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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.27 Vila Franca de Xira  2013

 

Pintasilgo, Maria de Lourdes (2012), Para um novo paradigma: um mundo assente no cuidado. Antologia de textos de Maria de Lourdes Pintasilgo (organização de Antónia Coutinho, Fátima Grácio, Noémia de Oliveira Jorge, Paula Borges Santos e Regina Tavares da Silva), Porto, Edições Afrontamento, 446 páginas.

 

Maria Isabel de Sousa Ramos

Mestre em Educação e Formação de Adultos e Intervenção Comunitária, pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra

 

A presente publicação surge como concretização, por um lado, da vontade da Fundação Cuidar O Futuro, que tem à sua guarda o arquivo pessoal de Maria de Lourdes Pintasilgo, de partilhar com o público em geral documentos vários (comunicações, discursos e artigos apresentados ou publicados no nosso país e um pouco por todo o mundo, sobre variadíssimas temáticas). Estes ilustram o percurso de vida da sua fundadora, uma mulher brilhante, dotada de um pensamento pioneiro, ousado e original para o seu tempo, o qual parece ter sido escrito hoje, de tão atual que é. Por outro lado, trata-se da materialização de um desejo manifestado, ainda em vida, pela própria, uma mulher de causas, que apresentava o «cuidado» como o núcleo duro pelo qual a atitude política se deveria pautar, desejo que em boa hora se vê concretizado.

Com prefácio de Marcelo Rebelo de Sousa e posfácio de Maria João Seixas, encontramos nesta publicação, dada a inegável multiplicidade de textos produzidos e temas abordados por Maria de Lourdes Pintasilgo, alguns remontando já à década de 1950, um limite temporal – a década de 1990. Apresentam-se textos em várias línguas (português, francês e inglês), tendo em conta as várias versões da autora, onde se salienta a sua diversidade linguística, bem como o alcance internacional do seu pensamento. Quanto aos temas, embora uns se reencontrem nos outros: Mulheres, Igualdade, Democracia Paritária; Democracia, Cidadania, Direitos Humanos; Desenvolvimento, População e Qualidade de Vida; Educação e Cultura, Valores, Religião, Ética – quatro das «incontáveis batalhas de Maria de Lourdes Pintasilgo [estão] presentes nesta obra (p. 19).» Sendo através da reflexão sobre estes temas que, para a autora, se poderia operar uma mudança de paradigma, conduzindo a Um mundo assente no cuidado, talvez (re)inventando-se a democracia.

No primeiro tema, Mulheres, Igualdade, Democracia Paritária, a única, até hoje, Primeira-ministra do nosso país colocava em evidência a mais-valia da partilha com as mulheres do poder e da tomada de decisão política. A autora encarava como fundamental o envolvimento das mulheres na política de forma a mudá-la, para que esta estivesse mais próxima dos reais problemas dos povos e das pessoas, considerando a necessidade de uma nova cultura política, uma democracia paritária. Aquele seria o momento, não só pela crise e descrédito que a política atravessava, mas também pela urgência do acesso à igualdade entre homens e mulheres. Aprofundando as mudanças em curso na perspetiva de uma crescente interdependência em termos económicos e políticos, onde o meio-ambiente surgia como um novo ator social a não menosprezar, alertando para o fosso que economia de mercado alargaria, conduzindo a mais desigualdades, Maria de Lourdes não deixaria de apelar à valorização da «cultura das mulheres». Esta seria um contributo fundamental para a reorganização dos laços sociais e de novos modos de gestão da vida na sociedade. No entanto, não perderia também a oportunidade de chamar a atenção para algumas armadilhas a que o acesso à igualdade, para as mulheres, poderia estar sujeito: «ce qu’il faut éviter c’est que l’accès à l’égalité entre hommes et femmes crée une harmonisation nivellatrice, uniformisante et réductrice» (p. 74). Insistiria na necessidade de uma aprendizagem do acesso, bem como no facto de que a participação das mulheres na tomada de decisão não se deveria limitar a seguir modelos dominantes (masculinos). Ainda nesta primeira parte encontramos a noção da autora de «cuidado» (influenciada pela leitura que fez do filósofo Heidegger) e a forma como a trazia para a política. Também uma reflexão sobre a liderança feminina tem aqui lugar, liderança que poderia contribuir para uma outra forma de olhar a governabilidade e forjar uma nova política.

O segundo tema, Democracia, Cidadania, Direitos Humanos, começa pela reflexão sobre novos direitos e a emergência da identidade, tema considerado por Maria de Lourdes ambíguo. Para a autora, o que alguns especialistas consideravam de novos direitos (tanto aqueles que ainda se estavam a fazer o seu caminho, como o direito à saúde, à educação ou mesmo ao trabalho), não o seriam propriamente, pois esses já se encontrariam consagrados na lei. Importaria era refletir sobre a identidade, nomeadamente questionando se a identidade pela nascença seria realmente pertença do passado na prática (nasceríamos de facto iguais?), refletir sobre a identidade tutelada pela profissão devido à industrialização, sobre os obstáculos que os direitos encontravam (p.e. a sua não-universalidade de facto, o fosso entre a as leis e a prática). Os novos direitos, segundo a autora, nasceriam da evolução da ciência e da tecnologia: o direito a um meio- -ambiente são e equilibrado, a um ambiente social digno, a um verdadeiro ambiente cultural. Mas não esqueceria que também necessitavam de reconhecimento os direitos dos grupos: crianças, idosos e mulheres. Abordava ainda os contornos dos poderes: o poder em relação às coisas e à natureza; nas relações entre as estruturas sociais e políticas; nas dimensões culturais e religiosas. A sua perspetiva sobre como a ética, cidadania e política deveriam interagir também nos é apresentada. Para a autora a cidadania não se esgotava no exercício de voto e a política era de todos e todos os dias, não se esquecendo dos princípios éticos necessários para tal, uma ética que se queria global.

Nos dois últimos temas (Desenvolvimento, População e Qualidade de Vida; Educação e Cultura, Valores, Religião, Ética) encontramos um discurso proferido no ato de aceitação do Doutoramento Honoris Causa atribuído pela Universidade Católica de Lovaina onde Maria de Lourdes se centrara sobre a palavra solidariedade num sentido lato, a uma escala planetária e como valor moral. Volta-se ao tema da grande mudança que se operou em relação à ciência e tecnologia, refletindo sobre uma sociedade mediatizada pela técnica, sobre a forma como o poder do «saber fazer» se sobreporia ao poder de saber, sobre uma consequente necessidade de uma alfabetização científica e tecnológica e sobre esta como elemento- -chave de estruturação da sociedade e ponto-chave da sobrevivência do planeta, da espécie humana. Também encontramos a sua preocupação com a problemática da população, em virtude do seu duplo movimento de crescimento e de declínio, não deixando de lado, nesta reflexão, a busca de um equilíbrio estável entre, por exemplo, homens e mulheres, jovens e idosos, ativos e não ativos, entre outros. Quanto à qualidade de vida, para a autora, se o ser humano fosse olhado apenas como número, ela sairia penalizada, daí a importância da aposta em políticas sociais (além da saúde e da educação) para a sua construção. Vivendo-se num mundo em transição, com um desenvolvimento económico crescente, alertaria para o crescendo de desigualdades sociais, já que ele não conseguira «absorver» a pobreza. Face a tudo isto exigia-se, segundo a autora, uma ética da «responsabilidade», pois esta é que seria a raiz da liberdade. A autora refletiu também sobre a «revolta da natureza», a terceira revolução industrial e a informação instantânea como dados evidentes de um mundo globalizado, dados que requereriam uma nova aprendizagem da cidadania.

Retornar-se-ia novamente ao sagrado, segundo a autora, não para explicar fenómenos da natureza inexplicáveis mas como recusa da complexidade, da modernidade. Assistir-se-ia à sacralização das sociedades secularizadas, à sacralização do chefe, de espaços, tempos, esmagando-se o cidadão por ficar impedido de usar os seus direitos individuais. Recorrendo frequentemente à tragédia de Antígona, a autora considera que se prende a política ao sagrado, sendo que Creonte representaria a primeira (ordem política) e Antígona o segundo (a consciência individual). Maria de Lourdes refletira ainda sobre a espiritualidade das mulheres (cristãs ou não) e os caminhos a trilhar (busca espiritual que terá de tocar no fundo do seu próprio ser), sobre as novas questões que o mundo em mudança traria sobre a educação para os valores e sobre os próprios valores da educação, bem como a importância de culturalizar a sociedade e socializar a cultura. Maria de Lourdes, para tal, colocaria enfoque na promoção de «políticas culturais»: de preservação do património de cada povo, de criação e difusão de formas tradicionais de expressão cultural, relacionando-as com o quotidiano, de promoção do estatuto e formação dos criadores, artistas, de forma a manifestarem livremente o seu talento, entre outros, para que a cultura pudesse chegar a penetrar todos os setores da vida em sociedade.

Da minha leitura, surgem-me algumas questões para reflexão pessoal: mulheres e homens estarão à altura do legado deixado por Maria de Lourdes Pintasilgo, já que ela acreditava na capacidade de todas e todos para mudarmos o mundo? É no bom caminho que seguimos ou estaremos a defraudar a sua crença em nós? Talvez devamos seguir o conselho que Maria João Seixas nos deixa no posfácio, termos à mão esta Antologia, «para poder ser lida e relida como um Breviário, na certeza de que nela encontraremos ensinamentos e inspiração suficientes para, aqui e agora, nos sentirmos capazes de não nos perdermos » (p. 446). Quanto a mim, procurarei fazê-lo.

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