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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.29 Vila Franca de Xira  2014

 

Marques, António Manuel (2011), Masculinidade e Profissões: Discursos e Resistências, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia, 519 páginas.

 

Nuno Santos Carneiro

Centro de Psicologia da Universidade do Porto

Department of Psychology – Manchester Metropolitan University

 

Resultado da tese de doutoramento de António Manuel Marques em psicologia social e organizacional pelo ISCTE-IUL, este livro de invulgar qualidade confere centralidade à psicologia social do género, analisando as dinâmicas processuais de edificação sociocultural, ideológica, relacional e subjetiva da masculinidade, comparando quatro profissões – a cirurgia geral, a magistratura judicial, a montagem de offset e a condução de táxis – onde tais dinâmicas encontram palco discursivo e se intersetam com a cultura organizacional própria de cada um destes lugares ocupacionais. Como diz o autor, o «contributo [destas profissões] para a posição social dos que se dedicam a elas, a natureza do trabalho executado e a dinâmica de admissão de mulheres no seu interior fazem de cada profissão [numérica, simbólica e tradicionalmente dominada por homens] um contexto original, aumentando as hipóteses de as comparar entre si» (p. 453).

Trata-se de um trabalho de investigação que reflete percursos – assim lhes chama o autor com acutilância semântica transversal ao trabalho e ancorante da estruturação do mesmo – através dos quais só não se enriquece quem não fizer do livro leitura tão cuidada quanto este merece. São percursos epistémicos, heurísticos, conceptuais, metodológicos, (meta-) analíticos e reflexivos capazes de suscitarem indagações e propostas interpretativas (sabiamente nunca encerradas) sobre os objetos de estudo. O que, desde logo, nestas indagações encontro de preciosa contribuição é uma inquietação (des)construtiva e crítica a respeito do que chamaria de espaços intersticiais múltiplos – esses hiatos, essas fendas, esses vazios sempre existentes entre conceitos, metodologias, quadros epistémicos, posições autorreflexivas, falas e silêncios de protagonistas de uma investigação – que António Manuel Marques se dedica a explorar com um fôlego e com uma dedicação ímpares. Assim acontece, a título de exemplos, quando procede a uma sistematização tão complexa quanto atualizada dos debates epistemológicos sobre os estatutos da «ciência» e das «comunidades científicas» (com trasladação destes debates para o campo da psicologia social), quando se debruça sobre o que pode ser atualmente o recurso à Teoria das Representações Sociais, sem facilitismos a respeito das críticas que a esta Teoria se levantam e com o muito trabalhado esforço de contextualização deste quadro meta-conceptual, bem como quando muito originalmente elenca as origens, a originalidade, a diversidade e a importância de inscrição heurística e académica das perspetivas discursivas na psicologia (social).

Mais não houvesse, seria já isto bastante para se defender com total legitimidade que este livro é fundamental quer para quem se inicia na investigação social e humana, quer para quem nestes quadrantes da investigação continua a desejar leituras amplas e pertinentes. Num tempo em que a reofensiva empiri(ci)sta não cessa de tentar esmagar outras modalidades de pensamento e de análise sobre as relações sociais e as posições de sujeito, num tempo em que a inscrição hermenêutica, académica e editorial dos paradigmas discursivos se vê profundamente ameaçada pela (re-)inflamação dos egos positivistas e das comunidades científicas estreitamente arreigadas à evidência do que não é (ou nem sempre tem que ser) evidente, não há como não honrar um trabalho como este, com que António Manuel Marques verdadeiramente nos presenteia. E que nos presenteia como prova de coragem contagiante para continuarmos convictamente e de pés bem assentes a afirmar as perspetivas discursivas e críticas em contracorrente às vagas da desvalorização menorizante, porque ignorante, destas perspetivas.

De interesse particularmente saliente para a reflexão sobre o género é o capítulo dedicado à pesquisa sobre os homens e a masculinidade. Em primeira instância, porque o autor consegue contrariar a nefasta e persistente tendência – e para ele uma inquietação pessoal, como nos diz logo na Introdução – de se considerar a construção social da masculinidade um não-objeto, inclusive entre setores representativos das teorias feministas. Perguntando(-se) se «o «problema» está na relação entre homens e mulheres, entre alguns homens, ou entre masculinidades e várias masculinidades, ou entre a masculinidade e a feminilidade» (p.179), o que consegue ir tecendo no desenvolvimento da pesquisa apresentada é a denúncia da teimosia de se considerar que o mundo se esgota nas relações entre homens que dominam e mulheres que são dominadas. Quando interroga as relações entre a teoria feminista e os estudos sobre os homens e a masculinidade, expondo admiravelmente os consensos e os antagonismos que esta relação suscita, António Manuel Marques deixa bem claro (1) que a focalização na relação desequilibrada entre os sexos não deixa de pressupor uma «homogeneidade dos grupos ou categorias sexuais e, logo, o primado do fundamento biológico das diferenças» (p. 219), (2) que o pensamento binário (homens versus mulheres) «dificulta e questiona, em parte, a mobilização teórica e política em torno do género» (p. 224) e (3) que «as teorias feministas e a sua consideração prática tiveram (e continuam a ter) um efetivo efeito nas formas de pensar e organizar a vida e as instituições, afetando diretamente as mulheres e os homens [itálico meu]» (p. 226).

A consistência destas proposições heurísticas e pessoais é de tal modo bem assumida e trabalhada neste livro, que em nenhum momento o autor (se) trai (n)a condução das mesmas. Porque não há palavra, frase, sintaxe ou semântica que não sintamos ser por ele escolhida na muito cuidada fidelidade à importância do discurso. Também nisso este trabalho é um riquíssimo ensinamento: sobre a importância da escrita e dos argumentos usados para o que é dito, sobre a força da linguagem, feita de palavras e de silêncios que dão ao livro uma textura e uma compreensão profundas dos percursos realizados e exemplarmente esclarecedores do que é fazer-se investigação qualitativa com a inabalável robustez que esta pode e deve ter.

Mais ainda, discute os resultados da sua investigação, numa relação dialogante muito estreita e coerente que sabe manter com as escolhas teórico-conceptuais e metodológicas que nunca perde de vista, através de um entendimento amplo de como cada uma das profissões e culturas organizacionais tem «cenários e formas de, continuamente, confirmar, exibir e sustentar a masculinidade intrincada na identidade da profissão, uma vez que esta não é garantida, pois, em geral, é precária e instrumental e, como tal, necessita de permanente reforço» (p. 390). Mas não nos equivoquemos e não negligenciemos o que é sistemático cuidado do autor ao refletir sobre as implicações destas vigilâncias identitárias: o de lembrar que os violentíssimos «jogos de masculinidade» detêm poder impositivo e regulador de inclusões e de exclusões, «sobre as masculinidades não autorizadas e sobre as feminilidades» (p. 455). Com isto, a já referenciada oposição a leituras limitadas ao binarismo de género e não contemplativas de diferenças intracategoriais capazes de revelarem o peso destas adversidades tanto para as mulheres quanto para os homens mais pertinente te torna e sustenta-se pelos dados empíricos que António Manuel Marques tão elaborada e reflectidamente sistematiza neste livro. Afinal, e nas suas palavras, «para entender os contextos profissionais como os envolvidos nesta investigação será necessário considerar a existência de múltiplas masculinidades [não obrigatoriamente indexadas ao sexo masculino, permito-me acrescentar] e dar especial atenção à relação que estas estabelecem entre si» (p. 457).

Interesse complementar que encontrei no trabalho em análise foi o de com este se abrirem reflexões de imensa importância para aprofundar o conhecimento de modos de opressão e de exclusão que não necessária e/ou exclusivamente motivados pelos marcadores e pelos regimes sociais de género e que não necessária e/ou exclusivamente adstritos às vivências profissionais. Porque, como fica claro nesta obra, os sinais de identidade ameaçada e o recurso a estratégias de resistência a mudanças (profissionais e/ou outras) são «típicos das relações entre grupos maioritários e minoritários» (p. 450) e suscitam, direta ou indiretamente, um «leque de táticas de sobrevivência» (p. 458) por parte de sujeitos oprimidos, táticas essas que através deste trabalho percebemos estarem inscritas bem para além das culturas organizacionais e dos lugares profissionais.

Gostaria de deixar aqui uma última observação que se prende com o sentimento mais intenso e continuado que o livro me deixa: o de estarmos perante um trabalho de resistência a resistências. O que mais fortemente absorvi e comigo guardo é a ímpar capacidade do autor para contrariar menosprezos infundados e gratuitos face aos paradigmas e às modalidades de investigação em que aposta, de se impor contra hegemonias discursivas e retóricas que ofuscam a riqueza e a importância dos discursos que nos rodeiam sem, no entanto o conseguirem (como tão bem prova um livro assim), de acompanhar com resistente convicção as resistências humanas que os discursos das pessoas ouvidas na sua investigação e os silêncios das mesmas (con)têm. Assim, pois, dar ao livro o subtítulo de «discursos e resistências» é, estou certo, não somente um boa forma de condensar o que nele mais imediatamente encontramos mas também, numa leitura mais acurada, um modo de nomear o (auto-)retrato que António Manuel Marques pode fazer da sua trajetória de investigação.

Por tudo o que ensaiei neste esforço de recensão, não há como não me ter resultado ingrato (ainda que profundamente estimulante) tal esforço. Pelo muito mais que é merecido dizer-se sobre Masculinidade e Profissões…, pelo quanto neste trabalho senti ser evocado e invocado, pela entusiástica tentação de não me ficar pelo que disse. Não vislumbro forma mais justa de retribuir o contributo de António Manuel Marques senão pela vontade de voltar a lê-lo, de o ler mais e de com ele continuar a descobrir.

Talvez reste ainda, nesta retribuição, sublinhar a obrigação que me parece assistir a quem quer que o leia de se pensar nos géneros e nos regimes ideológico- discursivos de que as nossas vidas estão imbuídas. De (se) pensar com a mesma coragem de (auto-reflexividade, de (des)construção localizada e de abertura à interrogação que ele nos transmite. De com ele, enfim, caminharmos tendo em mente o que (apenas fingidamente) conclui ao dizer-nos que «identificar os elementos que vão apoiando as práticas geradoras de desigualdade é, certamente, uma forma de contribuir para a mudança» (p. 465).

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