SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
 número40Necropolítica, políticas públicas interseccionais e cidadania trans*Ecos de Freire e o Pensamento Feminista: Diálogos e Esclarecimentos: coordenado por Eunice Macedo. Porto: IPFP, CRPF e CIIE-FPCEUP, 2017, 239 pp. índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.40 Lisboa dez. 2019

 

RECENSÕES

 

Violências de Género, coordenado por Sofia Neves e Dália Costa. Lisboa: CIEG/ ISCSP-UL. Coleção Estudos de Género, 2017, 337 pp.

Elza Pais

Deputada/Presidente da Subcomissão da Igualdade e não Discriminação. Investigadora do CICS.Nova – Centro de Investigação em Ciências Sociais (FCSH/UNL).

 

 

A obra Violências de Género, coordenada por Sofia Neves e Dália Costa, reúne um conjunto de artigos de autoras e autores diversos de referência nas áreas da violência de género e não discriminação centrais para um maior aprofundamento da temática nas suas diversas dimensões.

Reconhecem todos e todas, sem exceção, a natureza estrutural da violência de género, enraizada em culturas de subjugação e relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens, que têm definido as relações de subordinação e dependência afetiva e económica, e têm-se constituído como obstáculos à autonomia das mulheres e à liberdade da pessoa humana. Como diz Anália Torres (p. xvii) «o que alimenta a violência e as desigualdades de género são as desigualdades de poder entre homens e mulheres, histórica e socialmente situadas, isto é, assumindo configurações diferenciadas em sociedades e temporalidades distintas. Estas desigualdades persistem nas nossas sociedades em formas mais abertas ou mais subtis. A violência sobre as mulheres constitui um caso limite dessas desigualdades e assimetrias de poder».

Independentemente das formas de manifestação dessa violência, estamos sempre perante «uma das mais graves violações dos Direitos Humanos, sendo que a violência de género constitui um obstáculo à paz, à democracia e à Igualdade na Europa e no Mundo» (Conselho da Europa).

O livro Violências de Género lança pistas para novas compreensões e abordagens do fenómeno e futuras estratégias de prevenção e intervenção. Organiza-se em torno de 12 textos de 19 especialistas nacionais, desde abordagens conceptuais e teóricas no campo da igualdade e dos direitos humanos, até fortes componentes de movimentos cívicos e ativista, feministas, LGBTI, e ainda uma componente política e de compromisso para com a mudança social. Tem por base a ideia de que o género é uma componente central de análise do fenómeno; que as intervenções junto de agressores e vítimas devem pressupor sempre um enfoque de género; e ainda, o enfoque na educação com ferramenta, por excelência, da igualdade de género, através da qual se previne e combate este tipo de violência e esta grave violação dos direitos humanos das mulheres e meninas.

O lançamento do livro ocorreu por ocasião das comemorações do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que logo no seu 1º artº defende que «todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos », no pressupostos de que a dignidade da pessoa humana e a igualdade de direitos entre homens e mulheres são fundamentais para que se alcance a Liberdade, a Justiça e a Paz no mundo, e que os Direitos Humanos são universais e inalienáveis e devem ser indissociáveis e interdependentes, e encarados na sua totalidade em relação uns com os outros.

Logo nos dois primeiros capítulos, Dália Costa e Isabel Dias, referem como as novas abordagens do tema se foram afirmando e impondo na dimensão política e social, que opera uma rutura com as abordagens da psicologia diferencial dos sexos, com o determinismo biológico subjacente às ciências sociais e com a compreensão individual como uma rutura da sua integridade física, moral e sexual. O conceito de «género» retirou a questão da diferença entres sexos, como diz Lígia Amâncio (p. 25 in Isabel Dias), «retirando-a do domínio biológico, e orientava a análise para as condições históricas e sociais de produção das crenças e dos saberes sobre os sexos e de legitimação das divisões sociais baseadas no sexo». Desmantelar o binário e entender que há uma grande heterogeneidade das vítimas e das suas experiências tem sido um percurso analítico incontornável, constituindo o modelo feminista uma das abordagens centrais e um património teórico e político sólido, ao considerar o género e a sua relação com o poder.

As teorias feministas não são, como refere Isabel Dias, hostis aos homens «o seu grande objetivo não é expulsar os homens do sistema social, mas trazer as mulheres para dentro desse mesmo sistema permitindo-lhes ocupar esses seus lugares». As teorias feministas, como refere ainda Cristina P. Vieira, numa primeira fase focaram-se no género, mas mais recentemente começam a olhar para a interseccionalidade entre o género e outros sistemas de opressão, afirmando cada vez mais um potencial de mudança social.

O livro Violências de Género faz também a contextualização dos principais instrumentos internacionais que Portugal subscreveu e aos quais está vinculado, onde o «princípio da Igualdade entre homens e mulheres» tem marcado a agenda das Nações Unidas, e da União Europeia, desde a sua constituição, e as questões das mulheres têm assumido relevância central desde a Década das Nações Unidas sobre as Mulheres (1976-1985), que arrancou em 1975 com o Ano Internacional da Mulher, a que se seguiram as quatros Conferências Mundiais «Igualdade, Desenvolvimento e Paz», no México, a Conferência de Copenhaga, em 1980, a Conferência Mundial sobre as Mulheres, em Nairobi, e a IV Conferência Mundial, em Pequim, em 1995, de onde resultaram as doze áreas críticas da Plataforma de Ação de Pequim, que afirmam de forma inquestionável a violência contra as mulheres como uma violação dos direitos humanos das mulheres. A componente dos Direitos das Mulheres como Direitos Humanos é reforçada na Conferência sobre Direitos Humanos, em 1993, em Viena, como constituindo «uma parte inalienável, integral e indivisível dos Direitos Humanos universais».

A Convenção para a Eliminação de todo o tipo de Discriminações contra as Mulheres – CEDAW, 1979 – apelidada de Carta dos Direitos das Mulheres, constitui um instrumento pioneiro, através da qual os países assumem o compromisso de integrar o princípio da igualdade entre homens e mulheres para a eliminação de todo e qualquer tipo de discriminações de género.

Em 2014, entra em vigor a Convenção de Istambul, como instrumento fundamental de promoção e proteção dos Direitos Humanos, tem força vinculativa, linguagem inclusiva e assenta numa perspetiva de género e de promoção dos Direitos Humanos, obrigando os Estados a respeitá-la e cumpri-la para se prevenir e combater todo o tipo de violências contra as mulheres, incluindo a violência doméstica. Tal como é referido nos artigos de Helena Grangeia, «assédio persistente, perseguição e stalking», e de Olga Magano, «mulheres ciganas, desigualdade de género e discriminações na sociedade portuguesa», foram estas duas das áreas que já mereceram por parte da Assembleia da República aprovação de nova legislação no sentido de se harmonizar o nosso ordenamento jurídico com as recomendações da Convenção de Istambul.

Mas, apesar de, com diz Teresa Beleza, «a crença excessiva na capacidade reguladora do Direito é tão incorreta como a convicção da irrelevância da instância jurídica» (p. 53, in Dália Costa), é fundamental esta pressão política para os governos promoverem a igualdade e alterarem as leis e para que os Direitos Humanos das Mulheres sejam defendidos não apenas por mulheres, mas reivindicados como valor humano.

Importa ainda referir um conjunto de artigos demonstrativos de Intervenções recentes como: centro de crise para «violência sexual», de Alberta Silva et al. (cap. 4), «violência de género nas relações intimas entre pessoas do mesmo sexo» e os espaços de atendimento para vítimas LGBTI, de Carla Moleiro e Nuno Pinto (cap. 9), «intervenções com agressores em Portugal: características e caminhos da intervenção com agressores conjugais» e casas de abrigo para homens, de Dalila Cerejo (cap. 11), bem como o relevante papel das ONG nestes processos estratégicos de intervenção. Importa trabalhar os estereótipos de género que colocam desde cedo o masculino e o feminino numa lógica hierarquizada, que se mune de instrumentos de subordinação de género, onde a violência de género é uma das expressões mais dramáticas.

Na área LGBTI é sublinhada a assunção política do dossier e um conjunto de Leis humanistas que daí decorreram, bem como a integração, em 2017, desta dimensão no conceito «violência doméstica», nos artigos de Carla Moleiro e Nuno Pinto (cap. 9), bem como a aposta feita na autodeterminação género (Trans) «violência transfóbica: aproximações críticas e horizontes de resistência», no artigo de Liliana Rodrigues et al. (cap. 10) para combater o sofrimento humano e permitir a cada uma e uma «ser quem efetivamente é». Nestes capítulos demonstra-se que, apesar de homens e mulheres viverem com pessoas do mesmo sexo, a sua orientação sexual e as suas expressões de género podem ser usadas como legitimação para a violência. Os estudos dizem ainda que as questões de desigualdade estão presentes em relações de intimidade do mesmo sexo, uma vez que os comportamentos traduzem a forma como as pessoas desempenham os seus papéis de género em termos individuais, familiares e sociais. (...) «(…) homens gay, mulheres lésbicas, e pessoas bissexuais não são alheias a esta aprendizagem e, portanto, não são isentas de trazer essas dinâmicas para as relações de intimidade com pessoas do mesmo sexo» (p. 240, cap. 9), pelo que urge formação para intervenção junto das pessoas e profissionais da área.

Relativamente à transfobia, esta «tem sido defendida como forma de discriminação, violência, ódio/rejeição contra pessoas trans ou contra quem rompe com as normas de género» (p. 261, cap. 10). Considera-se, neste enquadramento, importante a apropriação do termo transfobia para visibilizar as identidades trans e estimular a visão de uma perspetiva crítica dos direitos humanos para a despatologização das identidades trans e para ganhar sentido o valor ético da diversidade de género. As mudanças legislativas têm sido centrais, mas o combate também se faz no domínio das mentalidades, havendo aqui um longo caminho ainda a percorrer.

Numa perspetiva mais preventiva e lançada como desafios para novas e estratégicas intervenções na atualidade, temos o artigo «sexualidade e género: educar para o social plural», de Cristina P. Vieira (cap. 12), colocando o enfoque na necessidade de uma educação no sentido Plural porque enfraquece mentalidades hegemónicas e dominadoras com uma só verdade e um só sentido. Relativamente às novas tecnologias, Teresa Castro e António Osório (cap. 7), no capítulo «É uma situação complicada. Perspetivas de raparigas sobre interações mediadas pela tecnologia», condicionantes dos processos educativos, referem que «as crianças habitam um mundo de significados criado por ela próprias (…) no qual a atuação social das crianças é estruturada através de um sistema que não é familiar aos adultos» (p. 208, cap. 7), questão central para se definirem melhor as formas de comunicação com as crianças e os jovens.

No capítulo sobre «Violência de Género nos Media», Carla Cerqueira e Sílvia Gomes (cap. 8), salientam a complexidade cada vez maior das relações de poder e a necessidade de se pensar o sexismo e a sua exploração através de um olhar triangular – produção, conteúdo e receção.

Deste conjunto de artigos resulta que a Prevenção é o caminho, e só através dela se «permite a facilitação de um mecanismo de libertação intelectual em relação à dominação, que permitirá a promoção de direitos humanos e da Igualdade na sua plenitude» (p. 334, cap. 12).

Para finalizar, importa salientar a importância dos modelos pedagógicos e educativos nos processos de prevenção da violência de género e na construção de novas feminilidades e de novas masculinidades, que permitirão a facilitação de mecanismos de libertação intelectual em relação à dominação e a promoção, na sua plenitude, dos Direitos Humanos e da Igualdade.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons