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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.41 Lisboa jun. 2020

 

RECENSÕES

 

Feminicídio: uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil, de Adriana Ramos de Mello. Lisboa: GZ Europa, 2020, 3.ª edição, 254 pp.

Tiago Rolino

Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais (CES), Investigador Junior

 

 

Este livro é o resultado da interseção entre o percurso profissional comprometido e a reflexão académica rigorosa da autora. Adriana Ramos de Mello, Juíza Titular do I Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Rio de Janeiro, analisa nesta obra a temática e problematização do feminicídio no Brasil, colocando na sua escrita o seu trabalho de largos anos como magistrada a lidar de perto com a realidade de mulheres vítimas de violências entre os anos de 2011 e 2015.

O estudo descreve um percurso lógico, crítico e sociojurídico sobre o tema no Brasil, na América Latina e em Portugal. Não o faz sem uma visão sustentada nas diversas teorias feministas2 e identificando o Direito como um sistema patriarcal feito por homens e para homens. A autora cria uma ferramenta de aplicação teórico- prática tanto da aplicação da Lei n.º 11.340, de 7 de agosto de 2006 (a chamada Lei Maria da Penha), como da Lei n.º 13.104, de 9 de março de 2015, que tipificou o crime de feminicidio no Brasil (não descurando a doutrina e a indicação de jurisprudência dos tribunais brasileiros). Em ambos os casos, a autora discorre sobre os contextos sociojurídicos que antecedem estas leis, mas também a sua elaboração e o seu corpo legal, passando por uma análise jurídica do direito internacional, dos protocolos de investigação, nacionais e internacionais, bem como da relação intrínseca entre o direito penal e a violência contra as mulheres.

Na terceira edição, Adriana de Mello acrescenta, além de nova legislação aprovada, o importante Formulário Nacional de Avaliação de Risco – Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (anexo ao livro), o qual pretende identificar fatores que indiquem o risco de a mulher vir a sofrer qualquer forma de violência no âmbito das relações domésticas e familiares. O principal objetivo é contribuir para a atuação do poder judiciário e outros, mas também fornecer dados que orientem políticas públicas de prevenção. Introduz também um capítulo sobre o tratamento da violência doméstica em Portugal e sobre a não tipificação do crime de femicídio/feminicídio no ordenamento jurídico português.

O livro divide-se em sete capítulos numa sequência lógica hábil, especialmente na área jurídica, indo do geral para o particular e procurando manter uma coerência cronológica do exposto. No primeiro, «Os Conceitos do Feminicídio e Femicídio», a autora debruça-se sobre o debate sociojurídico entre os termos femícidio e feminicídio, abordando as suas origens, tipologias, evolução dos conceitos (especialmente na América Latina e nos Estados Unidos) e diferentes implicações e consequências da escolha entre um e outro. Tendo como base o fenómeno dos assassinatos e desaparecimento de mulheres e meninas em Ciudad Juarez, México, que nas palavras da autora «passou a ser paradigma de violência contra as mulheres no país e no mundo», Adriana de Mello traça a história do termo feminicídio e a ligação da sua escolha com a impunidade e a responsabilidade do Estado quando permite atentados contra a integridade, a saúde, as liberdades e as vidas das mulheres. Depois de analisar todos os conceitos existentes, a autora refere a sua preferência pelo termo femicídio considerando-o «mais adequado e o mais simples para todas as línguas», apesar de não ter sido este adotado na legislação brasileira. Termina referindo que, pese embora o Direito Penal Brasileiro apresente limitações e não disponha de ferramentas teóricas para lidar com todas «as violações constatadas no campo social», esse facto não deve impedir que, no futuro, se pensem em novas formas de conceber o Direito Penal rumo a uma maior proteção dos direitos das mulheres.

No segundo capítulo, «Marco Normativo Internacional e Feminicídio/Femicídio », a autora analisa o conjunto de normas existentes no ordenamento jurídico internacional relacionadas com o combate e a prevenção do assassinato de mulheres em razão do género. Dando ênfase ao facto de o direito internacional conseguir refletir as diversas faces e vertentes do movimento feminista e algumas das suas reivindicações, como «o direito à igualdade formal, a liberdade sexual e reprodutiva, o fomento à igualdade econômica, a redefinição de papéis sociais e à diversidade sob perspetivas da raça e etnia», Adriana de Mello salienta os tratados internacionais ratificados pelo Brasil e os casos internacionais (em específico o caso brasileiro Maria da Penha) que serviram como importantes precedentes internacionais. Aqui, a propósito da responsabilidade internacional dos Estados por violações dos Direitos Humanos, apesar de poderem ser responsabilizados internacionalmente a responsabilidade penal é sempre individual, mesmo quando o agente age na sua qualidade de autoridade ou governo, pelo que a tipificação dos crimes, onde se inclui o feminicídio/femicídio, é imprescindível para uma efetiva aplicação da justiça.

O terceiro capítulo, «A Tipificação do Feminicídio/Femicídio em Outros Países», discrimina diferentes formas de tipificação do crime de feminicídio/ femicídio em países sul-americanos e o tratamento da violência doméstica e do feminicídio/femicídio em Portugal. Analisa e revê os ordenamentos jurídicos e a legislação de países como a Costa Rica, a Guatemala, o Chile, o Perú, o México e a Argentina, descrevendo a forma como estes tratam a defesa dos direitos das mulheres, a proteção das mulheres contra a violência e a maneira diferenciada como aqueles países tipificam os crimes de feminicídio/femicídio, fazendo distinção entre os que o criminalizam através de leis específicas e autónomas, os que incorporam o crime a um nível estatal/federal e aqueles cujas leis incorporam o feminicídio como qualificadora agravante do crime de homicídio nos seus códigos penais. Descreve o tratamento da violência doméstica em Portugal, sua evolução, a adesão à Convenção de Istambul e o tratamento penal autónomo a partir de 2007, relatando os mecanismos existentes em Portugal de proteção à vítima de violência doméstica. Defende as vantagens da tipificação do crime de feminicídio/femicídio no ordenamento jurídico português, não tanto pela tipificação ou aumento de penas, mas pela visibilidade que a individualização desse crime traria.

No quarto capítulo, «A Violência Contra as Mulheres no Brasil», é feita uma resenha histórica da violência contra a mulher no Brasil, permitindo compreender melhor os processos históricos que formam o singular caso brasileiro e que culminam com a «A Lei Maria da Penha», nome dado ao quinto capítulo do livro, onde esta lei é analisada em toda a sua extensão, desde os trabalhos preparatórios e tentativas de declaração de inconstitucionalidade da mesma, mas também quanto à forma, aos aspetos processuais, à sua aplicabilidade, à sua importância e as suas falhas (em termos de alcance).

No sexto capítulo, «O Feminicídio no Brasil», há uma análise da política brasileira no combate e prevenção da violência contra a mulher, do tratamento por parte dos meios de comunicação social dos homicídios de mulheres e o contexto sociopolítico que culmina com a Lei n.º 13.104, de 9 de março de 2015, que tipifica o crime de feminicídio no Brasil. Ressalto três aspetos: a necessidade de existência de protocolos internacionais de investigação eficazes no que diz respeito aos homicídios de mulheres em razão do género; a insuficiente e reduzida participação dos representantes das vítimas; e a definição de mulher para efeitos da vítima do crime de feminicídio, onde a autora elenca três posições da doutrina brasileira – psicológica, cível e biológica – adotando na obra a posição de que será vitima de feminicídio toda a pessoa que «se identificar com o gênero feminino, independentemente da realização da cirurgia de mudança de sexo» e que seja morta em razão desta mesma condição.

O último capítulo, «Análise de Processos Relativos a Homicídios de Mulheres no Rio de Janeiro, no Período entre 2000 e 2010», faz uma análise breve, incisiva e completa de dados relativos aos processos de homicídio de mulheres nesse período, permitindo-nos uma melhor compreensão dos mecanismos de violência contra a mulher no Rio de Janeiro e conduzindo-nos, face à riqueza dos dados, a reflexões e formas de prevenção e combate da violência contra as mulheres.

Esta obra não se esgota numa mera ferramenta técnica jurídica e/ou académica, tendo o mérito de não se encerrar numa visão jurídico penalística sobre o feminicídio e a violência contra as mulheres em todas as suas vertentes. Vai mais longe e propõe uma visão jurídico sociológica analítica das realidades do Brasil e de outros países da América Latina, articulando a problemática da «violência contra a mulher, em razão de ser mulher», com a criminologia crítica que procura «abordar o Direito Penal de forma a não fechá-lo ao aporte de outras áreas do conhecimento», com as diversas teorias feministas, não só do Direito como de outras áreas.

Este diálogo transforma a obra num livro jurídico, feminista e dirigido a um público abrangente. É também um livro com o objetivo de consciencializar sobre a problemática da violência contra a mulher e da sua forma última: o feminicídio/ femicídio, sendo ainda um instrumento de combate ao flagelo que vivem diariamente todas as mulheres. Nas palavras da autora «Quando se fala em violência contra as mulheres, não há que se pensar apenas na sua forma física imediata, nem apenas na violência doméstica ou familiar. Em muitos outros matizes de violência que nós, mulheres, experimentamos diariamente na sociedade, podem ser detetados traços de violência de gênero – ainda que isso não seja explicito, sofremos violência constantemente pelo mero fato de sermos mulheres.»

 

 

Notas

2 Nomeadamente, Russel, Diana; Caputi, Jane (1992); Russel, Diana; Harmes, Roberta (2001); Campbel, Jacquelyn C. (2003); Lagarde, Marcela (2004); Washington-Valdez, Diana (2005); Ortuño, Ivone (2011); Pasinato, Wânia (2011).

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