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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.33 Lisboa  2015

 

NOTA DE ABERTURA

Nota de abertura

Isabel Henriques de Jesus

 

A Revista Faces de Eva – Estudos sobre a Mulher dedica-se, tal como o nome indica, à publicação de artigos de investigação, de estudos ou de outras rubricas que tenham as mulheres como elemento central. Assenta, contudo, num pressuposto editorial de inclusão dos homens, quer como autores quer como elementos do seu corpo redactorial e/ou editorial. Desde o seu início que conceptualiza o feminismo como uma forma de construção cívica e democrática, inclusiva de todos os seres humanos, mesmo reconhecendo a necessidade de sistematicamente alertar – e denunciar – para o risco de valoração diferenciada e hierárquica dos elementos que constituem essa categoria geral. Por isso, nos orgulhamos de a publicar de seis em seis meses, acentuando a necessidade de estarmos permanentemente alerta para a situação das mulheres em Portugal, mas também em outras geografias, ao mesmo tempo que recordamos que os Direitos das Mulheres são fundamentalmente Direitos Humanos de cujo respeito se pode esperar um ganho civilizacional.

Sobre este tema convocamos Regina Tavares de Silva1 que, na Assembleia da República no dia 10.12.2014, dia dos Direitos Humanos, se lhe referiu nos seguintes termos:

 

“É verdade que tive o privilégio de percorrer um caminho profissional e também de compromisso cívico na área dos Direitos das Mulheres e da Igualdade de Género e é muito gratificante receber esta medalha que o reconhece. Considero, porém, que não é apenas esse trabalho que ela contempla; é também o de muitas pessoas com quem, ao longo das últimas décadas, trabalhei a nível nacional e internacional, que defenderam e defendem a visão que esta medalha consagra e legitima – a visão de que os direitos das mulheres são direitos humanos.

Por isso, partilho-a com todas essas pessoas, com especial menção de uma delas, que nesta área foi pioneira, entre nós e a nível internacional. Refiro- me a Maria de Lourdes Pintasilgo, que, na minha juventude, me fez despertar para a temática da situação das mulheres e do seu direito à igualdade.

A percepção de que os direitos das mulheres são direitos humanos é óbvia para nós, mas nem sempre assim foi. E ainda hoje o não é em muitas regiões do mundo. Por outro lado, durante muito tempo, as questões relativas às mulheres e à sua procura activa de cidadania plena a todos os níveis da vida em sociedade foram encaradas, não como questões com efectiva legitimidade política, mas antes como causas sociais, marginais à política, preocupações de grupos específicos, grupos de feministas, tantas vezes ridicularizadas e até vilipendiadas.

E, no entanto, já há mais de 100 anos, 102 para ser mais exacta, uma mulher notável e não suficientemente reconhecida no nosso país dizia: “Ser feminista é apenas ser justo e ser lógico”. Refiro-me a Ana de Castro Osório, e tal como ela, eu diria hoje que considerar que os direitos das mulheres, tal como os dos homens, são direitos humanos é apenas ser justo e ser lógico.

Uma justiça e uma lógica que o tempo e a história foram progressivamente impondo, mas em que desde o início se perfilou uma visão – e foram visionárias algumas das defensoras de direitos iguais para as mulheres – uma visão que tinha a noção dos direitos humanos como horizonte último de todo este processo.

Uma destas visionárias, a médica e activista Adelaide Cabete, há perto de um século, dizia isto mesmo, e dizia-o com eloquência, em resposta a quantos se assustavam com as reivindicações e os discursos de igualdade para as mulheres: “Não se assustem… porque nós caminhamos para a Justiça, para a Verdade, para a Luz, para o Direito Humano”.

Era este o horizonte, mas o tempo passou e foi apenas em 1993 que a comunidade internacional no seu conjunto reconheceu e deu voz e legitimidade a esta visão, de que os direitos das mulheres são direitos humanos. Foi em Viena, na Conferência das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos, e esta foi uma frase emblemática que marcou o espaço e o tempo da própria Conferência, por força da acção concertada de muitas Organizações Não Governamentais. E o documento final aprovado reconhece que “Os direitos humanos das mulheres são uma parte inalienável, integrante e indivisível dos direitos humanos universais”.

Uma verdade óbvia para nós hoje, mas que não o foi na altura para todos os que participaram naquele fórum. Bem pelo contrário; foram muitas as hesitações e as resistências que testemunhei, com alguma surpresa, relativamente a uma frase tão evidente. E a formulação de tal conceito foi objecto de controvérsia não apenas nesta altura; vi-a ser renovada em ocasiões posteriores, mas felizmente resolvida por aquele princípio que vigora no âmbito das negociações de Nações Unidas, da chamada “agreed language”, isto é, que linguagem acordada não se altera. Um estranho acordo, mas que, neste caso, teve as suas vantagens!

O mesmo reconhecimento deste princípio foi mais pioneiro na Europa. Efectivamente, foi na segunda metade da década de 80 que esta reflexão teve lugar de relevo no âmbito do Comité Intergovernamental do Conselho da Europa que se ocupava das questões relativas à Igualdade entre Mulheres e Homens. Como presidente desse Comité, na altura, tive o privilégio de dar voz a essa visão e de propor formalmente que estas matérias fossem abordadas no âmbito, não das questões sociais como era o caso, mas no âmbito, mais nobre e mais profundo da Organização, o dos Direitos Humanos.

Uma visão que se traduziu também numa Declaração solene do Conselho em 1988 – ainda hoje um texto de referência – que diz que “a igualdade de mulheres e homens é um princípio que decorre dos direitos da pessoa humana…

Este princípio é hoje um dado adquirido, pelo menos na teoria; é adquirido que, quando se fala de Igualdade entre Homens e Mulheres ou de Igualdade de Género, se fala de algo substantivo e fundamental, que tem que ver com a qualidade da democracia e com a promoção e a protecção dos direitos humanos.

Efectivamente, é de direitos humanos que se trata quando se fala de discriminação no mercado de trabalho ou desigualdade salarial, ou de penalização por motivo de maternidade, ou de feminização da pobreza – são direitos económicos e sociais não cumpridos.

É de direitos humanos que se trata quando se marginaliza – e há tantas formas subtis de marginalização – do poder político ou dos níveis de decisão, política ou económica, a parte feminina da humanidade – são direitos civis e políticos não cumpridos.

É de direitos humanos que se trata quando se exerce a violência contra as mulheres, seja ela física, psicológica, sexual ou financeira, no domínio do público ou do privado, da família, do trabalho, da rua ou dos média – são direitos fundamentais à integridade, à dignidade pessoal, à liberdade; e, quantas vezes, direito à vida.

É esta a doutrina hoje geralmente aceite, embora ainda com reservas em algumas regiões do mundo e ainda que nem sempre se tirem todas as consequências dos princípios.

É, por isso, uma visão que tem de afirmar-se e aprofundar-se ainda mais; a bem de uma sociedade mais equilibrada, mais justa, mais democrática e mais humana.”

 

Notas

1Licenciada em Filologia Germânica, ex-presidente da Comissão Feminina e da Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres. Consultora internacional na área da igualdade de género.