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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.37 Lisboa jun. 2018

 

RECENSÕES

 

Power, Knowledge and Feminist Scholarship: an ethnography of academia, de Maria do Mar Pereira. Oxon e Nova Iorque: Routledge, 2017, 228 pp.

Ana Oliveira

Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal.

 

 

O livro Power, Knowledge and Feminist Scholarship resulta de uma etnografia de matriz feminista sobre a vida académica, negociada a partir do paradigma do estatuto epistémico, concebido, por sua vez, como simultaneamente produto e agente do processo através do qual a academia determina o que constitui conhecimento válido e relevante. Inspirada, por um lado, pela epistemologia feminista, pelo legado de Michel Foucault e pelos contributos dos estudos sociais da ciência e da tecnologia e, por outro lado, comprometida com a óptica analítico‑política da interdisciplinaridade e do envolvimento social, Maria do Mar Pereira documenta e discute as hierarquias académicas e geopolíticas na produção e no reconhecimento de ciência, procurando, nas práticas discursivas, a genealogia das lutas pela cientificidade. Recuperando o papel das lógicas de negociação que já explorara anteriormente (Fazendo género no recreio: a negociação do género em espaço escolar, de 2012, que lhe valera o prémio internacional de melhor livro em investigação qualitativa, 2010‑2014), neste livro é a articulação entre os níveis micro e macro das negociações epistémicas que procura desenvolver, a partir de uma incursão empírica, de mais de uma década, no campo dos Estudos Feministas, sobre as Mulheres ou de Género (EFMG) (no original, Women, Gender, Feminist Studies, WGFS). Esta incursão compreendeu entrevistas, conversas informais e observação participante em eventos académicos, realizadas em Portugal, Reino Unido, Estados Unidos da América e Suécia.

Escrita em dois períodos diferentes, 2008/2009 e 2015/2016, a análise da autora acompanha as transformações produzidas pela centralidade da performance (de sujeitos e organizações) e pelas lógicas da performatividade – enquanto princípio organizador e matriz discursiva – na institucionalização e nas negociações do estatuto epistémico dos EFMG. Neste domínio, o argumento da autora é duplo: por um lado, a reconceptualização e reestruturação da universidade enquanto regime e cultura académicos da performatividade – ancorados tanto na produtividade e na rentabilidade quanto nos mecanismos de auditoria, controlo métrico e classificação (rankings) – transformam a produção de conhecimento. Ou seja, a partir da exigência de produtividade individual (de um modo quantificável e mensurável em índices e narrável em critérios de avaliação da qualidade e da excelência) e de um regime de credibilidade epistémica crescentemente enquadrado como crédi(to)bilidade [no original, credi(t)bility, recuperando o termo de Michael Gibbons], i.e., pela capacidade de captar financiamentos (gerar receita), a produção de conhecimento responde e cumpre‑se num sistema de crédito social, aliado a estratégias de maximização do impacto através da visibilidade, amplamente patrocinada pelas redes sociais. Por outro lado, é esta cultura académica da performatividade que permite a emergência dos EFMG à medida que este campo passa a ser entendido pelo seu potencial institucional e financeiro. E aqui o argumento da autora volta a desdobrar‑se.

Em primeiro lugar, não obstante as conquistas (assim consideradas devido à cultura produtivista concertada nas universidades) e as oportunidades, até então indisponíveis, neste campo – desde a criação de grupos e de programas à aprovação de financiamentos europeus (como as European Research Council grants) –, bem como o reconhecimento que estas conferiram aos EFMG, a sua institucionalização mantém‑se simultaneamente condicionada e no estado de uma institucionalização individualizada: condicionada à manutenção da produtividade das suas académicas e académicos; e no estado de uma institucionalização individualizada, uma vez que o prestígio reconhecido a determinados trabalhos é compreendido como prestígio individual, vinculado a um ou a uma investigadora particular, e não um sinal de estatuto epistémico do campo. Face à desqualificação epistémica dos EFMG que a autora concluiu da sua recolha etnográfica, e acompanhando Chandra Mohanty e Adrienne Rich, Maria do Mar Pereira propõe‑se inscrever um lugar no mapa da ciência, discutindo as fronteiras da cientificidade e do quanto estas incorporam a pesada herança que equaciona ciência com masculino e o que quer que conte como feminino com algo não‑científico – premissa do que a autora designa por dupla fronteira do trabalho [no original, double boundary‑work]. Neste sentido, partindo da concepção de Thomas Gieryn sobre o potencial emancipatório do feminismo assentar na reconfiguração axiológica de política, cultura e natureza, de objecto e sujeito, de masculino e feminino, o projecto académico feminista, apresentado pela autora, não passa apenas por lutar contra a exclusão das mulheres na ciência, como também por lutar contra a exclusão dos EFMG, enquanto campo, no espaço (de geopolíticas locais e globais hierárquicas) da ciência.

Em segundo lugar, o regime que permite aos EFMG vingar no campo académico é altamente criticável ao nível das condições de trabalho. Perante a fetishização da performance e da competição individual e da intensificação do imperativo produtivo, Maria do Mar Pereira dá conta de uma academia à beira do colapso, criativo, emocional e físico. A autora argumenta que, na academia actual, os EFMG estão capturados nas lutas pelo poder de definir o que conta como conhecimento verdadeiro; pelo poder de demarcar fronteiras epistémicas, o estatuto das disciplinas, das instituições e até de regiões ou países, sucumbindo perante a posição paradoxal de crítica e de cumplicidade com as culturas académicas emergentes. Neste sentido, a abertura – discursiva, material e institucional – aos EFMG tornou‑se a precondição para a dissidência feminista se tornar participante no jogo académico da produtividade, da auditoria e da performatividade. Em suma, como evoca a autora, permitiu ao feminismo na academia tornar‑se o feminismo da academia (Pereira, p. 214), contribuindo, com a sua excelência académica, tanto para a performance da universidade performativa, quanto para a apresentar como uma instituição aberta, diversa e meritocrática. No entanto, contesta Maria do Mar Pereira, o tipo ideal de «trabalhador científico» neste regime académico, excepcionalmente produtivo e competitivo, é desapegado e desprendido de outras responsabilidades; pertence, nessa perspectiva, ao domínio imaginário do masculino. A universidade performativa não é, pois, nem será jamais, tão aberta, diversa ou meritocrática como pretende ser. E é com base nesta premissa e cenário (de colapso) que Maria do Mar Pereira, inspirada pelo trabalho de Kathi Weeks, esboça um manifesto de desafio à actual organização do trabalho e de resistência à moralização, santificação e normalização do trabalho (intenso). Propõe, nesse manifesto, uma estratégia de recusa e de reacção à cultura académica da rapidez, às expectativas produtivistas, à marketização e neoliberalização da universidade, um resgate da flexibilidade reflexiva na epistemografia feminista; reclama uma desaceleração concertada na cultura académica.

O profundo debate que este livro reclama impõe, na economia desta recensão, que me detenha nas seguintes questões: os estudos feministas, sobre as mulheres ou de género são um campo ou uma disciplina? E que campo ou disciplina são, ou podem os EFMG (querer) ser? Mais: serão os estudos feministas, estudos sobre as mulheres ou estudos de género proposições sinónimas, complementares ou eventualmente contraditórias? Esta discussão, cuja relevância se renova no cenário traçado nesta obra, mostra‑se chantageada pelas próprias lógicas neoliberais, empreendedoras e performativas da academia, de que dá conta Maria do Mar Pereira: a crescente procura e visibilidade mediática desta área concorre com a necessidade dessa procura e dessa visibilidade, reforçando o uso estratégico deste acrónimo como aglutinador de agendas. Daqui derivam duas notas: a primeira refere‑se ao modo de nomear as pessoas que trabalham neste campo; a segunda ao paradoxo da defesa do campo.

Relativamente ao modo de nomear as pessoas, ao longo desta etnografia, a autora identifica três tipos de sujeitos: académicas ou académicos em EFMG (no original, WGFS scholars); académicas ou académicos que não em EFMG (non‑WGFS scholars); ou académicas ou académicos com experiência em EFMG (scholars with WGFS expertise) – e entre estas, distingue entre senior e junior. Os termos que sustentam estas categorizações recuperam a discussão da delimitação do campo e das estratégias que lhe subjazem e ditam outras tantas interrogações: qual é a diferença entre WGFS scholars e scholars with WGFS expertise? É um novo cartesianismo entre competências profissionais‑intelectuais e compromissos‑posicionamentos político‑pessoais? É o reconhecimento formal de um grau em EFMG? É uma designação‑nomeação auto e/ou hetero‑imposta/ reconhecida? Alguém que se anuncia como feminista é uma WGFS scholar? E a reivindicação desse título determina que os seus textos ou intervenções sejam feministas? O que torna uma abordagem distintivamente feminista – A Dominação Masculina, de Pierre Bourdieu, é um exemplo paradigmático desta ambivalência – e quem tem a autoridade para a reconhecer, para a prescrever ou, pelo contrário, para a contestar? Este demonstrar‑ser ou demonstrar‑ter‑competências (em EFMG) não é já a universidade performativa a cumprir‑se?

Entre a estratégia de credibilização do campo e a dialéctica de binarização do mundo (académico), inscreve‑se a última nota sobre a corporativização dos EFMG, ou o paradoxo da defesa do campo. Se, por um lado, a defesa dos EFMG, que é a defesa da legitimidade (científica) deste campo, i.e., deste campo como ciência (verdadeira), logo como disciplina, incorre no equívoco que denuncia na fabricação epistémica (e do seu estatuto): a produção do conhecimento é, ela própria, produto e produtora de relações de poder; por outro lado, como discutir o campo sem pôr em causa a sua relevância e, em última instância, sem pôr em causa a sua relevância na economia da produção do conhecimento? Além disto, se a produção de conhecimento assume, nesta obra, uma vertente ensaística sobre a epistemologia do método da etnografia guiada pela empatia (crítica) e pela solidariedade – reconhecidas como projecto político, ou estratégia discursiva, de resistência à racionalidade neoliberal e competitiva da academia –, como aderir (e quem pode aderir) a esta ética de empatia quando a gramática e pragmática académicas assentam, dependem e premeiam a delimitação do trabalho que realça a superação analítica da proposta (ou agenda) teórica de um ou de uma autora vis‑à‑vis propostas ou autorias concorrentes? Ou quando a cientificidade das perspectivas feministas surge atrelada à economia política do seu reconhecimento (como feminista) ou do seu financiamento (como engenharia social)? Ou, ainda, sem perpetuar a «polite feminist research» diagnosticada por Marianne Grünell e Erna Kas (1995) na academia/campo português? E eis‑me chegada ao dilema político‑epistemológico último: como resgatar um campo refém da razão de Estado, refém da razão de mercado e refém, pela própria necessidade de se constituir enquanto campo/disciplina, das palavras para o dizer, invocando o les mots pour le dire de Marie Cardinal (apud Bebiano e Ramalho 2010, 10)?

Por fim, do mesmo modo que, como recenseia a autora, a literatura sobre a institucionalização dos EFMG não apenas faz dela um objecto de estudo, mas intervém nesse mesmo processo – ou seja, os textos são agentes de institucionalização e, desse modo, parcialmente constitutivos do fenómeno que examinam –, este livro de Maria do Mar Pereira intervém na institucionalização do campo; intervém na nomeação do campo, do seu cânone, da sua verdade, da sua história (de sucesso). Escreve‑se nessa história.

 

 

Referências

Bebiano, Adriana, e Maria Irene Ramalho. 2010. «Estudos feministas e cidadania plena», Revista Crítica de Ciências Sociais, 89, 5‑10. Disponível em: http://journals.openedition.org/rccs/3659.         [ Links ]

Grünell, Marianne, e Erna Kas. 1995. «State of the Art: Women's Studies in Portugal». The European Journal of Women's Studies, 2, 535‑545. Disponível em: http://ejw.sagepub.com/content/2/4/535.full.pdf. DOI: doi/pdf/10.1177/135050689500200408.         [ Links ]

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