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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versão impressa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

LEITURAS

Adão, D. M. (2013). As Herdeiras do Segredo. As Personagens Femininas na Ficção de Inês Pedrosa. Alfragide: Texto Editores, 224 pp.

Catarina Inverno


Como afirma Maria Lúcia Dal Farra no prefácio de As Herdeiras do Segredo. As Personagens Femininas na Ficção de Inês Pedrosa de Deolinda M. Adão, a obra pautar­‑se­‑á pela coerência íntima, essa mesma coesão que encontramos na leitura da mostra literária que fundamenta a tese da ensaísta pelo universo ficcional de Inês Pedrosa: nas palavras de Adão “tudo isso lhe emana, como se fosse um eco da realidade vivida e experimentada” (Adão, 2013, p. 9), como se “quase um reconhecimento de si mesma, uma confiável conferência da sua identidade feminina e portuguesa, e talvez a certeza de que, malgrado a diáspora, não se tornou outra – não se traiu a si mesma” (Adão, 2013, p. 10), tal como reafirma a autora do prefácio que introduz o ensaio. O estudo compreende­‑se – nesta proximidade ficcional possível entre a autora, as personagens e as leitoras – um convite não apenas à leitura de uma das referências mais traduzidas da atual literatura nacional, como também à reflexão e à (re)descoberta das questões da feminilidade e, por conseguinte, de temas transversais ao domínio dos estudos de género.

Na base do ensaio de Deolinda M. Adão encontram­‑se os romances iniciais de Inês Pedrosa habitados por personagens diversas que revestem a crítica e espelham o mundo focado pela autora na sua reflexão e na intenção da mesma: A Instrução dos Amantes com que se apresenta em 1992, Nas Tuas Mãos de 1997 e Fazes­‑me Falta publicado em 2002. É nestes meandros que se entrecruzam ciências oriundas de áreas dos estudos sociais, fundamentalmente da psicologia, antropologia, política, história e literatura – esta última de interesse particular da ensaísta, doutorada em Línguas e Literaturas Luso­‑Brasileiras pela Universidade de Berkeley na Califórnia, onde é hoje executive director (Portuguese Studies Program) no Institute of European Studies.

O desafio que podemos compreender nos seis capítulos que estruturam a obra de Adão será a conceção do percurso que concretize o (re)encontro identitário na interpelação ficcionada do real. Como afirma Adão, a questão basilar ao primeiro capítulo, “e até certo ponto de todo o texto, é o modo como se constrói a noção de identidade individual e colectiva, e como se herdam e propagam as marcas identitárias utilizadas para essa mesma construção” (Adão, 2013, p. 17). Assim é abordada a construção multifacetada da identidade considerando, por exemplo, não só noções teóricas da Teoria de Enunciação ou Speech Act Theory de J. L. Austin, revisitadas por John Searle, assim como conceptualizações de Judith Butler. O segundo capítulo focar­‑se­‑á então na construção social e literária do feminino, nomeadamente traçando um percurso da sua conceção no universo literário português, recolhendo “noções de identidade feminina desenvolvidas em textos com os quais a ficção de Inês Pedrosa dialoga” (Adão, 2013, p. 39) e analisando “a forma como os parâmetros de feminilidade estabelecidos nesses textos entraram no imaginário cultural português, bem como no da autora” (Adão, 2013, p. 39). Neste contexto são feitas referências às cantigas de amor, cantigas de amigo e de escárnio e maldizer, a Mariana Alcoforado, a Florbela Espanca, às Novas Cartas Portuguesas, entre outras. Os capítulos seguintes – III a V – analisam as obras basilares de Inês Pedrosa já referidas, primeiro justificando o valor da escrita (o “como” e o “porquê” como definido pela ensaísta) através de A Instrução dos Amantes nessa “descoberta dos segredos que a adolescência encerra e (…) de métodos e meios narrativos, com particular enfoque na construção e desenvolvimento das personagens dentro do universo recriado pelo romance e de acordo com o fio condutor de narrativa” (Adão, 2013, p. 73); Nas Tuas Mãos na intenção de refletir sobre as personagens nas margens do feminino, isto é, “em relação ou oposição à construção retórica do feminino levada a cabo durante o Estado Novo” (Adão, 2013, p. 97) e em resultado “da tensão entre os mitos portugueses de feminilidade, tanto literários como culturais e (d)a apropriação e (d)a reconstrução destes mitos pelo Estado Novo de forma a forjar uma identidade feminina que se insere dentro da estrutura da retórica nacionalista do regime”; e, por fim, em Fazes­‑me Falta na desconstrução do paternalismo “incrustado na sociedade portuguesa [que se] apresenta uma alternativa desestabilizante para essa estrutura patriarcal” (Adão, 2013, p. 163). É no último capítulo, o comummente designado conclusivo, que Adão sintetiza o seu estudo no respeitante a construções e representações de feminino, reafirmando nas primeiras linhas o objetivo de “estabelecer uma relação entre a ideia de mulher e as vias utilizadas para a construção e representação dessa noção identitária, e entender de que modo essa «identidade feminina» se projecta na realidade social da mulher portuguesa contemporânea” (Adão, 2013, p. 171). Ou seja, define como sendo um dos maiores desafios assentar o seu estudo no campo literário, esse que segundo Pedrosa será uma “forma de levantar questões relevantes para a sociedade” (Adão, 2013, p. 171). Tratar­‑se­‑á assim de vozear uma temática tão silenciada ao longo de anos, décadas, séculos. Como manifesta a autora de As Herdeiras do Segredo. Personagens Femininas na Ficção de Inês Pedrosa, “as questões levantadas neste estudo limitam­‑se a espelhar as preocupações propostas pela mesma autora [Inês Pedrosa] nos textos” (Adão, 2013, p. 172) abordados. É assim que compreende a romancista, contista e cronista com cujo trabalho fundamenta o seu ensaio como sendo “a voz que quebra os grandes silêncios e cria personagens que surgem de espaços fechados em vários casos desde o silêncio profundo da morte, para se inscreverem no espaço da sociedade portuguesa e participarem activamente no processo de construção colectiva do feminino” (Adão, 2013, pp. 172­‑173).

A referir ainda que, como se enlaçando este desenho feminil literário de Portugal, se unem as duas autoras – Deolinda M. Adão e Inês Pedrosa – numa semelhante conclusão, essa verbalizada em entrevista da segunda à primeira aquando de um encontro em Berkeley em 2006 e que sumaria a necessidade de “fazer um bocado o ponto da situação do que era ser mulher em Portugal” – a primeira num tom ensaístico e a segundo na tradução ficcional do real.