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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.40 Lisboa dez. 2019

 

RECENSÕES

 

Ecos de Freire e o Pensamento Feminista: Diálogos e Esclarecimentos, coordenado por Eunice Macedo. Porto: IPFP, CRPF e CIIE-FPCEUP, 2017, 239 pp.

 

Alexandra Carvalho

Instituto Paulo Freire de Portugal & CIIE-FPCEUP, Portugal

 

 

Nas Primeiras Palavras inaugura-se um tempo em que ecoarão vozes, que se encontram neste livro, a partir de diferentes contextos disciplinares, políticos e socioculturais, da Argentina, Brasil, Canadá, Espanha, México e Portugal. Este entretecer emerge de outros encontros em que algumas autoras participaram na Universidade Estadual Paulista, em Marília, no Brasil, cruzando olhares sobre género e direitos humanos. Foi a partir do movimento dessa diversidade de mulheres que este livro emergiu como ação, que prolonga esse movimento em múltiplos espaços, tempos, com forças e intenções congregadoras. Pode dizer-se, com Freire, que a leitura do mundo precedeu a leitura e a escrita das palavras desta obra – ação em busca de mesclas entre pensamentos feministas e freiriano.

É ao encarar este livro como ação situada num tempo, desenvolvendo-se nas esferas do quotidiano de cada uma das pessoas que o escrevem, que retomo Daniel Stern. À luz da proposta deste autor, a leitura revela-o como evento dinâmico, gerado a partir de muitos outros eventos promovidos e vividos por cada uma das autoras e demais pessoas envolvidas na sua produção enquanto objeto. Importa referir que Stern fala de formas dinâmicas ou formas de vitalidade1 para designar eventos dinâmicos que constituem a ação humana e, portanto, esta obra. Se, para o autor, uma das primazias das formas de vitalidade reside no facto de serem comunicáveis, partilháveis e até contagiosas, considera-se original e contagiante a coerência simbólica comunicada na estética da capa deste livro, a qual tem autoria partilhada: as mãos da escultora das bonecas tridimensionais, o olhar do fotógrafo que as perspetiva e um segundo olhar, também bidimensional, da designer que projeta o objeto tridimensional livro, num cruzamento subjetivo que se estende ao seu interior.

Tendo acompanhado a construção da obra e lendo-a – a partir da introdução que precede as suas três partes – recebi como que um convite intencional para experienciar a diversidade de olhares, lançando o meu próprio olhar às tensões epistemológicas em presença, nos momentos em que argumento e contra- -argumento dialogam, procurando um constructo sólido. Assim, o que se torna mais apelativo é o jogo entre afirmação e contraditório que dá corpo a uma dialogia freiriana.

Neste quadro epistemológico, na minha leitura, identifico os cinco elementos das formas de vitalidade na Introdução de Sofia Marques da Silva, que alerta para a necessária reflexão acerca do facto de a Ciência, produzindo conhecimento que é «legitimado, filtrado e vigiado», constituir em si uma linguagem que contribui para a «reprodução de visões de mundo dominantes e imperativas e para o silenciamento de outras falas e propostas» (Silva 2017, 13). Ao desenhar a questão «Porque regressamos a determinados/as autores/as?», e em diálogo com os textos que compõem o livro, a autora reconhece que, se realizada numa «saudável negociação de sentidos teóricos e metodológicos», a interpretação crítica de questões sociais e educacionais, com Freire, pode contribuir para «processos de descolonização teórica e metodológica» (Silva cit. in Silva 2017, 13). Num vaivém reflexivo entre educadora e investigadora, afirma que a valorização da experiência nas Ciências Sociais e Humanas e da Educação reclama alterações quer de paradigma quer de método. Desafia-nos a pensar a investigação como prática inserida num campo de forças invisíveis, com uma linguagem e cultura dominantes. No debate da não neutralidade da Ciência, por referência a autores como Sandra Harding, Pierre Bourdieu, Ana Altamirano e Edward Soja, assume que «produzimos conhecimento situado», nesse sentido, num quadro de injustiça, «o pensamento de Paulo Freire, tem sido silenciado» (Altamirano, 2016 cit. in Silva 2017, 18). Entendo, pois, com Stern, que o espaço e o tempo em que se constrói o conhecimento não é isento de forças e intenções visíveis e/ou latentes.

Interpelada por um texto introdutório recheado de praxis, segui para uma primeira parte repleta de releituras e escritas que não silenciam a tensão entre os pensamentos feministas e freireano, como formas de vitalidade, que espelham espaços e tempos particulares com forças e intenções que corporizam «tradições emancipatórias da voz» (Arnot, 2007 cit. in Macedo 2017, 47). Não só não a silenciam como parecem procurar de forma rizomática, portanto numa dinâmica de horizontalidade, redescobrir sentidos em Freire plenos de atualidade.

Nas palavras destas autoras feministas que leram, reescreveram e recriaram, a partir da sua própria voz, descubro formas outras de experiência, afirmação e interpretação da história, leituras e expectativas de mundo em movimento. Identifico uma arqueologia do pensamento feminista, na sua pluralidade de vozes, «num vaivém entre reconhecimento e repúdio» (Macedo 2017, 23) pelo trabalho de Freire. Dão particular conta disto, os textos de Macedo e de Moreira e Brabo pela explicitação dos diálogos entre Freire e feministas do seu tempo. Tendo em conta críticas pelo uso de linguagem sexista na Pedagogia do Oprimido, torna-se clara a mudança discursiva de Freire na introdução, a partir da Pedagogia da Esperança, duma linguagem amiga de género. As «relações entre a linguagem e as questões da invisibilidade e opressão das mulheres» (Moreira e Brabo 2017, 59) são apresentadas pelas autoras, quer como crítica a Freire quer como sinal de convergência entre tradições emancipatórias, que se reconhece no contributo deste para desocultar a relação entre linguagem e poder. A linguagem é discutida por Moreira e Brabo, à luz de Freire, como constitutiva das e dos sujeitos e duma transformação social humanizante, que requer envolvimento das pessoas nos movimentos feministas independentemente do género.

Ainda nesta parte encontro pontes entre textos que parecem revelar um movimento intencional de busca de sentidos na organização do livro, apesar de ser uma coletânea. Exemplo disso é o argumento, iniciado por Macedo, que complexifica o conceito de voz, na sua diversidade e heterogeneidade, constituindo a voz uma dinâmica entre cultura, linguagem, modos de fazer e saberes experienciais. Estas dimensões de voz permitem explorar o texto de Ribeiro, Mariano e Ferro desconstruindo a hegemonia de vozes na educação que a instrumentalizam como controlo ideológico para a manutenção do poder e de privilégios dos grupos dominantes. Argumentam, assim, que os movimentos sociais representam um espaço formativo fértil para a educação emancipatória.

Se na primeira parte a experiência do vivido surge, num dos textos, a partir do Brasil, a segunda parte dá espaço a diferentes movimentos, ecos e tempos numa narrativa reflexiva e epistémica, que reconhece experiência e teoria como elementos de aprendizagem, partindo de práticas em Portugal, México e Espanha. Num diálogo praxiológico, no contexto socioeducativo português, Laura Fonseca, convoca a sua biografia para «vaguear» entre experiência e teoria, como fonte de conhecimento e aprendizagem, fazendo a proposta de uma periodização de «mudanças, debates e vagas educacionais» (Fonseca 2017, 113). Evidencia-se a conscientização «como estratégia política de educação cultural localmente situada» (ibidem), numa dinâmica que anuncia, a conscientização no segundo texto, em que «o corpo atesta a materialidade humana no mundo, tanto no tempo histórico como no espaço geográfico » (Silva, Jaeger e Oliveira 2017, 137). As autoras, enunciando elementos das formas de vitalidade de Stern (2010), assumem a ousadia dos corpos das mulheres «como lugar de resistência e transposição de fronteiras» no desporto. Cruzando pensamentos feministas e freiriano, denunciam-se desigualdades e anuncia-se o protagonismo das mulheres no reescrever da cultura desportiva.

O evento conscientizador é convocado também por Julia Chávez Carapia que problematiza círculos de cultura com mulheres no México, evidenciando como a Pedagogia do Oprimido propõe categorias de análise – domesticação, dominação, objeto/sujeito – que ao adquirirem novas interpretações, enriquecem a perspetiva de género e os feminismos. Podemos identificar a passagem da dominação ao empoderamento também num estudo fílmico, proposto por María José Chisvert-Tarazona e Pilar Cambronero-García, que argumenta em favor de uma educação popular feminista que priorize reflexão, diálogo e ação.

Na terceira parte relaciona-se a pedagogia da sexualidade centrada na pedagogia da pergunta, à maneira freiriana, com possibilidades de empoderamento das mulheres face a situações-limite de opressão que são discutidas nos textos que encerram a obra. Gabriela Ramos parte da preocupação com a governação dos corpos genderizados na escola para argumentar em favor de uma pedagogia libertária que permita uma participação cidadã que reconfigure o enquadramento legar argentino que apresenta. Assim, como outras autoras deste livro, faz recurso à Pedagogia da Esperança para uma pedagogia da sexualidade centrada na voz das e dos educandos e na responsabilidade ética, política e profissional das e dos educadores, como anuncia Freire. Na mesma linha Nilma Renildes discute a tensão oprimida-opressora, alegando com Freire, que o sonho das mulheres não deve assentar nesta inversão de papéis, apesar do crescendo de violência contra as mulheres no Brasil. Monica Riutort e Sandra Rupnarain refletem nas práticas de um serviço de apoio a mulheres vítimas de violência assumindo a atualidade da praxis freiriana para sustentar a abordagem ao trabalho com estas «sobreviventes », num quadro de equidade e justiça social.

Finalizo este movimento de releitura e reescrita certa de que não recriei a riqueza de pontos de partida, de vista, de fuga e de contrapontos e a força e intenção que ecoam nas palavras das mulheres que assumem a autoria desta obra. Retomo Freire, pois se escrever

é tão re-criar, tão re-dizer o antes dizendo-se no tempo de nossa ação quanto ler seriamente exige de quem o faz, repensar o pensado, re-escrever o escrito e ler também o que antes de ter virado o escrito do autor ou da autora foi uma certa leitura sua. (Freire 1994)

A narrativa libertadora construída no diálogo praxiológico entre feminismos e Freire convida-nos a ecoar uma multiplicidade de diálogos potenciais, já que «dialogar torna-se absolutamente essencial para mover as coisas para diante, (…) avançar é mudar para um espaço onde se ouça a nossa própria autenticidade» (Stern 2010, 88-89). A intersubjetividade acontece no ato da leitura e da reescrita de textos e do mundo. Constitui a força com intencionalidade necessária ao movimento na diversidade em direção à justiça social.

 

 

Referências

Freire, Paulo.1994. Pedagogia da Esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra Stern,         [ Links ] Daniel. 2010. «The issue of vitality». Nordic Journal of Music Theraphy 19 (2): 88-102. DOI:10.1080/08098131.2010.497634        [ Links ]

 

 

Notas

1 «São eventos que se desdobram com o tempo, que têm uma força aparentemente dentro deles ou por trás deles, que estão a ir para algum lugar – esses eventos, e que parecem ser movidos por algum objetivo. O importante é que o evento parece consistir nalgum tipo de movimento, e leva tempo, e também ocorre em algum tipo de espaço, mesmo que seja espaço mental.» (Stern 2010, 88). Constituem-se, assim, por cinco elementos: movimento, força, espaço, intenção e tempo.

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