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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.32 Lisboa dez. 2015

 

RECENSÕES

Ferreira, Virgínia; Monteiro, Rosa (2013), Trabalho, igualdade e diálogo social: Estratégias e desafios de um percurso, Lisboa, Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego, 224 pp.

Hermes Augusto Costa1

 

1Professor Auxiliar, Sociologia, Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra

 

Se uma das mais nobres missões de um livro é dar visibilidade a pessoas, práticas ou instituições, então a obra Trabalho, igualdade e diálogo social: Estratégias e desafios de um percurso, da autoria de Virgínia Ferreira e Rosa Monteiro, cumpre integralmente esse propósito. Designadamente, ao «dar vida» a uma instituição – a Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) –, no sentido de, «para além dos indicadores estatísticos», a «caracterizar e compreender» e, consequentemente, avaliar os impactos da sua ação na «evolução da situação de mulheres e homens no mercado de trabalho» (p. 14).

Aliás, uma das razões invocadas para o estudo da CITE residiu precisamente na escassez de informação sobre este mecanismo oficial para a igualdade. Mesmo sabendo que desde a década de 2000 se realizaram ações de divulgação junto de novos públicos, se diversificaram as tipologias de publicações da CITE (pareceres jurídicos, estudos em livros, manuais de formação, desdobráveis, etc.), se pôs em marcha uma Linha Verde de atendimento ao público, um website e se promoveram boas práticas (através da instituição do prémio «Igualdade é Qualidade»), etc. (pp. 124 e ss.), a CITE tem-se confrontado historicamente com défices de reconhecimento institucional e académico, designadamente enquanto instituição protagonista do diálogo social e da concertação social (pp. 155-156), pelo que constitui ainda «um não-lugar na investigação dos estudos sobre as mulheres/ /feministas/de género» (p. 15). Daí que o acesso a livros de atas e dossiês de processos, a análise de pareceres da CITE, a realização de 51 entrevistas a pessoas com conhecimento e experiência de colaboração com a CITE, etc., tenha permitido a captação de posicionamentos de parceiros sociais «raramente tornados públicos» (p. 15).

Também no início da obra é possível situar um posicionamento crítico das autoras face às políticas públicas de combate às desigualdades. Este posicionamento – que no fundo subjaz à linha argumentativa das autoras – vai no sentido de sustentar que o caráter neoliberal das políticas de austeridade torna inviável a operacionalização de uma «estratégia de mainstreaming de promoção de igualdade» (p. 15). Na verdade, quer teórica, quer politicamente, e enquanto mecanismo de reformismo estatal que requer mudanças a vários níveis – de gestão de recursos humanos, ações de formação, revisão de procedimentos institucionais, elaboração de manuais de boas prática, etc. (p. 51), – o mainstreaming da «igualdade de género» carece de transformação profunda (p. 16).

Do ponto de vista formal, o livro está dividido em seis capítulos. Poderá dizer-se que os três primeiros capítulos são de enquadramento. O capítulo 1, porque trata analiticamente os contextos dos mecanismos oficiais para a igualdade, não deixando de reportar os seus âmbitos de ação. O capítulo 2, porque situa o leitor no quadro da definição de políticas de emprego e igualdade em Portugal, alertando para os processos de feminização do mercado de trabalho, sistemas de bem-estar social, políticas públicas de «igualdade de género», entre outros pontos. E o capítulo 3 (por sinal o único que não é escrito pelas autoras, mas sim por Jorge Leite e Milena da Silva Rouxinol), porque situa no plano jurídico o triplo papel da CITE e identifica as suas competências no âmbito do diálogo social. Por sua vez, os seguintes capítulos dão a conhecer a diversidade de contributos e ações da CITE, em nome de um mainstreaming para a igualdade de género (capítulo 4), situam a problemática da igualdade de género no quadro do diálogo social tripartido (capítulo 5) e assinalam desafios e obstáculos condicionantes da efetividade da CITE (capítulo 6).

Neste elenco de capítulos, escritos numa linguagem acessível, informativa e formativa, é percetível a convocação de várias dimensões de análise. Desde logo, uma dimensão sociológica (fazendo jus à formação académica das autoras), que preenche uma parte considerável dos capítulos da obra e a partir da qual é possível constatar um registo discursivo não meramente descritivo mas também crítico. Além disso, a obra apresenta uma dimensão jurídico-institucional sobre as competências e papel da CITE. E ainda uma dimensão histórica sobre o papel da CITE (que, note-se, não se confunde com uma mera exposição sequencial de momentos ou eventos) que, de resto, se encontra presente em vários momentos do livro tanto mais que é sobre «estratégias e desafios de um percurso» (situado entre 1979 e 2012) que as autoras se detêm.

Seria injusto não reconhecer que esta obra vale pelo seu todo. No entanto, diria que os capítulos 4 e 5 são os que mais fazem mais jus à triologia «trabalho-igualdade-diálogo social» que funciona como uma espécie de guião do livro. Na «viagem ao interior» da CITE a que ocapítulo 4 nos conduz, cumpre destacar os seguintes aspetos. Por um lado, o conhecimento sobre a origem da emissão dos pareceres da CITE (analisados em profundidade pelas autoras), sendo estes provenientes de queixas apresentadas por pessoas que se consideram vítimas de situações de discriminação (sobretudo mulheres, em 94,5% dos casos, p. 110), da existência de anúncios de emprego discriminatórios ou das respostas a pedidos de parecer que as entidades empregadoras devem solicitar à CITE em caso de despedimento de grávidas, puérperas ou lactantes, trabalhadores em gozo de licença parental, etc. Por outro lado, pela abordagem (que porventura até podia ter sido mais demorada) que se faz do principal instrumento de mainstreaming de igualdade de género elaborado em Portugal: os «Planos para a Igualdade». E, por outro lado, porque se tipificam as atividades associadas à participação e procura de influência política da CITE – contactos com a tutela e o IEFP, contributos para a (re)definição do seu âmbito, missão e regulamentação, resposta a pedidos de parecer emanados da tutela a respeito de projetos ou propostas de lei, resposta a processos de aplicação de convenções da OIT ou ainda análise legislativa, de políticas ou problemas da sociedade portuguesa (pp. 135-136) – e se destacam os contributos individuais de ex-presidentes da CITE.

Por sua vez, a relevância do capítulo 5 reside, a meu ver, em três aspetos. Por um lado, na referência aos princípios-chave do tripartismo na base dos quais a CITE foi pioneira em Portugal (pois o Conselho Permanente de Concertação Social só surgiria em 1984) – igualdade, autonomia, independência e reciprocidade –, assim como aos seus componentes essenciais – «reciprocidade negocial entre interesses específicos e necessidades coletivas» –, traduzidos no combate à discriminação no trabalho e no emprego (p. 143). Por outro lado, no facto de se localizar a CITE no quadro de um sistema de relações laborais centralizado e politizado, que descentraliza a contratação coletiva para o nível das empresas, privilegia a intervenção legislativa em detrimento da via da negociação coletiva, favorece a redução do número de trabalhadores cobertos por acordos coletivos (tendência reforçada em época de crise) ou tolera a existência de cláusulas discriminatórias nos instrumentos de regulamentação coletiva. E, talvez por isso, se perceba também que estamos diante de um sistema de relações laborais onde Estado, capital e trabalho não estão propriamente numa posição de igualdade (como, de resto, parecia já reconhecer-se no capítulo 3, p. 61). Em terceiro lugar, e em parte como consequência do ponto anterior, no facto de se captar a sensibilidade dos parceiros sociais e se constatar que, ao longo de mais de três décadas de existência da CITE, o seu posicionamento foi de geometria variável. E aqui o envolvimento sindical, apesar de frágil (sobretudo fruto da falta de autonomia ou capacidade de decisão dos departamentos internos de mulheres no interior da CGTP e da UGT, ou mesmo, como se afirma já no derradeiro capítulo do livro, de grande alheamento e distanciamento da problemática da igualdade, p. 193), ou até mesmo contraditório (como uma «ironia da história», p. 148, que foi a CGTP não ter assinado o acordo de concertação estratégico 1996-1999, que responsabilizava as instituições públicas pela promoção da igualdade de género e os parceiros sociais pelo assumir de compromissos em matéria de divisão sexual do trabalho, igualdade salarial ou proteção na maternidade e paternidade), foi sempre mais empenhado e convicto do que o envolvimento patronal. O quadro comparativo do número de ausências sindicais e patronais nas reuniões da CITE(p. 159) é um bom testemunho disso (com destaque para a «faltosa» Confederação do Comércio e Serviços de Portugal).

Dois assuntos mencionados no livro mereceriam porventura um tratamento mais demorado. O primeiro prende-se com a relação da CITE com os ciclos políticos e, quiçá, justificaria mesmo a redação de um capítulo autónomo. Embora o propósito das autoras não fosse o de fazer uma sociologia política das implicações decorrentes das mudanças de ciclos políticos em contexto de austeridade (por sinal o contexto em que a também a própria CITE foi criada, em 1979) – ainda que ao longo do percurso da CITE se retratem inevitavelmente os contributos legislativos de diferentes governos –, parece reclamar-se uma «outra política» para a igualdade de género. Assim sendo, sabendo-se que a CITE é uma entidade pública que faz parte da administração estadual indireta (p. 66), qual seria o grau de correspondência/divergência da sua atuação face à evolução dos ciclos políticos? Para responder a esta questão, talvez fosse interessante recuperar a questão da magistratura de influência ditada por protagonistas individuais na produção de políticas, tanto mais que (como é referido, p. 139), momentos houve em que a própria presidência da CITE encontrou ambientes favoráveis junto de coligações governamentais que supostamente seriam, em teoria, menos sensíveis às questões da igualdade de género. E, aliás, esse mesmo argumento é recuperado no capítulo 6 quando se sustenta que o percurso da CITE não confirma «a regra de que os mecanismos oficiais de igualdade tendem a sair reforçados em mandatos governamentais sob a liderança de partidos de esquerda» (p. 183). Ou ainda, no mesmo capítulo, quando se afirma que na governação de José Sócrates «a CITE viveu um dos períodos mais negros da sua história». Significaria isto que, em resultado de uma eventual vitória eleitoral dopartido socialista em Portugal, no outono de 2015, se adensaria o pessimismo associado à efetividade da CITE?

O outro assunto tratado na obra e que beneficiaria em ser aprofundado prende-se com um exercício avaliativo sobre a «política de resultados» de organizações congéneres da CITE noutros países europeus, designadamente do Sul da Europa. É certo que, no capítulo 1, é fornecido um enquadramento teórico e institucional de âmbito transnacional dos mecanismos oficiais para a igualdade no quadro da ONU, da OIT, da OCDE e em redor do conceito de «feminismo de Estado». Tratava-se, pois, de indagar se o pessimismo realista que as autoras associam ao trajeto de obstáculos com que a CITE se foi confrontando (e que têm o capítulo 6 uma exposição bastante circunstanciada) se verificou noutros contextos com uma situação análoga à situação portuguesa. E, por outro lado, tratar-se-ia também de questionar se, tal como sucedeu com os impactos desestruturantes da lei 23/2012 em Portugal (que reforçou as assimetrias no sistema de relações laborais), houve alguma influência mais marcante de outros ordenamentos jurídicos e ou mesmo do direito comunitário que potencialmente pudesse ter sido gerador de interferências perversas sobre a igualdade de género e, consequentemente, sobre a atuação da CITE. Seguramente, nada que as autoras não tenham pensado ou que não decorra da lista de perplexidade por elas avançada no início da obra (p. 16).

Em resumo, são várias e muito relevantes as ilações que podem retirar-se da leitura desta obra. Destaco apenas três. Primeira: não obstante as resistências (sobretudo das associações patronais mas igualmente dos tribunais), a CITE é a entidade que mais contribuiu em Portugal para a disseminação de conhecimento sobre a igualdade e não-discriminação no trabalho e para a divulgação de direitos a esse nível, numa lógica de transversalidade (pp. 141; 158-160; 195). Segunda: são enormes os obstáculos à efetividade da CITE: deficiente enquadramento jurídico-institucional, inadequação de recursos, dependência financeira e de recursos

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