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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

(AUTO)-RETRATO

Eva­‑Maria Von Kemnitz

 

 


A escrita flui em função de inspiração, mas neste caso tenho que confessar que falar de mim própria, não estando nos meus hábitos, constrange­‑me. Fazê­‑lo por escrito, é­‑o, naturalmente, ainda pior. Porém, perante um convite muito particular, irrecusável diria, procurarei corresponder ao que me foi solicitado, “auto­‑retratando­‑me” através dos meus interesses, anseios e projectos por realizar, explicando como vim a colaborar com o grupo de Faces de Eva e porque acabei por me dedicar também a estudar a questão da mulher nas sociedades árabe­‑islâmicas.

O meu primeiro contacto com a Senhora Professora Doutora Zília Osório de Castro, se a memória não me falha, data ainda dos anos 80 quando a Senhora Professora coordenava o Círculo de Estudos sobre o Século XVIII. Na altura, propus­‑me realizar uma pesquisa sobre o Orientalismo em Portugal que não teve seguimento. Voltamos a encontrar­‑nos, anos mais tarde, em 2001 quando passei a frequentar o Seminário das Ideias Políticas por ela ministrado. Foi nessa altura, que fui aliciada para colaborar também no grupo de Estudos sobre a Mulher, criado pela Professora Zília em 1991 e que, mesmo para uma pessoa de fora, tinha uma notória visibilidade através de várias iniciativas promovidas e da publicação daquela revista. Há dias, ao folhear um dos antigos números da revista encontrei esta dedicatória: Para a Eva-Maria, relembrando o dia do nosso primeiro encontro que, espero, que seja o início de uma boa colaboração – Zília Osório de Castro, 30/01/2001. Esta colaboração, que se revelou muito enriquecedora para mim, tanto em termos pessoais como profissionais, tem­‑se mantido com altos e baixos, em função do tempo disponível, mas sempre marcada pelo entusiasmo e imenso interesse.

Em função da minha formação académica de base em Filologia Oriental (especialização em Estudos Árabes e Islâmicos) pela Universidade de Varsóvia, 1976, estive sempre particularmente sensível à maneira como os média, tanto em Portugal como no estrangeiro, retratavam as sociedades árabe­‑islâmicas o que me levou a escrever ensaios como “Muslims as seen by the Portuguese press 1974­‑1999: Changes in perception of Islam” (2002) ou “Les Ismailis dans la presse portuguaise, 1975­‑2010” (2014) porquanto os média, com raras e honrosas excepções, manifestavam um desconhecimento crasso e, frequentemente manipulando as informações de modo a perpetuar uma visão destorcida da realidade, acentuando o atraso, a corrupção e, após 11 de Setembro de 2001, o terrorismo como algo intrínseco ao Islão. No capítulo do atraso sócio­‑económico, a exemplificação mais corrente era a situação da mulher, caricaturada pelo uso de indumentária particular, vista como um dos sinais da sua submissão.

Por isso, a possibilidade de publicar nas páginas de Faces de Eva [nº 11/2004 ou nº 13/2005] abriu uma nova e estimulante perspectiva de poder contribuir para um entendimento mais esclarecido dessas realidades sócio culturais e do seu questionamento.

Desde o tempo da faculdade, sempre me interroguei sobre a diversidade e complexidade de situações vividas pelas mulheres muçulmanas. Contrariamente ao entendimento erróneo profundamente enraizado no Ocidente, o advento do Islão, constituiu, precisamente, uma verdadeira revolução social que, em grande parte, se reflectiu no estatuto da mulher, melhorando­‑o substancialmente.

O antigo costume praticado, em tempos difíceis, na Arábia pré­‑islâmica, de enterrar vivas as meninas recém­‑nascidas, foi abolido.

A primeira característica do Islão é a equidade, sendo o mais importante critério a fé sincera, colocando, assim, em pé de igualdade homens e mulheres. A fé e a piedade abrem à mulher as portas do Paraíso e sendo a religião a chave de acesso ao quotidiano, a mulher podia, assim, aspirar a uma situação de igualdade no seio da sociedade dos crentes.

A diferenciação fisiológica traduzida pela sua condição física mais frágil, o que obriga o homem a conceder­‑lhe a protecção – qiwama,está na origem de funções diferenciadas atribuídas à mulher na sociedade.

É importante lembrar que o Islão concedeu à mulher direitos que no Ocidente, se tornaram seu apanágio apenas no século XX. Referimo­‑nos à possibilidade de dispor dos seus bens, de herdá­‑los e de pedir o divórcio.

A poligamia praticada no Islão, é vista no Ocidente como uma forma de subalternização da mulher, esquecendo que a sua razão de ser tinha a ver com as condições da vida da época do advento do Islão, em que a guerra era um fenómeno frequente e em que uma mulher só, viúva ou órfã, não tinha possibilidade de sobrevivência. O Alcorão limitou o número de mulheres legítimas a quatro, com a condição de um tratamento equitativo de todas. Actualmente, na maior parte dos casos, os casamentos monogâmicos são a regra.

O papel da mulher enquanto mãe é particularmente reconhecido e valorizado, remontando à tradição do Profeta Muhammad que pelo seu exemplo a sanciona.

Todavia, não podemos deixar de reconhecer que entre este quadro ideal, decorrente dos princípios do Islão, e a realidade, existe uma discrepância na medida em que a interpretação das leis estabelecidas pelo Alcorão era feita por homens, fortemente influenciados pelas práticas culturais assentes na tradição do patriarcado. Os direitos individuais prescritos pelo Islão colidiam com o colectivismo do direito consuetudinário com um peso muito grande nas sociedades do Médio Oriente.

Será ainda interessante olhar com atenção para os diversos papéis desempenhadas pelas mulheres nas sociedades islâmicas, que contradizem abertamente o imaginário ocidental corrente. Para começar, basta olharmos as mulheres do seio familiar do Profeta que tornaram perene os modelos de comportamento social da mulher muçulmana: duas das suas mulheres, Khadidja e Aisha, a filha, Fátima, ou a neta, Saqina.

A primeira mulher, Khadidja, foi uma mulher de negócios, uma empresária, diríamos hoje, uma mulher independente e que sempre apoiou o Profeta na sua missão. Aisha, a mais nova, destacou­‑se como transmissora da tradição e também como lutadora no campo político, tendo formado um grupo de apoiantes contra um dos califas eleitos. A filha predilecta, Fátima, é lembrada como um modelo tradicional de filha e de mulher, dedicada à sua família. A neta Saqina distinguiu­‑se como uma mulher corajosa, não renegando as suas convicções mesmo em situação de perigo.

Ao longo da história, notabilizaram­‑se muitas mulheres como soberanas, o caso de Shadjdjar al­‑Durr (1249) no Egipto, Turkan Khatum em Kirman (1222) ou ainda a Sultana Fatma Bike, no Khanato de Qasim (1681), mulheres que mantinham salões literários como a princesa al­‑Wallada em Córdoba, mulheres mecenas cuja generosidade esteve na origem da fundação de universidades, como Fatima al­‑Fihri, fundadora, em 859, da Universidade de Fez e cujo nome perdura na actualidade através do programa Erasmus Mundus Fatima al­‑Fihri, destinado para apoiar o intercâmbio académico entre universitários dos países do Norte de África e da Europa, fundadoras de madraças ou complexos hospitalares como por exemplo o fundado por Mihrimar, filha do Sultão Otomano Sulayman. Sem mencionar outras, muitas delas anónimas, que exerciam profissões como copistas, recitadoras do Alcorão ou cantoras.

No mundo actual nos países islâmicos, numerosas mulheres exerceram cargos de primeiro­‑ministro como Benazir Bhutto, Tansu Ciller, Megawati Sukarnoputri, entre outras. Outras mulheres notabilizaram­‑se como cientistas, escritoras e artistas. Em muitos países islâmicos, devido às vicissitudes da história, as mulheres passaram a prestar serviço militar regular, casos da Jordânia, Argélia, muito antes de isso acontecer na Europa. Em 2003, a Iraniana Shirin Ebadi, recebeu Prémio Nobel da Paz pela defesa dos direitos humanos e, novamente em 2011, a Yemenita Tawakkol Karman, activista política, foi galardoada com o Prémio Nobel da Paz.

O alargamento do âmbito das actividades organizadas pelo grupo de Estudos sobre a Mulher, incluindo no programa da Escola de Verão, nos seus seminários etc. a problemática da mulher no espaço árabe­‑islâmico, foi um desafio que me motivou para desenvolver a pesquisa sobre mulheres muçulmanas pioneiras de actividades em diversos domínios, desde a política às artes, constituindo uma via paralela à difusão da cultura árabe­‑islâmica no âmbito universitário em Portugal, projectando esses conhecimentos junto de públicos diferenciados. Uma reflexão decorrente dessa experiência, uma reflexão comparativa entre o universo europeu/ocidental e o árabe­‑islâmico permite apreciar melhor as diferenças, mas também apreender as similitudes, na certeza, porém, de que mulheres constituem um potencial de desenvolvimento sócio­‑cultural primordial em qualquer uma das sociedades.