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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.33 Lisboa jun. 2016

 

RECENSÕES

Meihy, José Carlos S. B. (2015), Prostituição à brasileira – cinco histórias, São Paulo, Ed. Contexto, 240 pp.

Camila Craveiro1

 

1Doutoranda em Ciências da Comunicação, Universidade de Minho, Portugal

 

Pode o vulnerável falar?

Apesar de historicamente arraigada às relações sociais, a prostituição suscita ainda hoje debates feministas que contemplam visões diametralmente opostas. Ora fala-se em submissão total do feminino, ora situa-se o uso do corpo no mercado do sexo como possibilidade de subversão do patriarcalismo: uma maneira de «virar o jogo».

É justamente no intuito de se desvencilhar de perspectivas dicotômicas e, portanto, reducionistas da relação migração-prostituição e dar voz aos atores encobertos pelas estatísticas apresentadas nos relatórios oficias que se encontra o mérito da obra de José Meihy. As falas, encadeadas em histórias que delineiam vidas, tem por objetivo abordar o tema da prostituição por um novo viés, a partir dos sujeitos (agentes) que, por escolha própria ou por um golpe do destino, decidiram pelo caminho do corpo como objeto de troca.

Lançada no ano de 2015, pela Editora Contexto, a obra traz o relato de cinco entrevistas realizadas durante uma longa pesquisa do autor, professor, doutor em História Social e coordenador do Núcleo de História Oral da Universidade de São Paulo.

No início do livro, José Meihy (2015) nos apresenta uma contextualização do que representa hoje, em termos de mercado, a prostituição. Partindo de números que podem alarmar os que não pesquisam o tema, traz o dado de que há, na atualidade, mais de 40 milhões de pessoas se prostituindo no mundo, sendo cerca de 75% mulheres, a maioria entre 13 e 25 anos.

Após essa breve contextualização, o autor propõe um retorno ao significado do feminino em diferentes culturas, desde as explicações da origem da vida e da natureza na figura das deusas-mãe até o momento em que, na fase do nomadismo, o matriarcado é substituído pelo patriarcalismo. É a partir de então que se pode construir uma história da prostituição. Ressalta ainda que a tradição judaico-cristã foi definidora no estabelecimento das diferenças entre homens e mulheres e que, na Idade Média, o feminino foi conectado à ideia do mal e do pecado: um ser volúvel às tentações.

Já no Brasil, o autor conta que a história da prostituição tem início com uma solução arranjada pelos jesuítas portugueses para resolver dois problemas: o da metrópole e da colônia. O envio das «erradas» para o Brasil livraria Portugal desse tipo social indesejado e, ao mesmo tempo, ajudaria a povoar a colônia, que contava com grande número de pessoas do sexo masculino.

O autor finaliza esse capítulo relatando que a divisão da sociedade brasileira em classes, a mestiçagem e a prostituição foram, no decorrer dos séculos, promovendo marcas de subalternização em determinados grupos, em especial às mulheres, mestiças e negras, pobres e migrantes.

Levantado esse primeiro referencial sobre o tema, é hora de dar voz aos agentes. O autor escolheu, dentre centenas, cinco histórias para ilustrar e fazer refletir sobre o tema da prostituição no âmbito internacional. E é aqui que reside o encanto da obra: a humanização acontece gradativamente aos olhos atentos do leitor que, sensibilizado, participa dos descaminhos, das escolhas, das tentativas de acertos, das renúncias e conquistas dos indivíduos que não podem mais ser reduzidos ao substantivo prostituta/o. São pessoas com uma história, dotadas de autonomia, procurando conduzir a vida de maneira com que as condições sociais forjadas tornem-se mais aliadas do que inimigas.

Leide, a primeira participante, reconta sua história, que tem como ponto de partida a fazenda, no interior de Minas Gerais. Ainda menina, ela afirma sentir que não pertencia àquele lugar. E sabia, também menina, das investidas do capataz da fazenda, cujo abuso é confirmado em páginas seguintes. Leide, porém, não se coloca na situação de vítima. Pelo contrário, forja seu destino e, dona de seu corpo, economiza o que ganha com os programas para ir embora para Europa. Esse agenciamento é o que, para Mayorga, permite às prostitutas imigrantes brasileiras driblarem a heterodesignação e se utilizarem da «estratégia patriarcal colonial para alcançar seus objetivos: autonomia, independência econômica, liberdade» (2011: 346).

Aproveitar-se da heterodesignação (da brasileira como a «outra» no contexto eurocêntrico) e lhe tirar vantagem é um ato subversivo. É justamente para não esvaziar esse caráter de resistência que Doezema (2004) alerta que é preciso não cair na armadilha do olhar que infantiliza as mulheres do Terceiro Mundo, como se elas fossem desprovidas de autonomia para a decisão de emigrar para se prostituir.

Barcelona é a cidade escolhida por Leide, mas para o autor:

(…) o que marca mais e melhor a atitude dessa moça seja o «não lugar». Leide não pertencia a nenhum espaço. Não cabia em estruturas organizadas e sempre se deu mal quando impelida a elas. (…) Sua trajetória foi sempre solitária; e, se sua estrela brilhou, foi em céus emprestados, pagos por clientes sem lustros consequentes (Meihy, 2015: 73).

Lindalva, a segunda a relatar sua vida, se define como mulata «da cor do Brasil». De origem igualmente pobre, do sertão do Maranhão, Linda, como gosta de ser chamada, demonstrava desde cedo uma curiosidade natural pelo sexo e afirma que sequer sabe precisar quando perdeu sua virgindade. Sua história transita por São Luís do Maranhão, onde se gabava por ser namorada dos rapa-zes influentes do tráfico, Rio de Janeiro, em que se viu explorada pelo pai e Girona, na Espanha, cidade onde o mercado da prostituição parece ser o maior e mais desenvolvido de toda a Europa.

E tudo começa aqui, primeiro com o uso do corpo desde criança, nas imediações de sua casa. A situação familiar é, nesse caso, emblemática dos desdobramentos: filha de mãe oprimida, mas que se compensava com o corpo, ela também seguiu a sina. (…) Da atividade pessoal, quase inconsequente, às linhas do tráfico de pessoas e depois à conquista da própria independência… (Meihy, 2015: 112).

A história de Miro se difere das outras duas já contadas. Não há autonomia, não há um projeto ou objetivos definidos que pudessem ser realizados via prostituição. Ingênuo e matuto, como ele mesmo se define, Miro se viu alçado do sertão do Rio Grande do Norte para a Espanha, enredado no tráfico de pessoas.

Antes casado, pai de dois filhos, o jovem uma vez viu nos classificados do jornal local um anúncio para brasileiros que desejassem trabalhar uma temporada na Europa. Depois de muito pensar, decidiu ir. E agora não sabe mais como fazer o caminho de volta.

Após se prostituir durante alguns anos, seviciado, em saunas destinadas ao público masculino espalhadas por cidades espanholas e de se tornar dependente de drogas, o rapaz não tinha certeza mais de sua própria identidade. E o Brasil parece estar cada vez mais distante.

(…) parece tolo discutir a orientação sexual de personagens levados a contragosto à prática prostituta. Grosso modo, porém, fica claro que a violência a que foi submetido desmente instintos ou vocação latente. (…) A contingência, o tráfico, o obrigou a uma prática involuntária e explorada por outros (Meihy, 2015: 151).

Depois de Miro, surge a história de Margarida. De família de classe média, suburbana, não teve uma infância menos conturbada. Juntamente com sua mãe e irmãs, depois da morte do pai, foi morar na casa de um tio, no Rio de Janeiro. E foi esse tio que começou a assediá-la quando estava prestes a completar 8 anos e do qual ela não conseguiu se safar.

Para virar o jogo, já mocinha, ela decidiu que iria tirar partido do tio. E também decidiu por retomar a propriedade de seu corpo. Nesse entremeio, apaixonou-se por um homem casado, que vivia um drama pessoal, e a prostituição surgiu como oportunidade de ajudá-lo financeiramente. Engravidou dele e depois de dar à luz a criança decidiu por uma nova oportunidade de recomeço em Portugal. Um «fator preponderante nessa história de vida é a decisão de se aceitar como prostituta, deixando claro que há uma perfeita divisão entre uma atividade profissional, de sobrevivência, e a vida pessoal sofrida» (Meihy, 2015: 178).

O último relato do livro é o de Cristovão Jorge. Uma tragédia pessoal marca sua história quando o amante (figura respeitada no meio jurídico carioca, casado) se mata, após sucessivas ameaças de Cristovão que lhe exigia mais dinheiro para não contar à sua esposa e à imprensa o que se passava. Mas a narrativa é, também, uma tentativa de mostrar a outra versão, a do rapaz cuja mãe corria sério risco de vida e que precisava de dinheiro para garantir seus cuidados.

Após a morte da mãe, Cristovão tomou a decisão de sair do Brasil. E embarcou para os Estados Unidos, onde começou a agenciar travestis brasileiras para trabalhar em boates.

São estes os personagens apresentados no decorrer da obra de José Meihy. Ao final da leitura de cada uma das narrativas, fica a sensação de proximidade daquela pessoa, de ter por ela empatia, de desejar saber se sua vida «deu certo». Mas, afinal, o que significa isso? O que é capaz de medir a realização pessoal? Dadas as condições críticas, por vezes dramáticas, de suas histórias, quais são as expectativas possíveis?

Se existe uma possibilidade apontada pelo livro é o fato de que os relatos trazidos se tornam capazes de fazer entender o que é «ser vulnerável». Nessa obra, o vulnerável tem o poder da fala. E o que ele fala é forte o suficiente para nos fazer repensar o olhar dirigido aos que se prostituem.

 

Referências

Doezema, Jo (2004)¡A crecer! La infantilización de las mujeres en los debates sobre tráfico de mujeres», in Raquel Osborne (ed.), Trabajador@s del sexo – Derechos, migraciones y tráfico en el siglo XXI,Barcelona, Bellaterra, 151-163.         [ Links ]

Mayorga, Claudia (2011), Cruzando fronteiras. Prostituição e imigração, Cadernos Pagu 37, 323-355.         [ Links ]

Spivak, Gayatri (2010), Pode o subalterno falar?, Belo Horizonte, Ed. UFMG.         [ Links ]

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