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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.35 Lisboa jun. 2017

 

RECENSÕES

 

Rethinking Gender in Revolutions and Resistance. Lessons from the Arab World, edited by Maha El Said, Lena Meari, & Nicola Pratt. London: Zed Books, 2015, 262 pp.

Verónica Ferreira

 

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Portugal

 

 

«Rethinking Gender in Revolutions and Resistance», editado por Maha El Said, Lena Meari e Nicola Pratt, foi o resultado do Workshop homónimo que marcou o fim de um projeto de três anos desenvolvido e financiado pela British Academy, Centre for the Study of Women and Gender, Universidade de Warwick, Reino Unido, e Institute of Women’s Studies, Universidade de Birzeit, Palestina.

O livro recolhe contributos de investigadoras provenientes de universidades do Reino Unido (RU), Egito, Emirados Árabes Unidos (EAU) e Palestina. Os artigos dividem‑se em três partes temáticas. A primeira, «The Malleability of Gender and Sexuality in Revolutions and Resistance», tem como ponto central as identidades e subjetividades de género que emergem em momentos de transição, i.e., a forma como mulheres e homens desafiam, subvertem e conferem novos significados às normas de género existentes com o objetivo de resistir ao autoritarismo e colonialismo.

No primeiro capítulo, «Reconstructing Gender in Post‑Revolution Egypt», Shereen Abouelnaga (Universidade do Cairo, Egito) analisa a forma como a confrontação discursiva com as normas de género hegemónicas permite gerar novos processos de transformação dessas normas (p. 52). De acordo com Abouelnaga, ao criarem uma subjetividade feminina «apropriada» – modesta, privada etc. – e combaterem, ao mesmo tempo, as formas de subjetividade subversivas através da violência de género, as forças e instituições políticas egípcias pós‑revolução permitiram a denúncia dessa mesma subjetividade como construção forçada (pp. 39‑40). A resistência discursiva das mulheres no rescaldo de episódios públicos de violência levou ao processo de subversão da imagem da vítima, substituindo‑a pela da guerreira (pp. 49‑52).

Lena Meari (Universidade de Birzeit, Palestina), no capítulo «Resignifying ‘Sexual’ Colonial Power Techniques», explora a forma como os soldados israelitas tentam subjugar as mulheres palestinianas por meio de perceções pre‑conceituosas da sua identidade, normas de género e sexualidade. Recorrendo a entrevistas a mulheres alvo de tortura em interrogatórios israelitas, a autora mostra‑nos como o sumud – «steadfastness under interrogation» (p. 60) –, enquanto praxis revolucionária, abre possibilidades de conferir novos significados a estas técnicas e transforma as normas de género/sexualidade instrumentalizadas por soldados israelitas (e.g. modéstia e honra) em formas de resistência e em novas subjetividades. Ou seja, levam à re‑significação das normas de género e sexualidade por parte das mulheres e homens palestinianos.

A última contribuição, «A Strategic Use of Culture», de Hala G. Sami (Universidade do Cairo), tem como ponto de partida a afirmação das mulheres no espaço público egípcio no período pós‑revolução. Num período marcado pelos debates sobre o papel da mulher no espaço público, a autora argumenta que, fazendo uso da intertextualidade cultural nas suas produções artísticas, as mulheres conseguem reclamar o espaço público através da apropriação de uma história nacional feminina egípcia (pp. 101‑103).

A segunda parte desenvolve o tema «Body and Resistance». O corpo é aqui estudado como ferramenta nas estratégias de resistência empregues pelas mulheres na criação de novas formas hegemónicas de comportamento corporal. Por meio destas estratégias, subvertem a ideia do corpo como espaço de controlo durante as transformações sociais e políticas desde o fim de 2010.

O texto «She Resists» de Maha El Said (Universidade do Cairo) tem como âmbito de análise as estratégias de resistência de Aliaa Magda Elmahdy, conhecida como a blogger nudista, e Sama El‑Masry, a dançarina do ventre youtuber, no período pós‑revolução egípcia. No entanto, de acordo com a autora, as diferentes reações às suas formas de luta devem‑se à conjugação, ou não, de elementos culturais na utilização instrumental do corpo. Para a autora «[…] effective agency has to be in accordance with national and cultural identity» (p. 129). Se, por um lado, Elmahdy faz uso do corpo nu como forma de luta ao estilo Femen, abalando o quadro conceptual e normativo tradicional e levando a uma associação à subjetividade ocidental; por outro, El‑Masry, apesar de não se associar à agenda feminista, é encarada como a encarnação da agência subalterna que nasce da cultura popular contra a hegemonia de uma elite de políticos e religiosos (p. 129). Ao fazer uso de elementos culturais nas suas performances é bem recebida pelos revolucionários egípcios.

No capítulo «Framing the Female Body», Abeer Al‑Naijar e Anoud Abusalim (Universidade Americana de Sharjah, EAU) refletem sobre as formas como os media nacionais recebem as estratégias de luta de Elmahdy e da tunisina Amina boui, ao usarem os corpos «[…] to make political statements, in defiance of the authorities but also patriarchy» (p. 150). A condenação, através do questionamento patológico e moralista do seu comportamento, segundo as autoras, «[…] was a product of the non‑conventional combination of the message and the medium, in that political and social messages were communicated through uncovering the human body» (p. 151).

O tema é encerrado por «Women’s Bodies in Post‑Revolution Libya» de Sahar Mediha Alnaas e Nicola Pratt (Universidade de Exeter e Universidade de Warwick, respetivamente, RU), onde se relaciona o processo de transição política da Líbia com a afirmação de um projeto islâmico nacional, no qual os corpos das mulheres são a marca mais visível na distinção entre o passado e o presente a construir. Para compreender as formas de resistência que as mulheres adotaram na Líbia é necessário mover o foco da análise para além das instituições formais e explorar as suas ações quotidianas.

Por último, «Gender and the Construction of the Secular/Islamic Binary» traz‑nos artigos que desconstroem o paradigma binário que opõe secular/moderno/progressivo ao religioso/pré‑moderno/tradicional. Ao ler a última parte do livro, compreendemos como as análises europeias e anglo‑saxónicas observaram os períodos de sublevação económica e social de forma descontextualizada (p. 20), baseando‑se num quadro conceptual orientalista. O resultado deste referencial binário levou à interligação entre os movimentos das mulheres e o discurso de modernização nacional dos regimes, dificultando a sua independência em relação aos regimes e levando à escolha, por parte das mulheres muçulmanas de esquerda, entre discursos seculares coloniais e discursos islâmicos locais (idem).

Omaina Abou‑Bakr (Universidade do Cairo), no capítulo «Islamic Feminism and the Equivocation of Political Engagement», analisa a complexidade desta relação ao criticar o feminismo estatal/secular pela sua associação ao regime corrupto de Mubarak. Associação que se repetiu com a deposição de Morsi e subida ao poder do General El‑Sisi (pp. 181‑204). Na Tunísia, Aitemad Muhanna (London School of Economics, RU) chama a atenção, no capítulo «Islamic and Secular Women’s Activism and Discourses in Post‑Uprising Tunisia», para a partilha de objetivos comuns – acesso à educação, emprego, participação política e violência contra as mulheres (p. 23; pp. 222‑227) –, bem como a aprendizagem mútua através da troca de experiências entre autodenominadas ativistas seculares e islâmicas.

Num período em que se abordam questões relativas à autonomia e subjetividade das mulheres, identificadas genericamente como muçulmanas, contributos como o destas investigadoras são de grande importância, na medida em que se esforçam por analisar e compreender as continuidades e ruturas nos papéis, normas e relações de género resultantes dos momentos de sublevação política, a partir das experiências da Primavera Árabe, segundo uma perspetiva crítica feminista.

Pretendem captar a constituição complexa das subjetividades e agências femininas face a estruturas de poder múltiplas e cruzadas, dentro de um contexto de apropriação e instrumentalização do corpo feminino como marcador entre o passado e o presente por forças seculares e islamitas nos processos de mudança ou transição sociopolítica pós‑revolução. Os seus corpos são simultaneamente territórios de luta e ferramentas de resistência.

Porém, o livro falha pela falta de análise das condicionantes de classe. Ao analisarem os casos de estudo não têm em consideração formas de resistência de mulheres pobres e/ou de zonas rurais. Paralelamente, não é questionado o conceito de género, nem é pensado em profundidade o conceito de masculinidade ou tida em consideração a questão da orientação sexual como identidade articulada. O foco é exclusivamente nas ações das mulheres e movimentos com mais visibilidade pública, sendo eles das elites, da classe média ou habitantes das zonas urbanas/capitais. Esta falha é tida em conta pelas editoras ao afirmarem, no capítulo final referente à conclusão, «we should ask whether the politics of resignification and subversion of gender norms […] operate to accommodate neo‑liberal politics and to marginalize socio‑economic concerns of poverty, employment, housing and education or to ignore the plight of non‑nationals, including […] millions of refugees […]» (p. 239).

Da mesma forma, seria interessante explorar a participação feminina na guerra civil e as estratégias de luta e resistência que as mulheres assumiram durante o período de protesto e resistência ao regime de Bashar Al‑Assad na Síria, i. e., a subversão dos papéis, normas e relações de género socialmente aceites. Este caso acabou por ficar fora do espoco do livro.

Não obstante, o livro contribui para melhorar a nossa compreensão da articulação entre género, cultura, nação e contexto pós‑colonial enquanto formadores das experiências das mulheres, em especial em conjunturas de sublevação e transição sociopolítica, movendo a análise essencialista da identidade para as práticas polimorfas de significação (Butler, 1999, pp. 183‑84 apud p. 236).

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