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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

LEITURAS

Falci, M. B. e Melo, H. P. de (2012). A Sinhazinha Emancipada. Eufrásia Teixeira Leite (1850­‑1930). A Paixão e os Negócios na Vida de uma Ousada Mulher do Século XIX. Rio de Janeiro: Vieira & Lent Casa Editorial ltda, 168 pp.

Eva-Maria von Kemnitz


A sociedade brasileira do século XIX poderá ser caracterizada por dois fenómenos, o do esclavagismo e o do machismo. As mulheres encontravam­‑se relegadas ao universo doméstico com pouca ou nenhuma projecção social, salvo casos bastante raros. São disso exemplos senhoras de sociedade como a Marquesa de Santos, a Princesa Isabel ou a Condessa de Barral, a preceptora daquela Princesa.

Na segunda metade do mesmo século sobressai a figura singular de Eufrásia Teixeira Leite (1850­‑1930) cuja memória é resgatada pela pesquisa minuciosa das duas autoras do volume em apreço, a primeira especialista em história social e a segunda, uma economista.

O que diferencia Eufrásia em relação às jovens da época e do mesmo meio social é o seu comportamento independente, reforçado pela educação que recebeu e o papel de mulher de negócios que cedo assumiu.

Filha do bacharel em Direito, Joaquim José Teixeira Leite, e de sua mulher, Ana Esmeria, Eufrásia era a mais nova dos três filhos do casal de que, tendo falecido o menino, ficaram duas irmãs, a mais velha, Francisca, e ela própria. Eram aparentadas com importantes famílias de fazendeiros do café e da banca da região fluminense.

Ambas receberam uma esmerada educação em casa que abarcou as línguas, as ciências e a música. A biblioteca, em parte herdada e em parte completada ao longo da vida por Eufrásia, é reveladora de múltiplos interesses.

Com a morte súbita do pai, em 1870, ocorrida pouco tempo depois do falecimento da mãe, ficaram órfãs. Em 1873, a fortuna herdada pelas irmãs, constituída principalmente por apólices de títulos da Dívida Pública do Empréstimo Nacional, acções do Banco do Brasil e depósitos bancários, ficou substancialmente aumentada com a herança da avó, a baronesa de Campo Belo.

As irmãs, Francisca com 25 anos e Eufrásia com vinte, eram, pelos padrões da época, demasiado “velhas” para se casarem e será interessante notar que o pai não terá acertado, em vida, casamento para nenhuma delas. Assim, por força das circunstâncias eram milionárias, educadas com requinte, órfãs e solteiras.

Provavelmente abaladas com a situação da perda dos país, e quiçá seguindo o sonho dos brasileiros bem­‑nascidos, decidiram viajar para França, acabando por aí se estabelecer. Chegaram a Paris em 1873 onde puderam desfrutar de uma vida, social e cultural, intensa. Inicialmente, moraram na rue Presbourg, mas em 1898, Eufrásia adquiriu uma bela moradia na rue de Bassano e que, segundo o inventário feito por ocasião da sua morte, em 1930, dispunha de mobiliário variado, tapetes, lustres de bronze, quadros e outras obras de arte, além de pratas e porcelanas.

Entre 1874 e 1926, Eufrásia viveu em Paris, com apenas duas estadas relativamente curtas no Brasil. Partilhou a vida com a irmã Francisca, até 1898, data da morte daquela. Sabe­‑se que as irmãs mantinham estreitas relações com as elites brasileiras em Paris, incluindo a família imperial, mantendo Eufrásia uma relação amistosa com a Princesa Isabel. As irmãs Teixeira Leite contribuíram generosamente para a Sociedade de Beneficência Brasileira em Paris.

Além da vida social, Eufrásia levantava­‑se cedo e passava horas a escrever cartas, não apenas de natureza social mas principalmente, gerindo os seus negócios.

Através dos retratos conservados, sabemos que Eufrásia era bonita, mas acabou por não se casar. Na primeira viagem a França, em 1873, conheceu a bordo Joaquim Nabuco1, apaixonaram­‑se e estiveram prestes a casar­‑se. Foi Eufrásia que rompeu a relação em 1874, que, todavia, durou ao todo treze anos, até à ruptura definitiva em 1886. Talvez, nunca se venha a saber porque tal assim aconteceu. Suposições apontam para as diferenças de fortuna entre ambos, pressão da família Teixeira Leite contra um casamento desigual ou simplesmente a recusa de Eufrásia em assumir o papel tradicional de mulher: casar e ter filhos, ir viver no Brasil e ter que prescindir da sua liberdade. Facto é que Eufrásia não voltou a refazer a sua vida amorosa.

A faceta diferenciada de Eufrásia é o seu envolvimento nos negócios. Viveu dos seus rendimentos e foi pioneira na gestão de um portfólio de títulos e acções de uma grande diversidade de empresas em diversos sectores da economia e de vários governos. Segundo registos conservados, a fortuna das irmãs em 1873 rondava cerca de 800 contos de reis. No fim da sua vida a fortuna da Eufrásia soma cerca de 8 mil contos de réis.

Segundo testemunhos da época, Eufrásia tinha uma grande visão financeira e sabia aconselhar­‑se. Possuía na sua residência um telefone com uma linha directa com a Bolsa de Valores de Paris. Nos anos 20 aquando da expansão urbana do Rio de Janeiro na orla marítima, Eufrásia idealizou e investiu num grande negócio imobiliário. Nos últimos anos quando, já regressada à cidade natal, recorria ao seu agente em Paris que tratava dos negócios sob a sua orientação.

Devido ao seu débil estado de saúde, regressou ao Brasil em 1926, partilhando a sua vida entre Vassouras, sua cidade natal, onde mantinha a casa de família, a Chácara de Hera, e o Rio de Janeiro. A ideia de regressar a França não chegou a se concretizar.

A correspondência conservada mostra claramente um excelente discernimento de Eufrásia face aos mercados, em particular no seguimento da crise de 1929. Uma mulher lúcida de 80 anos a gerir a sua fortuna até ao fim.

A preocupação com o destino dos seus bens, fez Eufrásia redigir o seu testamento, um em 1900 e, outro, em 1901. Foram anulados pelo último, redigido em 1930, nos termos do qual os beneficiários da sua fortuna seriam habitantes carenciados de Vassouras, sua cidade natal no Estado do Rio de Janeiro.

Este testamento pode ser lido como uma peça de política social, focando a educação e saúde. Ao abrigo do seu testamento, foi criado o Instituto Profissional Feminino de Vassouras, com capacidade para receber 50 educandas, e o Instituto Profissional Masculino Dr. Joaquim José Teixeira Leite para 50 rapazes. A gestão foi entregue à Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Vassouras que, em 1935, iniciou a construção do Hospital Eufrásia Teixeira Leite, inaugurado em 1941.

Apesar de contestado por uma parte da família, o testamento de Eufrásia foi cumprido segundo o desejo dela, revertendo na sua quase totalidade para fins filantrópicos. A Chácara de Hera é hoje um museu.

Eufrásia Teixeira Leite foi uma mulher bem diferente das suas contemporâneas, como claramente o mostra a singular trajectória dos seus 80 anos de vida. Afirmou­‑se como dona do seu destino, apoiada na sua educação e fortuna, numa época em que as mulheres eram sujeitas ao comportamento “socialmente correcto” de casar e procriar. Optou por viver fora do seu país, consciente do latente conflicto entre os valores da sociedade brasileira e as suas escolhas, mas não rompeu os laços afectivos. No fim da vida doou a sua imensa fortuna para construção e manutenção de instituições de apoio social na sua cidade natal.

 

Notas

1Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araujo (1849­‑1910), jornalista e político brasileiro.