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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.36 Lisboa dez. 2017

 

RECENSÕES

 

Filosofia e Género. Outras narrativas sobre a tradição ocidental, de Fernanda Henriques. Lisboa: Edições Colibri, 2016, 256 pp.

 

Maria do Céu Pires

Doutora em Filosofia, Centro LABCOM. IFP, Núcleo da Universidade de Évora, Portugal.

 

 

Trazer o que sempre esteve nas margens para o centro – será esta a tarefa da Filosofia? Pensar o que ainda não foi pensado, pensar de outro modo o já pensado – será esta uma das incumbências da Filosofia, hoje? Estou em crer que sim. Porque, em mais de dois mil anos de História, a universalidade procurada foi (quase) sempre parcial, excludente de grupos e de indivíduos remetidos para uma sombra de não-existência. As margens foram poucas vezes pensadas. Mesmo quando, em termos numéricos, correspondiam a metade da Humanidade.

Importa, então, dar estatuto de «cidadania filosófica» a temas e a problemas que, com frequência, foram considerados menores ou secundários.

É isso que Fernanda Henriques ao longo do seu percurso de muitos anos de investigação tem realizado: apresentar uma outra leitura da História e, particularmente, da História da Filosofia. A obra Filosofia e Género. Outras narrativas sobre a tradição ocidental, publicada no final de 2016, surge como um ponto alto dessa trajetória.

Depois de uma breve apresentação em que a autora nos informa sobre a organização do livro e sobre a sua dupla origem, uma mais remota, outra mais próxima (provas académicas de agregação em Filosofia), somos brindados/as com o excelente prefácio de Maria Irene Ramalho. No seu conjunto, a obra é constituída por dois momentos distintos: «Princípios hermenêuticos reguladores da leitura proposta neste livro» (I Parte) e «Outras narrativas sobre a tradição Ocidental» (II Parte). Termina com uma extensa bibliografia, de grande utilidade para quem se dedica a estes temas.

A I Parte funciona como sustentáculo teórico da leitura que Fernanda Henriques irá desenvolver posteriormente. Segundo as suas palavras, este diferente modo de ler a tradição é «quase uma impossibilidade» pois para revisitar a História da Filosofia seria necessário ser-se especialista em todas as épocas. Ora, tal não acontece. Porquê, então, insistir neste projeto? Por um lado, porque corresponde a uma necessidade pessoal da sua autora, mas também porque é concebido como um conjunto de perspetivas que radicam o seu fundamento em estudos já realizados, nomeadamente os que se inscrevem no âmbito de uma perspetiva feminista. Neste sentido, deve salientar-se que esta obra, como aliás a própria autora reconhece, se situa em linha de continuidade com o projeto Filosofia no Feminino, desenvolvido no Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa desde meados da década de 90 até ao ano 2000. Para além desta filiação investigativa, Fernanda Henriques está ciente de que o seu trabalho, em termos daquilo que é o cânone instituído, se encontra à margem pois este tem considerado a relação Filosofia e Feminismo como uma forma «menor» de Filosofia e, portanto, como não relevante. Esta situação apresenta-se, à partida, como um risco. Contudo, é precisamente aí que reside, em meu entender, o enorme valor da obra. O seu mérito é significativo não só para os estudos feministas mas também para a Filosofia e para a sua História. As suas implicações são de ordem histórica mas também hermenêutica e epistemológica, com interferências diretas ao nível ético e político.

No primeiro momento do livro, a autora apresenta um conjunto de princípios hermenêuticos que a orientaram e que conferem legitimidade filosófica ao que se propõe defender, a articulação entre Filosofia e Género, entendendo esta como um filosofema e, em simultâneo, tomar a História da Filosofia também como um problema filosófico e não como mera lista de autores situados nas respetivas épocas.

O filósofo que lhe serve de referência é Paul Ricoeur e a sua problematização da história/consciência/memória. A dado momento e, referindo-se à ideia de que, no que à História diz respeito, é sempre «possível contar de outro modo», Fernanda Henriques afirma a convicção de que é «filosoficamente legítimo e culturalmente necessário reler a história da filosofia na perspetiva de fazer aparecer a maneira como nela se configurou a conceção do feminino e de como essa conceção determinou o papel das mulheres na vida da sociedade1 Na verdade, se não podemos ignorar os contextos culturais em que surgem os filósofos e a suas teorias e o modo como esses contextos exercem influência sobre a consciência individual, não é menos verdade que essa relação não é mecânica e que podemos, a qualquer momento, ver o que ficou oculto: as pessoas e os textos. Somos a herança que recebemos mas esta está (deve estar) sujeita a interpretação e a avaliação crítica. Neste sentido, os conceitos de «desconstrução» e de «conflito de interpretações» apresentados pelo filósofo francês são essenciais para justificar uma nova abordagem do real que suponha uma razão limitada, finita e inclusiva e, em simultâneo, a capacidade transformadora que advém do conflito interpretativo e também de uma visão sustentada na capacitação humana. O que, para uma melhor compreensão da problemática do feminino é tarefa essencial.

Esclarecendo que toda a sua abordagem se situa no interior de uma perspetiva feminista, para além de Paul Ricoeur, a autora recorre na sua fundamentação também a Hans-George Gadamer, nomeadamente à noção de «consciência histórica », chamando a atenção para o facto de que a nossa compreensão da realidade é sempre feita a partir de esquemas de pré-compreensão. Dito de outro modo, a História é, por um lado, a condição em que realizamos a interpretação mas é, ao mesmo tempo, constituída por um conjunto de constrangimentos que interferem nessa interpretação. Para o caso que aqui se trata, há que ter consciência que a perspetivação da Humanidade foi sempre realizada com dois padrões de avaliação: o masculino (correspondente à norma) e o feminino (entendido como o derivado).

Deste modo, para Fernanda Henriques a hermenêutica de Paul Ricoeur e de Gadamer servem de sustentação teórica para o que vai desenvolver na II Parte da obra (Outras narrativas sobre a tradição Ocidental): 1) dar visibilidade ao feminismo e às mulheres na nossa tradição filosófica; 2) ressignificar as conceções existentes sobre essa tradição e abrir caminhos para novas representações sociais do feminino.

Desde a herança grega, passando pela herança cartesiana, desde a forma como as mulheres e o feminino foram concebidos na Idade Média, passando pela revolução francesa e pela Modernidade, até às mudanças na segunda metade do século XX, todos estes momentos são revisitados sob um olhar crítico com o objetivo de, segundo a autora «ensaiar a possibilidade de mostrar que há uma sistematicidade inteligível na abordagem da História da Filosofia, do ponto de vista do «subtexto de género» (…)»2

Se podemos situar na Grécia as matrizes fundadoras da cultura ocidental, é também aí que encontramos o início da discriminação antropológica que concebe o feminino «como derivado», bem patente nalguns textos, como é o caso de Aristóteles e de Platão. Contudo, nesse mesmo contexto histórico, registam-se textos e figuras dissonantes, por exemplo, a possibilidade das «filósofas-rainhas» colocada por Platão ou a figura de Antígona e a sua lição de força, de coragem e de convicção. Outras figuras, por exemplo, Safo e Aspásia e outros textos, como as comédias de Aristófanes «Lisístrata» e «Assembleia de Mulheres», atestam a ideia de que a dominação masculina nem sempre foi aceite.

Também na Idade Média a conceção do feminino foi marcada por profundas ambiguidades, pois se, por um lado, há a tentativa de mostrar a igualdade de homens e mulheres perante Deus, por outro lado, constatamos uma tendência dominante para secundarizar as mulheres e o feminino. Tomando como ponto de partida a figura de S. Paulo, Fernanda Henriques considera-o o autor da mais «radical afirmação de igualdade do cristianismo» (Gálatas, 28)3. Contudo, o que vai prevalecer ao longo de séculos são as suas afirmações que inferiorizam as mulheres e que estão relacionadas com um certo modo de interpretar Adão e Eva. Toda a ambiguidade medieval a este respeito se relaciona com diferentes «figurasmodelo»: Eva, Maria e Maria Madalena e com mulheres concretas que tiveram autoridade e poder, como é o caso de Hildegarda de Bingen, pregadora e autora de uma obra notável, abarcando temáticas de medicina, música, filosofia e teologia.

Pelos ideais emancipatórios com que se apresentou, pela difusão dos valores «iluministas», poderíamos esperar que a Modernidade teorizasse a igualdade e a inclusão, perspetivando o feminino de modo diferente do que até aí tinha acontecido? Sim, era uma esperança legítima numa época em que os valores da razão, enquanto capacidade de universalização se expandiram. Mas, a verdade é que tal só aconteceu em parte e não foi essa a parte que imperou. Um caso bem paradigmático é o de Rousseau que, sendo considerado como exemplar relativamente àquele que é um pilar da Modernidade – o papel fundamental da educação no desenvolvimento dos indivíduos – vai, na sua obra Émile assumir uma diferenciação em relação às mulheres, cuja educação tem como finalidade prepará-las para agradar aos homens. Segundo Fernanda Henriques, Rousseau nega a autonomia e a individualidade às mulheres, consideradas, na sua globalidade, como possuindo uma natureza frágil, sensual e dependente. Rousseau será, assim, um dos responsáveis pela não universalização dos princípios da Modernidade, e, portanto, pela continuação da naturalização da marginalização.

Nesta leitura que nos apresenta da Modernidade, a autora de Filosofia e Género lembra alguns dos textos e autores/as que ficaram no (quase) esquecimento e que são essenciais para percebermos este movimento de não-aceitação do estabelecido. É o caso de Poulin de la Barre que, pese embora a influência cartesiana, é autor de várias obras relativas à igualdade entre homens e mulheres, mostrando e denunciando os preconceitos existentes, particularmente em matéria de educação e do exercício da racionalidade. Este autor mostra-se admirado com algo que, passados quase três séculos, não deixa de nos causar ainda perplexidade: o facto de algumas mulheres se pensarem e agirem como inferiores.

Para além das questões educativas, um outro assunto que, nesta época, estimulou o debate referia-se à participação das mulheres no espaço público. A este título, são de salientar o texto do Marquês de Condorcet Sobre a admissão das mulheres ao direito de cidadania e a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, de Olympe de Gouges.

Fernanda Henriques termina a II Parte da obra (3º capítulo) fazendo uma análise bastante aprofundada das alterações paradigmáticas que ocorrem no século XX, destacando o contributo de Simone de Beauvoir, de Lucy Irigaray e terminando com a referência a quatro autoras contemporâneas que apresentam novas perspetivas sobre a ética e a política, articulando justiça e cuidado: Maria de Lourdes Pintassilgo, Adela Cortina, Seyla Benhabib e Martha Nussbaum. De facto, na sua perspetiva, a segunda metade do século XX, a que corresponde a chamada 2ª vaga do feminismo, acarreta alterações profundas sobretudo na participação das mulheres no espaço público e na sua afirmação, enquanto sujeitos, no trabalho teórico em geral e, em particular, no filosófico.

Podem apontar-se fundamentalmente duas ordens de razões para esta revolução epistemológica. Uma delas refere-se a alterações sociais e políticas que permitiram o acesso à educação a um número cada vez maior de mulheres; a outra pode situar-se numa alteração de paradigma de racionalidade que, questionando o modelo moderno de uma razão calculadora e instrumental, acentua uma razão dialógica e inclusiva.

Com propriedade, podemos dizer que Fernanda Henriques se insere, ela própria, neste movimento que descreve. São suas estas palavras: «Se há uma espécie humana, a razão impõe que ela partilhe universalmente dos mesmos direitos. Excluir metade da humanidade do seu usufruto é, no mínimo, tirania. Ou seja, releva do poder e da força e não da racionalidade4

Por tudo o que ficou dito e por tudo o que não cabe neste espaço, parece-me que Filosofia e Género constitui um marco de referência no pensamento feminista e na Filosofia do século XX. É, pois, uma obra de leitura obrigatória.

 

 

Notas

1 Henriques, Fernanda, Filosofia e Género. Outras narrativas sobre a tradição ocidental. Lisboa, Edições Colibri, 2016, p. 28.

2 Idem, p.60.

3 Idem, p. 75.

4 Idem, p. 103.

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