo lexicógrafo, dá-se como exemplo: “Ao homem de esforço, a fortuna lhe põe hombro”; “Homem de palha vale mais, que mulher de ouro”; “Não há terra brava, que resista ao arado, nê homem tão manso que queira ser mandado” Bluteau, 1713, pp. 46-47).

 

3. Se tivermos em conta, o número de enunciados proverbiais consignados às questões de género, podemos verificar que António Delicado, entre os 59 capítulos temáticos, arrolou três categorias com interesse para o tema em estudo: “Casamento”; “Homem” e “Mulher”, registando-se um total de 410 ocorrências, distribuídas da seguinte forma:

 

 

De assinalar a concomitância de alguns enunciados, assim como a ambiguidade de outros, sobretudo no tema “homem”. Por exemplo: “Olhos verdes, em poucos os veredes”; “Quem antes nasce, antes pasce”. A sua semântica sugere a abrangência dos dois géneros e não somente o masculino. Para tornar mais expedita a análise, as ocorrências proverbiais das rubricas “homem” e “mulher” foram distribuídas pelos itens: “favorável” e “desfavorável”. Todas as que não se incluíam nestes parâmetros, foram inseridas no item “não aplicável”. O critério utilizado teve em consideração o seguinte:

    a) No item “favorável” constam as unidades proverbiais, cujo teor indicia aspectos ou atributos de pendor apropriado ou convencional, relativamente a cada um dos géneros;

    b) No item “desfavorável” incluem-se as unidades que revelam factores ou ditames negativos ou desapropriados aos cânones vigentes, sobre o homem e a mulher;

    c) No item “não aplicável” são introduzidos os enunciados, cuja interpretação não é linear ou, então, a imanência de conteúdo não é con-sentâneo com o dos parâmetros supramencionados.

 

Estes procedimentos tiveram suporte na análise preliminar de cada lexema, de forma a percepcionar qual o seu intento principal. Esta tarefa revelou-se algo complexa, porquanto a emanação da ideia, por vezes, não é explícita (dimensão eufemística ou metafórica). Por isso, foi necessário recorrer a suporte lexical, ancorado no Vocabulario Portuguez, e Latino de Rafael Bluteau, na medida em que apresenta uma expressiva sustentabilidade sinonímica da época. Dá-se como exemplo processual o adágio: “Dá-me pêga sem mancha dar-te-hei mulher sem tacha”. Neste caso, foi necessário determinar a associação da “pega” com a “mulher sem tacha (mácula)”3. Segundo a descrição no verbete respectivo, esta ave «tem as costas pretas e a barriga branca (Bluteau, 1720, p. 363). Portanto, características morfológicas que a definem. Assim, é lídimo inferir que não exis-tem pegas sem manchas (malhas), logo, por analogia, também não se encontram mulheres sem mácula. Em sentido figurado, a pega pode designar “Mulher falladeira” (Silva, 1813, p. 419).

Como já se aludiu, o provérbio é um texto breve, anónimo, institucionalizado e que compagina assunções comummente aceites como verdadeiras, pelo que subsiste como um elemento didáctico/doutrinal, na medida em que funciona como “mensageiro” do substrato axiológico do colectivo. Importa reiterar que o seu enunciado pode funcionar isoladamente, por exemplo, em antologias, dicionários, inscrições, etc. ou interactivamente, ou seja, em diálogos, narrativas, discursos, sermões, etc. Neste caso, as inferências produzidas decorrem da unidade em si, isto é, sem contextualização.

A maioria dos provérbios denota aspectos ou normas da esfera quotidiana, sobretudo no domínio das relações interpessoais, das hierarquias no seio familiar e da casa, do que é ou não convencional em matéria de comportamento, da aparência, etc. Em relação aos géneros, a partir do corpus considerado, desde logo sobressai que a rubrica “mulher”, comparativamente à do “homem”, é mais substantiva quanto ao número de locuções proverbiais, pois inclui 183, ao passo que, da segunda, fazem parte 121, o que dá um diferencial de 62 ocorrências. Ambos totalizam 304 registos. Veja-se o gráfico infra.

 

 

Como já foi mencionado, procurou agilizar-se o processo analítico, com recurso à distribuição das ocorrências proverbiais por três itens: “favorável”, “desfavorável” e “não aplicável”, dando-se conta que a maioria dos enunciados sanciona ou referencia os aspectos que não são modelares, através do burlesco, da censura, da ironia, da comparação, etc., daí o item “não favorável” albergar uma significativa parcela de ocorrências, principalmente as que dizem respeito à temática feminina, bem mais expressiva do que a do género oposto, como se observa no quadro que se segue.

 

 

Assim, no atinente ao tema feminino, não obstante reunir maior número de ocorrências (183), em termos percentuais detém a menor percentagem de incidências favoráveis, 8%, comparativamente às afectas ao tema masculino 16.5%. Pelo contrário, no item “desfavorável”, a percentagem da mulher é maior, isto é, 45%, em relação à do homem, que fica pelos 21.5%.

Quanto ao pendor conceptual, reportado nos enunciados afectos ao parâmetro “favorável”, os predicados femininos emergentes são indutores do cumprimento da norma e de boas práticas, sobretudo os que têm que ver com: diligência – “A boa fiandeira, de S. Bartholomeu toma a véla e a mais boa da Magdalena”; “A mulher de bom recado enche a casa até ao telhado”; bondade – “A mulher boa prata é que muito soa”, “A mulher de bondade, outrem fale e ella cale”; discrição/recato – “A mulher, que te quiser, não dirá o que em ti houver”, “Digna é de nome e fama a mulher, que não tem fama”; honra/dignidade – “Mulher louvada não tem espada e, se a tem, não mata”, “Quem senhora é em casa, senhora é pela vila chamada”; trabalho/zelo/dedicação familiar – “Bem fiei, pois meu filho criei”; “Dae-me mãe acautellada, dar-vos-hei filha guardada”.

Relativamente ao sexo oposto, as unidades paremiológicas, constantes no item “favorável”, evidenciam, em especial, uma conceptualização mais associada: à honra – “Homem honrado, antes morto que injuriado”, “De barba a barba, honra se cata”; ao trabalho – “Ao homem de esforço, a fortuna lhe põe hombro”, “Anda o homem a trote, por ganhar capote”; à bondade – “O bom homem goza o fructo”, “O bom soffre, que o mau não pode”; ao juízo/discernimento – “O moço de bom juizo, quando velho, é adivinho”. Recorde-se que, naquela época, o velho era uma figura bastante conceituada, pois detinha conhecimentos, frutos da experiência acumulada.

No item “desfavorável”, as frases proverbiais veiculam condutas censuráveis ou, então, a evitar, dos quais se salienta, relativamente à mulher: a garridice/ostentação – “A mulher e a cereja, por seu mal se enfeita”, “Cabelos a cantar não fazem bom enxoval”; a vaidade – “A mulher, quanto mais olha a cara, tanto mais destroe a casa”, “Dize-lhe que é formosa, e tornar se-ha doida”; a dissimulação – “Mulher sára e adoece, quando quer”, “Mulher se queixa, mulher se doe; mulher enferma, quando ella quer”; a beleza excessiva – “Formosura de mulher não faz rico ser”, “Tive formosura, e não tive ventura”; tagarelice – “Mulher palreira, diz de todos, e todos d'ella”, “A mulher e a pêga fala o que dizeis na praça”, “Nem o rouxinol de cantar, nem a mulher de falar”; falta de recato/decoro – “A mulher janeleira, uvas de parreira”, “Mulher muito louçã, dar-se quer a vida vã”.

Por outro lado, são expressivos os que retratam o género feminino com desconfiança, menosprezo e preconceito, como se pode avaliar pelos exemplos: “A mulher e o pedrado quer-se pisado”; “Aquella é boa e honrada, que está viúva sepultada”; “Da má mulher te guarda, e da boa não fies nada”; “Do mar se tira o sal, e da mulher muito mal”; “Não crieis galinha, onde a rapôsa mora; nem creias a mulher, que chora”; “Aquella é bem casada, que não tem sogra nem cunhada”; “Mulla, que faz him, e mulher, que fala latim, raramente ha bom fim”.

Outros provérbios perpassam informações e alvitram conselhos com o intuito de elucidar como se deve agir com a mulher: “A emperrada quer-se quebrada”; “A mulher brava, corda larga”; “Da laranja e da mulher, o que ella der”; “A mulher casada, no monte é alojada”; “A mulher e a gallinha, com sol recolhida”, “A mulla e a mulher, com affagos fazem os mandados”, de entre outros.

Neste parâmetro, as locuções proverbiais alusivas ao género masculino denotam uma diversidade de elementos conceituais que lhe são adversos. Designadamente: ao nível do comportamento – “Quem muito pede e muito bebe, a si danna e a outro féde”, “Homem folgazão, no trabalho sonnorento”; ao nível da aparência e morfologia – “Barba de três côres, barba de traidores”, “Falso por natura, cabello negro e barba ruiva”, “Ho-mem, que fala como mulher, livre-me Deus d'elle”; ao nível da condição social – “A homem pobre, ninguem o acommetta”, “Homem necessitado, cada anno apedrejado”, “Homem sem abrigo, pássaro sem ninho”.

Em relação ao item “não aplicável”, como já se aduziu, optou-se por incluir as ocorrências que suscitam dúvidas interpretativas, as que não apresentam indicadores inequivocamente positivos ou negativos e as que revelam um cariz monológico, como: “fusada miúda, a seu dono ajuda”. Contudo, algumas ilustram condutas convencionais, formulam avisos e outras considerações da esfera feminina, como se pode avaliar pela amostra que se segue: “Quando entrares na vila, pregunta primeiro pela mãe que pela filha”; “A mulher de outro marido e a burra com burrinho, nunca se mette a caminho”; “A mulher, que se fia de homem jurar, o que ganha é chorar”; “A moça como é creada, a estopa como é fiada”; “Com a mulher e dinheiro, não zombes, companheiro”.

Idêntica assunção acolhem as ocorrências associadas ao item do sexo masculino. Na maioria das unidades consideradas, ressai um conjunto de indicadores de amplo espectro, pelo que podem servir diferentes propósitos ou convenções. Por exemplo, “Mais vale só que mal acompanhado”, “Na terra dos cegos, o torto é Rei”, “Na face e nos olhos se lê a lettra do coração”, “Não vejas por extremo, nem chores dos alheios”. Além disso, são provérbios monológicos que remetem para uma conceptualização ou nor-ma pré-estabelecidas.

Face ao que antecede, numa análise comparada, observa-se que os provérbios indiciam ou valoram aspectos paradigmáticos de ambos os géneros. Porém, as lógicas de representação são diferenciadas. Veja-se, por exemplo, a questão do trabalho. Sendo uma incidência observada em ambos os géneros, revela, no entanto, substratos axiológicos divergentes, principalmente ao nível da dimensão comportamental e espacial. Enquanto o homem pode e deve “ser ousado”, “andar a trote” (ir para lon-ge/depressa), “de esforço”, no caso da mulher, o seu desempenho laboral tem uma lógica de eficiência passiva “Bem fiei”, “boa fiandeira”, confinando as suas acções ao espaço do lar, como se pode inferir pelo provérbio: “O homem na praça, e a mulher em casa. Portanto, esta dicotomia conceptual (fora/dentro; exposição/recato) sanciona/condiciona o modus vivendi e essendi da mulher e do homem no ambiente social, assunto que se retoma mais adiante, aquando do tema “casamento”.

 

4. Ao longo dos tempos, o casamento sagrou-se como uma das estruturas fundamentais da sociedade, em especial no que tangia à preservação e manutenção da célula familiar. Motivo pelo qual mereceu um estatuto jurisdicional do foro régio e do foro religioso. Não admira, pois, o facto de ter sido um tema recorrente da paremiologia e da literatura. Assim, parece consistente percepcionar se as duas vias dimensionam perspectivas comuns. Vejamos um texto contemporâneo da compilação de Delicado: a Carta de Guia de Casados, da autoria de D. Francisco Manuel de Melo, publicada em 1651. Nesta obra, o autor enfatiza os aspectos atinentes à concórdia e ao governo da vida conjugal: “Diz-me V.M. que se casa e que lhe dê eu, para se governar neste seu novo estado, alguns bons conselhos” (Melo, 1999, p. 19), advoga o valor do casamento, justapondo os bons e os maus motivos, com supremacia para os primeiros. Neste consentâneo, vai enunciando diversas situações que, no seu entender, podem problematizar a união, tais como: a desigualdade de sangue, de idade e de riqueza. Pressupostos que podem causar discórdia, caso não sejam considerados. Não havendo equidade, a vantagem deve pender a favor do marido, porquanto, ele tem de ser, em tudo, superior à esposa. Se esta se revelar com mais saber, posição social ou bens, ele perde toda a sua autoridade (Melo, 1999, pp. 23-24). Idêntico parecer é perpassado na paremiologia, especialmente no que tange à decisão: “Antes que cases olha o que fazes, que não é nó que desates”, “Casar, casar, soa bem e soa mal”, “Para mal casar, mais vale nunca casar”, “Se queres bem casar casa com teu igual”, “Triste da casa, onde a gallinha canta e o gallo se cala”.

Ainda sobre a diferença de idades dos cônjuges, D. Francisco Manuel de Melo enfatiza a questão, aduzindo que se o marido for muito velho, pode figurar como pai da esposa. Refere, ainda, que existem três cartas de casamento no mundo: “Casamento de Deus” – o do mancebo com a moça, possibilitando a concórdia e a alegria; “Casamento do diabo” – da velha com o mancebo, o que dá azo a permanentes discussões; “Casamento da morte” – o da moça com o velho, o que apreça a morte do marido por causa das desconfianças e excessos (Melo, 1999, pp. 23-24). Sobre este assunto, os provérbios também são elucidativos: “Quem tarde casa, mal casa”, “Casar e compradar, cada um com seu igual”, “Com coisa velha nem te cases nem te alfaies”, “Ao velho recém-casado, rezar-lhe por finado”. Esclarece ainda que todos aqueles que casam com mulheres muito jovens têm a possibilidade de as ensinar a seu contento. Mesmo assim, se forem demasiado jovens pode acontecer que, pela sua infantilidade, ainda estejam muito arreigadas à família (Melo, 1999, p. 28). Porém, como diz o provérbio: “Filha desposada, filha apartada”. Neste sentido, aconselha o afago discreto, pois é algo que concorre para que a jovem esposa se esqueça do seu anterior seio familiar, repartindo-o por palavras e obras. Sugere: “O vestido quando se não pede o brinco que se não espera, a saída em que se não cuida; um não sair de casa uma tarde, um recolher mais cedo uma noite, (e se disser, um levantar mais tarde uma manhã, não mentirei) farão logo chaníssimo o caminho para aquele esquecimento, ou desvio dos pais, quando ao marido lhe convenha” (Melo, 1999, pp. 28-29). A frase proverbial “A mula e a mulher com afagos fazem os mandados” representa essa perspectiva.

Idênticas idiossincrasias são observadas em alguns provérbios, tais como: “Homem de palha vale mais do que mulher de ouro”, “Ao marido serve-o como amigo, e guarte d'elle como inimigo”; “Pelo marido vassoura, e pelo marido senhora”; “Cresce a mulher com bom marido, como o ouro bem batido”; “A mulher e o pedrado quer-se pisado”. Nesta as-sunção, admite-se que algumas locuções proverbiais tenham o propósito de advertir a mulher para a condição de casada, como: “Mãe, que coisa é casar? Filha: fiar, parir e chorar”; “Por affeição te casaste, a trabalhos te entregaste”; “Casa-te, e verás perder o somno, e nunca dormirás”.

Para D. Francisco Manuel de Melo, o amor pode ser um factor de discórdia entre os casais, caso ele falte ou sobeje. Assim, recomenda que se deve amar a mulher com certo recato e contenção. Todo o casado que ama em excesso é cativo um do outro. Na sua óptica, existem dois amores entre as pessoas. O primeiro é aquele que emerge, independentemente da von-tade, e que produz desejo, posse, ciúme e desordem. O segundo é o que desperta paulatinamente, através do conhecimento e convívio. Por outro lado, o marido deve inculcar na esposa que ele é a pessoa mais importante da sua vida, ao contrário da sua, cuja prioridade é a honra e só depois a mulher. Em jeito de exemplo, cita: “Diz um antigo ditado: Quem não tem marido não tem amigo. Diz outro: Quem tem mulher tem o que há mister. E na verdade assim é entre os bem-casados” (Melo, 1999, pp. 30-31), ao que se junta “Quem casa por amores, maus dias, noites peores”.

Em suma, D. Francisco Manuel de Melo apresenta uma vasta gama de estereótipos femininos, cuja finalidade é a de prevenir ou minimizar os seus efeitos na esfera conjugal. Ao fazê-lo, as evidências sugerem que o seu pendor discursivo repassa os paradigmas femininos vigentes, igualmente corroborados por algumas unidades proverbiais. Na maioria, ancorados no preconceito de que a mulher, em relação ao homem, deve ter um estatuto inferior, uma recorrência exarada em exemplos como estes: “O marido tenha as vezes de Sol, em sua casa, a mulher a de Lua” (Melo, 1999, p. 26) ou “Homem de palha vale mais do que mulher de ouro”; “A ele sustente o poder, a ela a estimação. Ela tema a ele, e ele faça que todos a temam a ela” (Melo, 1999, p. 26), “Mulla, que faz him, e mulher, que fala latim, raramente ha bom fim”.

 

5. Ainda que rapidamente, olhemos para o discurso proverbial sobre género no contexto da sociedade islâmica, através do olhar de frei João de Sousa ou Yuhannā ad-Dimasqī (c. 1730-35-1812). Este homem, natural de Damasco, foi filho de pais católicos, criado numa das missões de Barbadinhos franceses e residente em Portugal desde 1749 ou 1750. Dedicou parte significativa da sua vida ao estudo, ensino e tradução do árabe falado e escrito. Poliglota, conhecia e falava francês, italiano, castelhano, maltês, português, além de um pouco de latim, turco e persa, mas tinha como língua materna o árabe. Foi autor de vasta obra, manuscrita e impressa, designadamente de textos motivados pelo seu trabalho de professor e de intérprete oficial de árabe, função que desempenhou desde 1784, passando posteriormente a oficial honorário e intérprete régio, em 1786 e, finalmente, a oficial do quadro do Ministério dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, em 1792. Foi assim que acompanhou as missões diplomáticas marroquinas em Lisboa e as portuguesas em Marrocos e Argel, realizadas na segunda metade do século XVIII. De todas estas embaixadas elaborou diários, relações ou relatos recentemente publicados (Braga, 2008). Além do exposto, Frei João de Sousa interessou-se por provérbios em três manuscritos. Um pequeno, com as frases em português e árabe e algumas em castelhano (por exemplo “achaque el viernes pera no ayunar”, ou “al hombre mayor dar le honor”), outro maior, em princípio destinado à publicação, em árabe e em português e, finalmente, uma cópia deste em árabe e latim (Braga, 2010). Em qualquer dos casos, aparentemente, o autor mais não fez do que as traduções. Detenhamo-nos no manuscrito mais completo, em árabe e em português, intitulado Provérbios e Sentenças Arabicas com tradução Portugueza para se Imprimirem quando houver occasião.

A paremiologia traduzida evidencia o temor a Deus, “o principio da sapiência é o temor a Deus”, exalta a bondade “o tirar o mau da sua maldade é mais dificultoso do que [tirar] a tristeza do triste”, valoriza a sabedoria “a sabedoria é ornato dos moços e as cãs a magnificência dos velhos”, aconselha discrição “quem guarda o seu segredo consegue o seu desejo”, ou “quem muito fala, erra”, também na variante “ver, ouvir e calar”, salienta a prudência “a separação é melhor que a má sociedade”, isto é, “antes só que mal acompanhado” ou “procura o vizinho antes da casa e o companheiro antes da estrada” ou ainda “não acordes o cão que dorme” e chama a atenção para a humildade “aquele que recebe a dádiva não deve reparar no que se dá” ou, numa variante “a cavalo dado não se olha para a pele”, instigam à cooperação “uma mão lava a outra e as duas lavam o rosto” e à pontualidade “não atrases teu negócio de hoje para o dia de amanhã” e não esquecem de referir que nada é imutável “não há bem durável nem mal que se não acabe”. A contenção e o conformismo, numa sociedade que não deseja contestação, foram características igualmente presentes “o estômago é depósito (casa) de todas as enfermidades, a abstinência, porém, é o melhor remédio” ou “por dois modos se perdem os homens, pela abundância do dinheiro e pelo muito falar” e “sê tu contente com o que Deus te deu”, respectivamente.

As mulheres foram igualmente objecto de atenção. Pelo menos quatro provérbios lhe foram dedicados: “quem deseja ser sábio não se deixe possuir das mulheres”, “a mulher sem vergonha é como o comer sem sal”, “fia-te na cobra e não te fies em mulher” e “a mulher e o vidro estão em perigo”. Em causa estão a valorização de uma conduta ilibada, o entendimento das mulheres como seres ignorantes, malévolos, enganadores e frágeis, aspectos que tinham repercussão não só no discurso proverbial mas também nos discursos morais e eclesiásticos, típicos de uma sociedade misógina, como antes verificámos. Receiam-se as mulheres e tenta-se que sejam objecto de controlo, alegando a sua condição de seres fracos que necessitam de protecção, simultaneamente valoriza-se a sua conduta, pois se esta for duvidosa, a honra, um dos valores estruturantes da sociedade de então, fica em perigo.

 

 

6. Em suma, o discurso proverbial, sendo um amplo e vetusto espólio conceptual, alberga, por inerência, toda a complexidade adjacente. Apesar das asserções proverbiais serem cumulativamente atemporais e universais, logo unidades cristalizadas, são, igualmente, passíveis de adequação ao contexto. Ou seja, o seu valor semântico é fixo, a contextualização é que pode ser diferenciada. Além disso, a sua tipologia: descritiva ou normativa; a sua estrutura frásica: literal ou metafórica, são especificidades adicionais, que concorrem para essa dificuldade.

Com base nas considerações já expendidas, dá-se conta que a imagem feminina é alvo de uma imagem abrangente. Tanto pode ser ao nível sociológico, cujos paradigmas lhe conferem um estatuto inferior; quanto ao nível comportamental, onde as suas condutas são ajuizadas em função das normas estabelecidas, quer morais quer sociais; quanto ainda ao nível morfológico, na medida em que a aparência também tem que respeitar o modelo convencionado (nem muito feia, nem muito formosa). Portanto, a realidade desvendada através da paremiologia circulante e com eco na Carta de Guia de Casados, é-lhe bastante adversa. Por um lado, subsiste um elevado grau de exigência quanto às normas de conduta que lhe estão subjacentes e que funcionam como um código não escrito da ética vigente: ser submissa, honrada, casta, diligente, boa mãe, boa esposa, etc., a par de assunções demeritórias (má, prolixa, garrida, etc.) pré-estabelecidas. Por outro, delimitam o seu espaço de acção, bem como o seu estatuto, albergados, sobretudo, na perspectiva dicotómica social: homem superior, mulher inferior, dado axiológico que consubstancia no adágio “Onde can-ta o galo não canta a galinha”. Fora da sociedade europeia, em concreto no Islão, como acabámos de verificar, a situação é rigorosamente semelhante.

 

Referências Bibliográficas

Fontes

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Notas

1Não obstante a publicação da obra ter ocorrido a partir de 1712, ela traduz o trabalho de mais de 30 anos, iniciado em 1668, cuja pesquisa decorreu da consulta de mais de dois mil volumes, como relata o autor: “em fazer-te a enumeraçam dos dias, & horas que gastei na composiçam deste Vocabulário; só digo que trabalhei nesta obra mais de trinta annos […]. Nestas poucas folhas offereço ao público para a intelligencia, propriedade, & uso das palavras Portuguezas, & latinas a substancia de mais de dois mil volumes”. Cf. Bluteau, 1712, p. LXIX.

2Este termo designa «montão de esterco ou outras imundícias». Cf. Bluteau, 1716, p. 571.

3Este termo, em sentido moral, significa “Deslustre, Deshonra, cousa que escurece a gloria, a fama, o nome”. Cf. Bluteau, 1716, p. 281.