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Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher

versión impresa ISSN 0874-6885

Faces de Eva. Estudos sobre a Mulher  no.32 Lisboa  2014

 

ENTREVISTAS

Maria José de Quevedo Pessanha

 

 

Maria do Céu Borrêcho e Susana Cámara


Maria José de Quevedo Pessanha nasceu em Berna, a 22 de Agosto de 1937, de mãe suíça e pai português então adido na Legação portuguesa. Naquela cidade, em casa dos avós maternos, viveu o período conturbado da Segunda Guerra Mundial, tendo frequentado a escola suíça­‑alemã de Sulgenbach, onde iniciou os primeiros estudos. Essa época deixou marcas profundas na sua formação e na vida futura, quer pelo convívio com mutilados quer com crianças refugiadas e órfãs, de costumes e hábitos religiosos diferentes. Tais experiências, se bem que dolorosas, despertaram­‑lhe o interesse pela influência religiosa no comportamento humano. No fim da guerra, vem para Portugal onde estuda no Colégio das Doroteias, situado então na Rua Artilharia Um, em Lisboa. Nessa fase, interessa­‑se pela leitura de estudos sobre a religião dos povos indígenas da Amazónia brasileira, neles se apercebendo da diversidade dos costumes, mitos e crenças desses povos. Decide então visitar essa espantosa região brasileira. O que fez em 1962. Soube, mais tarde, ter sido uma pioneira no estudo etnológico das tribos indígenas do Xingu. Por isso, foi convidada para fazer palestras sobre o tema em Belém do Pará, Rio de Janeiro e São Paulo. Para prosseguir os estudos, trabalhou como intérprete em diversos Congressos, já que dominava seis línguas. De regresso à Europa, trabalhou como fotógrafa e intérprete free­‑lancer na ONU, em Genebra, e em organizações privadas.

Para o trabalho etnográfico realizado no Brasil, contou com os apoios do Prof. Vitorino Nemésio, do Dr. Rui Trigueiros e do jornalista Augusto Pinto. Porém, a partida para o Japão, em virtude do casamento com o diplomata português João de Deus Bramão Ramos, não lhe permitiu publicar o resultado dessas valiosas pesquisas.

Já separada do marido, regressou a Genebra, onde educou as filhas e organizou conferências para o Centro Europeu da Cultura, então sob a direcção de Denis de Rougemont, designados por Les Rencontres du Lundi, de que foi vice­‑presidente durante 14 anos, e também para outras associações, não ligadas a organismos internacionais. Com as filhas independentes, aceitou o desafio da construção de uma clínica de medicina geral nos arredores de Katmandu, no Nepal, e estando a mesma a funcionar, concentra os seus esforços num centro de acolhimento destinado a crianças extremamente pobres e com deficiências motoras, igualmente nas proximidades de Katmandu.

 

A que se deve esse seu interesse pelo Nepal?

Esse interesse ficou a dever­‑se à minha primeira viagem ao Nepal, em 1975. Do Japão, onde o meu marido exercera as funções de primeiro secretário na nossa embaixada em Tóquio, dirigíamo­‑nos à Suíça onde ele iria abrir o Consulado­‑Geral em Genebra e assumir o cargo de Cônsul­‑Geral. A caminho, parámos no Nepal. Neste pequeno país, entalado entre a China e a Índia, com uma vez e meia a superfície de Portugal, somente um terço é densamente habitado por 28 a 30 milhões de indivíduos.

O Nepal é dotado de uma natureza grandiosa pela diversidade das suas montanhas que cercam a planície de onde emerge a capital de Katmandu. Treze dos catorze picos mais elevados do mundo são nepaleses, entre eles o celebérrimo Monte Evereste (8848m).

Nestas terras, tão próximas do céu, dir­‑se­‑ia que o tempo parou. Nelas sobrevive a arquitectura milenar da etnia Newar, com o característico trabalho em madeira que sob o cisel se transforma numa filigrana exuberante. Nas praças extraordinárias, sucedem­‑se, junto ao palácio real, templos em tijolo e madeira, em que os telhados sobrepostos, à semelhança dos pagodes, sustentados por cariátides, se destacam do céu. Chegada de um Japão austero a caminho de uma Suíça compassada, que embate deambular nesta atmosfera! As imagens como que desfilam: a garotada galga a correr os imponentes monumentos, escalonados, e procura, com destreza, evitar esbarrar nos sadús, homens santos com vestes cor de açafrão, pacatamente instalados nos degraus; com cestas à cabeça, mulheres em punjabis e saris multicolores, caminham num porte majestoso entre vacas sagradas, burros e cães pelados; o baile das vassouras das mulheres da limpeza, ziguezagueia, por entre a multidão, em busca dos excrementos, enquanto outros se entregam ao sono dos justos à sombra de um templo ou de uma árvore.

 

Porque escolheu este país para construir a obra social de que se ocupa?

Direi ter sido o Nepal a vir ter comigo. O meu interesse pelo budismo nascera no Japão. Estando a viver, com as minhas duas filhas, em Genebra, na Suíça, fui à conferência de um mestre budista tibetano. Os folhetos aí distribuídos, referiam que o mestre Gyalwang Drukpa tinha sido reconhecido, por Sua Santidade o Dalai Lama, como representante supremo da linhagem Drukpa (uma importante escola do budismo tibetano, nascida no séc. XI, com cerca de 300 mosteiros sob a sua égide, e cuja autoridade religiosa se estende ao reino do Butão, vizinho do Nepal). O folheto propunha uma ida ao Siquim, a norte da Índia, para uma visita a mosteiros e grutas, onde grandes Yogis, na sua imensa solidão mística, se isolaram. Inscrevi­‑me. Esta região dos Himalaias deve o seu nome ao chá, plantado em encostas, atapetadas, por pequenos arbustos.

Do Siquim fomos ao Mosteiro de Amitabha, residência do Mestre Gyalwang no Nepal, erguido num recinto a 16 km da capital. Do templo, avista­‑se um panorama espectacular, sobre a bacia de Katmandu. À sua volta, ergue­‑se um conjunto de edifícios destinados às freiras, no mais puro estilo tibetano.

Nessa região, densamente povoada, o acesso aos hospitais torna­‑se extremamente difícil. Para alcançar o Mosteiro vindo de povoações remotas, torna­‑se imprescindível, uma caminhada de um a dois dias, acrescida de uma descida de duas horas a pique, por um carreiro penoso, até atingir a estrada principal, de onde o preço de ida e volta de um táxi ao hospital mais próximo, equivale a uma semana de salário de um operário.

Decorridos cinco anos, numa das minhas idas ao Nepal, o Mestre, levando­‑me pelo colarinho, pôs­‑me à disposição um terreno, no recinto do seu Mosteiro. Propunha­‑me nem mais nem menos, nele construir uma clínica, a seus olhos, indispensável para os habitantes das redondezas. Fiquei perplexa. Construir uma clínica! Com a minha falta de conhecimentos, em medicina e arquitectura, bem como da língua e dos costumes nepaleses! Num país em que eu não conhecia vivalma! E, como angariar fundos? Tudo isto deu­‑me vertigem. O Mestre confortou­‑me: “Não se preocupe, eu estarei a seu lado, terá o amparo do mosteiro, um carro, um tradutor e um chofer à disposição”.

Desconcertada, mas confiante, aceitei o desafio! Uma oportunidade única, uma experiência de uma riqueza invulgar. Se, naquele dia, eu não tivesse aberto o jornal e visto o anúncio da conferência, quanto teria vindo a perder! E foi assim que esta extraordinária aventura humanitária começou.

 

Como é o ambiente geral no Nepal?

O alastrar da pobreza, omnipresente, reflecte­‑se nos rostos sombrios de um povo dorido. O número de crianças abandonadas cresce. Todo este sofrimento deve­‑se à presença de terroristas, que se dizem maoístas, pertencentes a um movimento criado na Índia. As suas incursões ameaçadoras nas propriedades agrícolas, para delas se apoderar, aterrorizaram o camponês que abandonou a terra e refugiou­‑se na capital, crente de nela encontrar maior segurança. Katmandu concebida para cerca 500 mil habitantes hoje aproxima­‑se dos 850 mil.

O Nepal ocupa o 154º lugar no índice mundial do desenvolvimento humano! Um dos mais miseráveis da Ásia. O salário médio anual é de 1.100 dólares e nas zonas rurais, onde se concentra 80% da população, sobrevive­‑se com cerca de um dólar por dia. O Nepal foi desde sempre um país agrícola, mas a falta de produtividade da terra obriga­‑o a tudo importar, principalmente da Índia, da Tailândia e da China. A vida tornou­‑se mais cara do que na Índia. Um quilo de maçãs equivale a um dólar e cinquenta o salário de um dia e meio de um operário. Quão longe vão os tempos de 1975 em que, mesmo pobre, o Nepal era auto­‑suficiente! Ir­‑se de um centro histórico a outro, era um belo passeio de bicicleta por entre terrenos de cultivo, hoje desaparecidos, sob uma floresta de edifícios construídos à toa e sem sombra de planeamento.

Embora Katmandu mantenha felizmente o seu fascínio, com o aumento da população, o tráfego tornou­‑se caótico e a cidade suja e com uma poluição inquietante. Decorridos dois anos com chofer e carro, lancei­‑me nos transportes públicos. Levava por vezes três horas, entre a boleia do operário na sua moto e os autocarros. Estes, grandes ou pequenos de três rodas e sem suspensão, circulam a toda a velocidade nas ruas esburacadas entre nuvens de pó. Sem poder escapar aos solavancos e às consequentes nódoas negras, os passageiros mandam­‑nos parar com uma simples pancada da mão no tejadilho.

Decidi então alugar um Jeep. Mas, em 2008, o diesel era inexistente, gás só no mercado negro e a gasolina, restrita a dois litros, era distribuída em dias alternados, às motos, aos carros privados, aos táxis e às camionetas, com cerca de doze horas de espera no posto de venda. Perante a situação, um monge me acompanhava. Chegados à bomba, a minha súplica tinha êxito, o bombista fornecia­‑me discretamente cinco litros do precioso elixir e o monge esboçava um sorriso. Eis­‑nos pois de retorno, felizes por, no ziguezaguear, em primeira e segunda, não ter batido num pedinte, vendedor ambulante, carroça, camião, autocarro, moto, bicicleta, carros privados ou vaca sagrada. Imagine, um trajecto de vinte minutos era feito em duas horas! Ter Buda a seu lado, na bomba e no tráfego ajuda! A electricidade é ainda fornecida de forma intermitente durante oito horas, e não havendo muda­‑se de bairro, mas ao chegar­‑se ela pode já ter desaparecido. Na clínica, se por milagre consigo uma linha, o telefone toca, mas o interlocutor ou não atende ou não consegue ouvir­‑me.

Em 2006, 2008, ano de eleições, e 2010, as greves sucederam­‑se. Os transportes estavam limitados às ambulâncias, aos carros da polícia de manifestantes e às motos táxis guiadas por inválidos! Precisei de voltar à Suíça e por isso de renovar o visto para a Índia. O que impunha fazer fila, às cinco da manhã, frente ao Consulado, que abria às nove e após uma caminhada nocturna de duas horas. Finalmente, o aeroporto abriu. Ao som de altifalantes aos berros, homens, mulheres, crianças com bandeiras que, ao depararem com o grupo insólito liderado por uma estrangeira, composto de dois monges, a minha filha Alexandra e três coolies esmagados sob o peso da nossa bagagem, recuaram respeitosamente para nos deixar passar! Uma hora e meia até ao aeroporto. A pé!

 

Há problemas graves que afectem o povo e, consequentemente, se reflictam na saúde das populações?

Desde 1999 que assisto à degradação da situação política e económica. O ambiente político tornou­‑se extremamente confuso, tanto para os estrangeiros como para os nepaleses.

A miséria reflectiu­‑se em condições sanitárias inimagináveis e num número crescente de doenças pulmonares, causadas pela poluição. Em 2006, ao dar­‑se a revolução e a destituição do rei, inúmeros hospitais e centros de saúde públicos fecharam. Nos corredores e nas salas dos restantes hospitais os doentes acumulavam­‑se à espera de serem atendidos. Hoje existem hospitais de luxo, com equipamentos vindos da Alemanha e dos Estados Unidos, a que a população sem meios não pode aceder.

 

Existem castas como na Índia? Qual é a sua religião?

As cerca de 102 castas e grupos étnicos tornam a situação extremamente complexa. Na construção, empregamos pessoas de casta idêntica para tornar a colaboração possível. Indivíduos de castas inferiores não têm acesso a certas escolas públicas, nem de comer e de beber quando na vizinhança de pessoas de castas superiores. Embora o sistema das castas esteja oficialmente abolido, os dalits, que reúnem a maioria das castas inferiores, prosseguem na luta pela igualdade. No entanto, grande número de nepaleses agarram­‑se a esta tradição por lhes oferecer uma protecção milenar. A religião oficial é o hinduísmo praticado conjuntamente com o budismo.

 

A sua associação chama­‑se Surya Association Drukpa Suisse, pode explicar­‑nos o significado do nome?

O deus do sol, Surya, simboliza a luz e Drukpa por a associação colaborar com o Mestre da linhagem Druk, Suisse (Suíça) porque lá resido. Para angariar fundos, a criação de uma associação torna­‑se imprescindível pois permite aos doadores descontarem os donativos nos seus impostos.

 

Que dificuldades encontrou ao construir a clínica?

Foram infindáveis! Devemos o projecto a arquitectos franceses mas a fachada foi concebida por mim de acordo com a edificação típica nepalesa. Fiz previamente um estudo fotográfico das casas, dos seus ornamentos, portas e janelas. Escolhi pessoalmente os materiais: tijolos, pedra, sanitas, portas, janelas, tubos para a canalização ou electricidade. Os meus conhecimentos na tubagem estão quase nivelados aos de um canalizador profissional!

Se bem que o Nepal seja um dos países mais ricos em água, o sistema público de abastecimento restringe­‑se à capital e mesmo assim por vezes falta. Por isso compramo­‑la litro a litro, trazida diariamente por um camião cisterna, que também me dava boleia. Ocorreu­‑me canalizá­‑la a partir do rio, que singra aos pés do morro, mas as condutas viriam a ser cortadas e a água desviada.

Na minha ausência, a construção avançava à toa, ao regressar restava­‑me demolir ou aceitar.

 

Como conseguiu financiar a construção da Clínica

Criada a Associação, telefonou­‑me uma senhora desconhecida a pedir informações sobre o projecto e a solicitar documentos. Costumava assistir às conferências, organizadas por um comité, a que pertenço, patrocinado por um protocolo com o Estado de Genebra, e eis que me surpreendeu com um donativo de 100.000 francos suíços! O primeiro. Que alegria! De seguida, fiz apelo a municípios, fundações, dei conferências, organizei vendas e, para além disso, envio uma newsletter anual a amigos e conhecidos.

 

Iniciou a construção da Clínica, em 2005, e inaugurou­‑a, em 2009. Desde essa data, quem assume a direcção?

A Clínica é dirigida pelo Dr. Thierry Dupart, generalista francês, e médico da embaixada de França, que atende os doentes com a sua mu­lher a Dra. Cécile Dupart. O Dr. e a Dra. Guinet, um casal de dentistas, nela trabalham durante seis meses, sendo substituídos por uma médica dentista nepalesa. Os médicos residem em apartamentos no edifício da Clínica.

 

A quem se destina a Clínica?

Sobretudo aos habitantes da região, mas acolhe qualquer paciente. Decepcionados com os Xamãs, vêm por vezes de longe acompanhados por familiares, que alojamos na clínica, e tratando­‑se de um caso grave levamos o doente a um hospital.

 

As consultas e os medicamentos são gratuitos ou os pacientes têm de os pagar? E os gastos da clinica?

Os médicos são voluntários. Como único gasto, temos o salário da dentista nepalesa. A contabilidade, a limpeza e a manutenção estão a cargo das freiras e os remédios são fornecidos gratuitamente por firmas farmacêuticas europeias. Para os doentes valorizarem o trabalho dos médicos, pedimos uma contribuição simbólica para as consultas e os remédios.

 

Apesar de, inicialmente, se destinar à medicina geral, a Clínica Druk White Lotus abrange alguma especialidade médica?

Não, mas pontualmente temos os chamados Eye Camp.

 

Como funcionam esses Eye Camp?

Com a inauguração da Clínica em 2009, fizemos o primeiro Eye camp de operações às cataratas. Renovamo­‑lo anualmente em fins de Fevereiro. No Nepal, mais de 70% da cegueira é devida a cataratas provocadas pela luminosidade intensa, a hereditariedade, a carência de alimentos, a falta de higiene e a água poluída.

Para as intervenções, as freiras fazem apelo a donativos via internet. Os gastos incluem o transporte, uma a duas noites na clínica, a operação, a medicação e as refeições. O número de intervenções roda as 400 e varia consoante as contribuições. Camiões atulhados de doentes vêm das zonas rurais, com anciãos, jovens e crianças. As freiras do Mosteiro fazem os testes de visão e assinalam­‑nos aos médicos. As operações retransmitidas no ecrã permitem ao paciente assistir ao desenrolar da intervenção. A alegria dos operados é indescritível. Que emoção vê­‑los cantar, dançar e, mesmo idosos, pular! O espectáculo do seu júbilo recompensa os nossos esforços.

 

A Fundação Champallimaud atribuiu o prémio do ano 2013 ao Tilganga Institude of Ophtalmology de Katmandu que colabora nos vossos Eye Camp. Como se processa essa colaboração?

Dois médicos do Tilganga operam, simultaneamente, com o material trazido por eles. Ambos são voluntários, mas as despesas do material são­‑lhes retribuídas. Sem o saber, fui convidada para a cerimónia de entrega desse prémio anual. Foi uma grande surpresa! A própria Fundação desconhecia a colaboração dos laureados com a nossa Clínica.

 

Para além da Clínica, tem mais alguns outros projectos ou obras assistenciais?

Como a Clínica está em boas mãos, posso concentrar­‑me na construção de um lar para crianças deficientes motoras. A Disabled Helpless Children New Life Nepal é uma ONG fundada, em 2010, por Amrit Pudasaini, cujo trabalho acompanho há anos. A sua dedicação às crianças sensibilizou­‑me, e por ser importante para a estabilidade desta juventude, que vivia na rua e dormia em lixeiras, ter um lugar da sua pertença, comprámos um terreno e, em Janeiro deste ano, iniciámos a construção.

Amrit foi incentivado por australianos, canadianos, franceses e neozelandeses que assumem na íntegra as despesas do lar e das escolas. Pessoalmente, ocupo­‑me da construção.

 

Qual é o objectivo desse Centro?

Acolher 60% de crianças, desde os seis anos, com deficiências motoras, para benefício de todas. A saúde e a educação são prioritárias. Nesse sentido, frequentam escolas privadas, já que, após cinco anos de ensino público mostram que não sabem ler nem escrever. Findos os estudos, o Centro oferece­‑lhes uma formação e ajuda­‑os a encontrar um emprego.

 

Porque escolheu ocupar­‑se também de crianças com deficiências motoras? Qual é a situação dessas crianças? Existem muitas nessas condições?

Essas crianças nunca me deixaram indiferente devido ao facto de ter sofrido sequelas numa anca desencadeadas à nascença e de ter tido um grave acidente.

No Nepal, existem 2.400.000 deficientes sendo a maioria deficientes motores, de que somente 5% têm acesso à escola. Uma criança diferente é, para grande número de nepaleses, um castigo dos deuses. Frequentemente estão escondidas até aos quatro ou cinco anos de idade, depois, atormentadas pela pobreza e pelo sentimento de vergonha, as famílias abandonam­‑nas. Há três anos, no Mosteiro de Amitabha, vi uma menina desamparada com cerca de cinco anos. Ao findar do dia, continuava só. Então, as freiras acolheram­‑na. Nestes três anos, os pais não apareceram. Que trauma!

 

Nas suas relações com o trabalho, encontrou dificuldades especiais por ser mulher e ser estrangeira?

Por ser estrangeira, os preços voam. Na companhia de monges, viam­‑me como uma rica doadora ou uma protegida do Mestre. Fui sempre respeitada, mas certamente mais espoliada. E, durante a construção da Clínica, os preços foram duplamente controlados.

 

Qual é a situação da mulher no Nepal?

É patética. Há jovens vendidas e abusadas. Há a tendência dos homens para desprezarem a mulher e há muita violência, para o que contribui o álcool consumido puro em quantidade massiva. O machismo perdura. Os homens têm mais facilmente acesso à saúde e à educação. Daí, a mortalidade das mulheres ao darem à luz ser a terceira mais elevada do Sudeste Asiático e, segundo as estatísticas mundiais, a mortalidade de crianças com menos de um ano ter sido de 41,75% em 2013.

Na construção, por exemplo, o transporte dos tijolos e do cimento era feito por mulheres. Eu substituí­‑as por homens. Não imagina o sorriso delas! Mas infelizmente tive de voltar às normas. Os tijolos manipulados pelos homens partiam­‑se!

 

Para além da Clínica e do Centro, tem mais alguns projectos ou obras assistenciais?

Quero ajudar um rapaz dos seus trinta anos, com três filhos, que caminha sobre as mãos. Porém, o Nepal ocupa ainda três quartos do meu tempo.

Hoje posso afirmar que me sinto enriquecida por ter, com uma gota de água, contribuído para o bem de alguns deste país que tanto me deu no plano espiritual.