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Ex aequo

Print version ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.27 Vila Franca de Xira  2013

 

Brasão, Inês (2012), O Tempo das Criadas. A condição servil em Portugal (1940-1970), Lisboa, Tinta da China, 319 páginas.

 

Teresa Pinto

CEMRI/Universidade Aberta, Portugal

 

O Tempo das Criadas, de Inês Brasão, é o resultado de uma investigação situada no interface da sociologia e da antropologia históricas, amadurecida a partir de questionamentos anteriores sobre as representações oficiais em torno das criadas, no período do Estado Novo, que a autora sistematizou em Dons e Disciplinas do Corpo (1999).

Perante as representações oficiais, os retratos ficcionados da criação literária e a quase ausência do tema na produção historiográfica, a autora propôs-se usar os instrumentos teóricos e metodológicos da sociologia para edificar uma interpretação estrutural sobre as criadas de servir entre as décadas de 1930/40 e 1970. Num exercício de decomposição das representações sociais que conformam o nosso olhar sobre esta realidade, a autora interpela, simultaneamente, a investigação sobre as esferas do privado e do quotidiano (que não têm elegido como objeto de estudo o serviço doméstico do passado recente português) e os mecanismos de constituição e de funcionamento da memória coletiva (que tem deslocado a realidade em questão, por um efeito de sfumatto, para um passado intemporal e idealizado, sustentáculo de nostalgias presentes).

O recurso à história oral e ao método biográfico, na sua articulação com inúmeras fontes primárias e secundárias, permitiu desocultar as representações de algumas criadas corresidenciais e, através delas, contribuir para reinterpretar a sociedade contemporânea à luz dos «processos de subalternidade» (p. 10), bem como, pela concretude das entrevistadas, ressituar nas dinâmicas do passado recente o tempo das criadas. Inês Brasão mostra como as famílias das classes médias, libertadas da acumulação de trabalho físico no espaço doméstico, pelo recurso a uma mão-de-obra feminina não qualificada, se reconfiguram pela integração dos tempos e práticas do lazer e pela afirmação simbólica da sua posição de classe, gerando novas relações sociais de género.

São dezoito as entrevistadas, nascidas entre 1923 e 1958, naturais de dezoito locais diferentes do continente português, dezasseis dos quais a norte do Tejo, e chegadas à cidade (Lisboa na quase totalidade dos casos) entre 1937 e 1965. A autora enquadra estes testemunhos de êxodo rural feminino num contexto de profunda alteração do equilíbrio demográfico e socioeconómico do país, que se objetiva, no caso dos distritos mais atingidos, como Guarda, Bragança, Castelo Branco e Viseu, numa perda global de cerca de 140.000 mulheres, com um peso de 28%, 21%, 18,6% e 15,3% em relação à respetiva população feminina de referência, entre 1950 e 1970 (pp. 95-99). Este êxodo feminino coincide com a massificação e consequente desvalorização do serviço doméstico (pp. 48 e 168), quando franjas cada vez mais baixas das classes médias generalizam a utilização de criadas para todo o serviço (p. 100).

A autora, a partir da análise das representações jurídicas, políticas e culturais associadas ao estatuto do trabalho doméstico em Portugal nos séculos XIX e XX, sublinha o facto de apenas no recenseamento de 1980 ter desaparecido a categoria «criada de servir» (p. 42), embora, em termos normativos, se tenha reduzido, a partir da década de 1940, o poder tutelar do patrão sobre a criada. Desta alteração adviria, porém, uma representação social negativa das serviçais domésticas, acentuada, na década seguinte, com o processo de massificação.

Emigrantes, as criadas alteravam aparência e hábitos, tornando-se estranhas na sua aldeia, mas, imigrantes nas cidades, permaneciam descabidas no meio urbano. As cidades acolhem-nas por necessidade, mas recusam a sua integração. Este grupo profissional passa a ser reputado de imoral, incompetente e desobediente, convertendo-se num problema social crítico «incómodo a uma classe média instalada» (p. 150). Será o estigma da desobediência, que se tornou, naquele período, um fenómeno obsessivo para as classes dominantes, que a autora manterá como fio condutor da sua análise crítica.

Nesta consonância, segundo a minha leitura, o contributo mais inovador deste trabalho de Inês Brasão resulta da busca de momentos de construção e de desagregação dos paradigmas do serviço doméstico em Portugal a partir da interpretação das representações do grau de observância da obediência e objetiva-se na configuração de uma dupla faceta deste problema social, implicando o grupo profissional das criadas e o grupo das famílias empregadoras.

À medida que as camadas menos abastadas das classes médias vão recorrendo aos serviços das criadas, a procura incide, cada vez mais, em mão de obra mais barata e desqualificada. Recrutam-se, nas aldeias, crianças e adolescentes analfabetas e sem saberes práticos da vida doméstica e impõem-se-lhes tarefas às quais elas não sabem responder, nem tão-pouco podem aprender com uma criadagem mais experiente, pois esta não existe nas famílias urbanas de situação remediada. Desastradas e desasadas, estas raparigas comportam-se, aos olhos da população citadina, como seres bravios a domesticar, pois os seus incumprimentos, gerando punições incompreendidas, geravam atos de insubmissão tidos como ameaçadores da ordem social. A subversão, conotada com a marginalidade, é explorada e caricaturada na ficção literária (p. 161 e seg.). Todavia, a realidade escrutinada pela autora revela que, embora a emigração nunca se fizesse «às escuras» (p. 53), como testemunham as entrevistadas, dado que uma rede de contactos garantia as colocações, a chegada à cidade convertia-se, sobretudo em situações de despedimento ou de fuga, num passaporte para a prostituição. Respondia- se com discursos médico-sanitários, regulamentações e instituições, como a Obra de Santa Zita (fundada em 1931 pela Ação Católica Portuguesa). Esta acolhia, instruía e formava raparigas e mulheres ao desamparo na cidade (p. 109 e seg.), tentando expurgar dos seus corpos as marcas da aldeia, domesticando-os por higienização e cristianização. A existência da criada devia ser invisibilizada através do silêncio do corpo e da personalidade, favorecendo o «envasamento dos valores da família onde era criada» (p. 144).

Do lado das classes dominantes regista-se uma consciência apreensiva com a incapacidade de superintendência adequada dos contingentes de mão-de-obra feminina servil por parte das camadas mais baixas das classes médias, que, impreparadas para a sua nova condição de patronato, não sabiam fazer-se obedecer. Multiplicam-se, assim, os manuais de civilidade (p. 214 e seg.) e os artigos educativos nas revistas e outras publicações femininas (p. 146 e seg.) destinados às novas ou futuras patroas das classes médias. Evocava-se um modelo de criadagem que, todavia, já não podia existir face à nova conjuntura de procura, de recrutamento e de inserção. Inês Brasão recolhe em Maria Lamas (As mulheres do meu País, 1948) um «retrato desencantado sobre as trabalhadoras domésticas» (p. 143), dando conta de uma degradação do regime de obediência, o qual só persiste como «arquétipo de serviçal pretendido pelas classes urbanas no contexto dos anos 50 e 60» (p. 145). Este paradigma de serviçal das elites burguesas oitocentistas, modelo-cópia do sistema de criadagem da aristocracia da sociedade pré-industrial, fora interiorizado como símbolo de ascensão social pelas classes médias, designadamente urbanas (caso da Inglaterra Vitoriana, cujas descrições continuaram a alimentar o imaginário português), dando lugar a uma feminização do trabalho doméstico que só tardiamente, a partir de finais da década de 1930, se verifica em Portugal (p. 48). Compreende-se, assim, que os ritmos de feminização dos serviços domésticos tenham sido muito mais lentos no interior do país, como revela Inês Brasão ao comparar Lisboa e Guarda nas décadas de 1940 e 1950 (pp. 95-99). Nesta última cidade persiste uma composição do serviço doméstico fortemente masculinizada, característica das sociedades pré-industriais, associada a práticas muito vivas de um sistema de deferência e de obediência que já não se observavam em cidades como Lisboa.

Inês Brasão mostra, exemplarmente, a desagregação de um modelo de serviço doméstico que, associado às elites burguesas e aristocráticas, não se coadunava ao universo numeroso das camadas mais baixas das classes médias. Fracas posses determinaram a redução da criadagem à criada para todo o serviço, as casas exíguas tornaram incomportável a segregação espacial e funcional das criadas e a falta de orientação era substituída por uma sobre-exploração carregada de punições. Os relatos das entrevistadas dão conta de situações de conformismo e de sentimentos de fidelidade, mas também de contestações face a maus tratos e humilhações (p. 184 e seg.). Os relatos de insubordinações remetem, sobretudo, para contextos de reduzida diferença social entre as famílias de origem e as de acolhimento das criadas (p. 249). O regime de criada corresidente, nestas condições, entrará também em contradição com o princípio burguês da privacidade, pois «a devassa da vida privada é (…) um poder que pode ser capitalizado pelas criadas de servir em desfavor dos patrões» (p. 180). A empregada doméstica «a dias» será a resposta mais consentânea com os novos contextos familiares beneficiados, também, com a aplicação da tecnologia aos equipamentos domésticos.

Uma das virtudes desta obra advém da complexidade do processo analítico e interpretativo assente no cotejamento rigoroso dos relatos com as fontes consultadas. Inês Brasão vai entrosando permanentemente diversas variáveis, evitando extrapolações anacrónicas e geográficas, distinguindo os quadros das vivências quotidianas de acordo com o estatuto social, as categorias profissionais e as condições económicas das famílias de acolhimento das serviçais, problematizando as diferentes categorias de mulheres envolvidas no serviço doméstico (esposas e criadas, senhoras donas de casa e simples donas de casa, solteiras, casadas e viúvas). A escrita, rica e expressiva, de estilo recapitulativo, transmite ao discurso uma ambiência de proximidade que nos envolve e nos prende à leitura.

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