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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.41 Lisboa jun. 2020

 

RECENSÕES

 

Re-writing Women as Victims: From Theory to Practice, edited by María José Gámez Fuentes, Sonia Núñez Puente, & Emma Gómez Nicolau. London: Routledge, 2019, 230 pp.

Elizângela Costa de Carvalho Noronha

Universidade de Coimbra, Doutoranda em Ciências da Comunicação na Faculdade de Letras

 

 

Reescrever as mulheres como vítimas é uma tarefa feminista exigente – requer uma reflexão teórica que vá além das conceitualizações hegemônicas e impõe a reavaliação crítica das políticas e das ações de enfrentamento às violências contra as mulheres. É neste desafio teórico e epistemológico que o volume organizado por María José Gámez Fuentes, Sonia Núñez Puente e Emma Gómez Nicolau nos conduz ao longo de 16 capítulos, nos quais 23 autoras reescrevem histórias de mulheres vítimas de diferentes tipos de violência em mais de dez países pelo mundo.

No texto de apresentação, as organizadoras demarcam o percurso proposto para o livro: perceber «como, através de práticas diárias e ativistas, é possível agir para resistir ao poder, apesar das sujeições estruturais»1 (p. 2), ou seja, trata-se de investigar manifestações nas quais a vulnerabilidade é mobilizada e reconfigurada como forma de resistência e existência para/por mulheres vítimas de violência.

Este posicionamento epistemológico advém do redirecionamento da reflexão sobre a vitimização. Situa-se nesta linha, a filósofa Judith Butler referenciada em diferentes momentos na publicação, e que propõe repensar vulnerabilidade e resistência como alternativa ao binário vitimização/agência. No texto de Butler, a discussão teórica mostra como estas diferentes noções estão imbricadas na ação da vítima e da agente. Em Re-Writing women as victims: from theory to practice, este olhar acurado e plural ganha materialidade ao ser mobilizado de diferentes maneiras para observar os contextos analisados. Além disso, esta perspectiva é ampliada e recontextualizada nos capítulos a partir dos diferentes diálogos propostos por suas autoras.

Para apresentar a diversas abordagens ao tema, os textos foram organizados em três seções: Políticas; Ativismo; Narrativas Culturais. Na secção dedicada à discussão de políticas, o capítulo de abertura, assinado pelas pesquisadoras Cristina Peñamarín e Diana Fernández Romero, mostra como o testemunho de experiências em espaços de escuta e partilha contribuem para a reconstrução das subjetividades das vítimas de abusos sexistas em Espanha. Este trabalho, composto pela análise de 26 entrevistas biográficas, evidencia como a reciprocidade e o reconhecimento de vivências entre essas mulheres potencializa a transformação de vítimas em sobreviventes.

Destacamos, de seguida, algumas investigações que produzem, do nosso ponto de vista, «reescritas», como se propõe no título da obra, exemplares. Assim, Emma Dolan discorre sobre o processo de negociação em torno do pedido de desculpas do Japão à Coréia do Sul por conta das «comfort women». Esta denominação foi dada às mulheres capturadas e exploradas sexualmente em bordéis construídos para usufruto do exército japonês antes e durante a Segunda Guerra Mundial. A autora retoma este fato histórico para discutir como o acordo assinado em 2015 não ouviu as vítimas e transformou a questão em uma violação à Coréia do Sul enquanto Estado-nação. Além disso, destaca o fato de o acordo representar uma «seleção» entre as vítimas consideradas merecedoras de desculpas e reparação, em detrimento de milhares de mulheres de outras nacionalidades também exploradas naquele período.

Louis Tozer traz a violência sexual por outro viés, discorrendo sobre a construção da vítima de violação na Bósnia-Herzegovina. Neste trabalho, além de observar a sujeição de mulheres muçulmanas diante de uma política de guerra sexualizada, a autora analisa como os media internacionais estigmatizaram as mulheres como vítimas e as muçulmanas como violadas. Anne-Marie Veillette e Priscyll Anctil Avoine abordam as estratégias de resistência adotadas por moradoras de favelas brasileiras e mulheres ex-combatentes na Colombia. Em ambos os contextos, apesar de suas particularidades, as mulheres estão sob forte opressão, marginalização e violência policial e estatal. No entanto, os trabalhos de campo realizados nos dois países mostram como as mulheres desafiam essas estruturas para sobreviverem, numa expressão de coragem e ação política.

A importância da independência econômica no processo de superação das desigualdades de gênero é o tema central do capítulo 6, que versa sobre o acesso aos bens materiais e à posse como fator crucial para a emancipação das mulheres. No Camboja, contexto analisado por Olga Jurasz e Natalia Szablewska, expulsões forçadas e as leis que limitam a propriedade das mulheres são apontadas como fatores de obstrução à plena realização dos direitos socioeconômicos delas. No entanto, apesar destes obstáculos estruturais e culturais, as cambojanas são proprietárias de 65% das empresas privadas no país.

O capítulo 7 marca o início da seção Ativismo com a história não contada das mulheres quenianas que atuaram em diferentes frentes na luta pela liberdade do seu país. Com este resgate, Wanjiku Mukabi Kabira e Lanoi Maloy, recuperam histórias de mulheres militantes pela liberdade e afastam a percepção hegemônica e estereotipada sobre as mulheres africanas, reposicionando-as como agênticas e autodeterminadas. Seguindo essa perspectiva, os capítulos seguintes mostram, em diferentes contextos, como a resistência à vitimização passa pela capacidade de perceber a vulnerabilidade como ingrediente necessário à ação política. Na esteira desta percepção, Maria Martinez mostra como a participação de mulheres vítimas no ativismo traz as vozes dessas sobreviventes para a definição de programas e de políticas de apoio e de proteção às mulheres em Espanha.

Pelo seu lado, Virginia Villaplana Ruiz aborda o ativismo feminista transnacional através dos movimentos #NiUnaMenos e #VivasNosQueremos a partir da ocupação de novos espaços públicos. Este ativismo transnacional abre novos horizontes colaborativos através da apropriação da comunicação digital e, como define a autora, desafia os atuais sistemas de representação, hegemonia cultural e justiça social. Fenômeno semelhante ocorre com a disseminação da Marcha das Vadias (SlutWalks), vista como prática de subversão para «estuprar a lógica», nas palavras da autora do capítulo 10, Jessie A. Bustillos Morales. Neste trabalho, a investigadora destaca a oportunidade de reescrever as mulheres além do seu papel de vítimas através deste movimento ativista replicado pelo mundo.

A não-submissão à vitimização também está marcada no 11º capítulo do livro, assinado por Rahat Imran. Este trabalho aborda o caso da ativista paquistanesa Mukhtaran Mai, reconhecida internacionalmente em sua luta por justiça após ser vítima de estupro coletivo cometido como «reparação» de honra entre tribos. Seu ato é considerado uma transgressão às noções de honra tribal, gênero e classe ainda fincadas na cultura do Paquistão e que determinam os corpos das mulheres como «local em que a moralidade é construída ou rebaixada e a honra masculina sustentada ou degradada» (p. 141).

Na 3ª parte do livro, denominada Narrativas Culturais pelas organizadoras, os capítulos estão dedicados à investigação das disputas narrativas e suas consequências nas subjetividades das mulheres. Para iniciar este debate, as autoras Laura Favaro e Rosalind Gill analisam a imposição de «atitude mental positiva» em revistas femininas e suas ligações à agência política das mulheres. Em suas reflexões, Favaro e Gill esclarecem que em sociedades neoliberais os indivíduos são interpelados a agirem a partir de uma psicologia positiva, na qual a positividade é compulsória e expressa pela disseminação de valores como a resiliência. Neste contexto, portanto, há o repúdio veemente às mulheres como vítimas. Afinal, na cultura pós-feminista a agência política é consequência do empreendimento individual em busca da felicidade.

Em diálogo com esta percepção, Sarah Banet-Weiser afirma que «nem a vitimização nem a agência devem ser glorificadas, entendidas como estáticas, vistas isoladamente ou percebidas como uma questão individual ou pessoal, pois a subordinação de gênero deve ser entendida como um problema sistêmico e coletivo em que as mulheres experimentam opressão e resistência» (p. 170). Para Banet-Weiser, vítima e agente são posições de sujeito profundamente inter-relacionadas.

Sue Kossew discorre sobre este tema a partir da análise do texto literário da escritora australiana Zoë Morrison. Em seu trabalho, a autora defende que a identificação de mulheres como vítimas não representa a completa desativação de sua agência política, como é verificado na história da personagem Alice Murray, vítima/sobrevivente de violências e misoginia durante sua trajetória.

Já Elena de Sacco observa as formulações da identidade da vítima/sobrevivente nos media contemporâneos do Reino Unido ao analisar o discurso de sobrevivente em dois casos de estupro. No primeiro, uma mulher vítima de violação aceita ficar frente a frente com seu agressor para perdoá-lo como parte de um programa de justiça restaurativa. No outro caso, uma vítima de abusos durante a infância morre por suicídio, décadas depois dos abusos, após ser interrogada pelo advogado de defesa de seus agressores. O 16º capítulo encerra este amplo debate com a discussão da representação e resistência das vítimas de estupro na Índia. Nesta abordagem, Nandana Dutta chama a atenção para a solidão das mulheres vítimas de estupro, durante e após o ato de violência, e para a vergonha que lhes é imposta.

Este rico conjunto de investigações mostra que vulnerabilidade e resistência não são entidades discretas e, portanto, são experimentadas de formas diferentes pelas mulheres. Por isso mesmo, exige lentes alternativas às narrativas hegemônicas, possibilitando ver as mulheres vítimas para além da vulnerabilidade.

 

 

Notas

1 Em tradução livre, assim como as demais citações.

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