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Ex aequo

versión impresa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.29 Vila Franca de Xira  2014

 

Monteiro, Natividade (2012), Maria Veleda (1871-1955) – Uma professora feminista, republicana e livre-pensadora. Caminhos Trilhados pelo Direito de Cidadania, Olhão, Gente Singular Editora, 475 páginas.

 

João Esteves

 

Nesta obra de cariz biográfica, que corresponde à dissertação de Mestrado em Estudos sobre as Mulheres da Universidade Aberta, sob orientação de Anne Cova, a professora, investigadora e historiadora Natividade Monteiro desvenda-nos uma mulher simples, comum e, simultaneamente, extraordinária que viveu e sofreu, intensa e freneticamente, a família, a profissão, a fraternidade pelos desprotegidos, o combate à Monarquia e o triunfo, consolidação e desagregação da República. De seu nome Maria Carolina Frederico Crispin, ficou, familiar e publicamente, somente conhecida por Maria Veleda, reportando-se, provavelmente, o pseudónimo Veleda à sacerdotisa «insubmissa ao Império Romano e defensora das leis gaulesas que atribuíam poderes civis e políticos às mulheres» (p. 56).

Simples, porque a longa existência foi pautada por idêntico estilo de vida, sem luxos, grandezas, privilégios – não era, nem nunca foi uma privilegiada –, benefícios ou proteções. Comum, porque as vivências de meninice e os sonhos condiziam com os das outras raparigas até que os percalços familiares a levaram a trabalhar para não sobrecarregar os seus, fez-se «professora por necessidade e por vocação» (p. 429), defrontou-se com contratempos profissionais e financeiros, viveu em condições modestas, quando não resvés com a miséria, e mereceu a solidariedade de amigas e correligionárias. «Extraordinária», como a caraterizou Teresa Piçarra Beleza no Prefácio (pp. 15-17), «apenas» porque soube traçar o próprio percurso, viver coerentemente as suas opções – pessoais e políticas – e assumir as consequências, num tempo em que poucas mulheres evidenciavam determinação e coragem de o fazer, ainda menos numa sociedade em que lhes era estranho o espaço público ou a ousadia de romper com a domesticidade e a religiosidade. Extraordinária, porque soube fazer ouvir a sua voz e tomar partido pelos mais desfavorecidos, pelas mulheres, pelas crianças, pela República, incorporando no ideal republicano os valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade da Revolução Francesa, e assumiu-se como feminista e cidadã quando tal parecia uma utopia nos já longínquos anos da viragem do século XIX para o XX.

Não se está perante um exagero, visão anacrónica ou mitificação de um nome, embora haja «empatia intelectual» e identificação entre biografada e biógrafa, devidamente acauteladas na «Metodologia da investigação» (pp. 35-42). Remontando às origens, em Faro, onde nasceu em 1871, e até 1955, quando faleceu, em Lisboa, com 84 anos de idade, Natividade Monteiro reconstrói com novos dados e reinterpretações, mediante recurso a um leque diversificado de fontes, algumas inéditas por integrarem o espólio familiar, o percurso afetivo, familiar, literário, jornalístico, profissional, associativo e político de uma professora que aspirava a ser escritora e, apesar da sua educação «convencionalmente religiosa», se tornou feminista, livre-pensadora, maçon e republicana, sendo que «a construção de uma identidade tão rica e complexa não esteve isenta de sofrimento interior» (p. 439), nem de ruturas.

Está-se perante um trabalho árduo e rigoroso que procurou reconstruir uma vida intensamente vivida e plenamente dedicada aos outros, repartida entre o privado e o público, entrelaçados na construção de uma cidadania que abarcasse raparigas e rapazes, mulheres e homens. E esta opção revelou-se acertada, com ganhos para o leitor e investigador, já que Maria Veleda não é passível de ser fragmentada, reencontrando-se sempre a mesma identidade em cada uma das suas facetas. Tal como evidencia Natividade Monteiro nas quase 500 páginas, a trajetória – da província à capital, de professora a educadora, de escritora a jornalista, de mulher a feminista, de feminista a republicana, de espetadora a oradora, de militante a líder, de crente a livre-pensadora, de filha a mãe e avó – não foi fácil, nem linear, passando por sobressaltos pessoais, familiares, profissionais, económicos e políticos, sobressaindo uma pessoa humilde, batalhadora, convicta e coerente, extraordinariamente coerente, em que vida particular e pública, discursos e práticas, se conjugam e harmonizam como indissociáveis.

Nesta obra, estruturada em quatro capítulos – A paixão da escrita e a dedicação ao ensino (pp. 53-95), O combate à Monarquia através da propaganda republicana e feminista (pp. 96-204), Sob a égide da República (pp. 205-363), No labirinto esotérico, espiritualista e místico (pp. 364-427) –, rematados por uma Conclusão (pp. 429-459) que revisita o essencial de Maria Veleda, a autora percorre os Caminhos trilhados pelo Direito de Cidadania e faz sobressair, a par da sua natureza intrinsecamente feminista, a atenção que constantemente lhe mereceram as crianças, só possível de compreender pelo amor que nutria por elas enquanto seres desprotegidos e merecedores de outra educação que ela se empenhava por lhes dar enquanto docente, segundo o preceito de «conhecer bem a criança para a poder educar em conformidade» (p. 430). Este entendimento fraterno com as crianças, com todas elas, é patente na adoção de uma, a quem tratou como filho (Luís), na criação de outros enquanto mãe solteira (Cândido) e avó, na denúncia do submundo dos pequenos lisboetas abandonados à sorte e infortúnio, na fundação da Obra Maternal, em 1909, no trabalho desenvolvido no âmbito da Tutoria Central de Infância e na preocupação em transportar os seus ideais educativos para dentro das aulas que lecionava ou das organizações em que militou ou liderou, nomeadamente a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. O mesmo olhar fraterno era estendido às mulheres desfavorecidas, expressa na tocante definição que, em 1909, faz do feminismo: «Ser feminista é ser, principalmente, protetora da mulher: – da mulher que sofre, da operária, da desonrada, da mendiga… É esquecer-se de si própria, numa abnegação de apóstolo, e levar a luz aos antros das trevas, levar a instrução às oficinas, levar palavras de amor e de conforto às vítimas da sedução, levar conselhos e perdão às cadeias, levar clarões de piedade aos albergues e aos hospitais! Desejamos que ela aprenda? Queremos o seu resgate? Pois bem: fraternizemos com ela!» (p. 15). Maria Veleda não foi, como Natividade Monteiro demonstra, uma mulher igual às contemporâneas que militaram no associativismo feminista, republicano e maçónico.

Na exaustiva pesquisa, a autora aclara o abandono de algumas das crenças provenientes da formação religiosa e como se tornou, primeiro, anticlerical e, ulteriormente, ao retornar à fé, espírita e mística. É que ela não nasceu anticlerical, tornou-se, disso dando testemunho através de vários escritos na imprensa agora repescados e explorados por Natividade Monteiro. Assim como não nasceu feminista, tornou-se, sendo as condições de desigualdade e maus-tratos em que as mulheres viviam que a levaram a abraçar o feminismo. E também não germinou republicana, tornou-se pelo que já sofrera e com a progressiva consciencialização política proporcionada pela deslocação para a capital, poucos anos antes de eclodir a revolução de 5 de outubro. Através de Maria Veleda, Natividade Monteiro exemplifica como uma revolução pôde ser, simultaneamente, uma aspiração tornada realidade e, ao não satisfazer as promessas, resvalar para o desencanto, ocupando a desilusão e a descrença o lugar do sonho.

Mediante esta biografia apaixonada sobre uma figura apaixonante, cujos pressupostos e opções são explicitados na Introdução (pp. 19-52), o leitor consegue recuperar o convívio com Maria Veleda, não raras vezes através de palavras e pensamentos preservados nos textos da imprensa e Memórias, e reconstruir as redes de sociabilidade, podendo – e devendo – esta obra funcionar, também, como espelho de muitas outras contemporâneas que abraçaram os mesmos ideais e que não tiveram o ensejo de verem reconhecidos e preservados os respetivos legados.

Natividade Monteiro partilha, assim, com o leitor, uma vida de cidadania plena de afetos, de humanismo e de ideais à procura da felicidade pessoal e, simultaneamente, coletiva, sendo que, nas palavras de Anne Cova, autora da Apresentação (pp. 11-14) da obra, «esta excelente biografia de Maria Veleda vem preencher uma lacuna na historiografia e reveste-se de grande atualidade». Que se leia e releia, pois, Maria Veleda (1871-1955) – Uma professora feminista, republicana e livre-pensadora. Caminhos trilhados pelo direito de cidadania.

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