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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.27 Vila Franca de Xira  2013

 

Adília Lopes ou a impessoalidade da terceira mulher

Adília Lopes où l’impersonalité de la troisème femme

Adília Lopes or the Impersonal Third Woman

 

Sónia Rita Melo*

Centro Dona i Literatura, Universidade de Barcelona, Espanha.

 

RESUMO

A poesia de Adília Lopes postulando uma terceira via, um terceiro corpo personificado na escrita resiste às catalogações e imposições de uma sociedade cruel, desigual e profundamente pessoalizada. Propondo uma escrita impessoal, a poetisa inscreve a sua escrita na necessária revisão dos modelos passados e numa nova perspetivação dos textos. Ao ler a obra adiliana à luz de um paradigma ginocrítico que coloca a mulher como sujeito e não mero objeto da crítica, evidenciamos os fundamentos e processos que presidem à construção do feminino e do masculino na tessitura poética. Feminino e masculino representam-se na escrita de Adília Lopes através do uso de estereótipos e clichés manuseados ironicamente pela autora.

Palavras-chave: «Escrita feminina», Adília Lopes, impessoal, ginocrítica.

 

RÉSUMÉ

La poésie de l’auteur portugais Adília Lopes présente une troisième voie, un troisième corps personnifié dans l’écriture. Cette poésie résiste aux classifications et impositions d’une société cruelle, inégale et profondément personnalisée. En proposant une écriture impersonnelle, l’écrivain inscrit sa poésie dans une révision nécessaire des modèles du passé et dans une nouvelle manière de lire (et écrire) les textes. Nous lisons l’oeuvre adilienne à partir d’un paradigme gynocritique qui situe la femme comme sujet et non comme simple objet. Ainsi, nous mettons en évidence les fondements et processus de la construction du féminin et du masculin que nous retrouvons dans le tissu poétique à travers des stéréotypes et des clichés ironiquement utilisés par l’auteure.

Mots-clé: «Écriture féminine», Adília Lopes, impersonnel, gynocritique.

 

ABSTRACT

The poetry of the Portuguese author Adília Lopes postulates a third way, a third body personified in writing and resists the classifications and the impositions of a cruel, unequal, and profoundly individualistic society. Through her impersonal stylistic mode, the author’s poetry inscribes itself within both the necessary revision of past models and a new textual perspective. Reading the adilian canon in the light of a gynocritical paradigm which fixes woman as a subject, rather than a mere object, we find the foundations and processes that construct the feminine and the masculine in the poetic tissue, as they are represented in Lopes’ poetry, in the author’s ironic handling of stereotypes and clichés.

Key-words: «Feminine Writing», Adília Lopes, Impersonal, Gynocriticism.

 

1. «A minha história / é outra / e começa agora // Estou sempre / a começar»1

A terceira mulher ou a mulher indeterminada é, na perspetiva do filósofo francês Gilles Lipovetsky, um novo modelo feminino que determina o lugar da mulher e orienta o seu destino social. Assim, esta «nova» mulher seria caracterizada pela sua «autonomização relativamente à autoridade tradicional exercida pelos homens sobre as definições e significados imaginário-sociais da mulher» (Lipovetsky, 1997: 291)2. Na verdade, esclarece Lipovetsky, embora a terceira mulher seja uma «autocriação feminina» e institua uma «ruptura importante na história das mulheres», esta não coincide com o «desaparecimento da desigualdade entre os sexos» (Idem: 292). Contudo, e seguindo a reflexão do filósofo, os dois géneros encontrar-se-iam numa mesma situação «estruturalmente similar no que diz respeito à construção do ‘eu’», dado que «para um sexo, como para o outro» importa apenas a pessoa individual e idiossincrática. Lipovestsky, apesar de reconhecer que uma «nova mulher» nasceu, não se aventura suficientemente longe no trilho que enceta este «terceiro corpo».

Numa outra perspetiva, Hélène Cixous, autora entre outros do texto emblemático Le Rire de la Méduse, vê neste «terceiro corpo» – que é também título de uma das suas obras publicada em 1970 (Le troisième corps) – um espaço a ser explorado pelas mulheres na caminhada em prol da sua afirmação identitária e da sua herstory ainda por escrever. A polifacetada teórica define o terceiro corpo como o espaço existente entre as categorias, entre as identidades que tomou a mulher ao longo dos tempos. Através da exploração deste espaço, argumenta Cixous, é possível desafiar a categoria culturalmente produzida que é a categoria mulher. Desmembrando desta forma esta construção cultural, cria-se um espaço outro que, na visão cixousiana, se localiza num terceiro corpo encarado como o habitat principal no âmbito conceptual feminista. Seguindo a leitura desconstrucionista de teor derridiano e feminista de Cixous será a mulher, por razões anatómicas e libidinais, a mais disposta à experiência da diferença, ao acolhimento do elemento terceiro no seu próprio interior. Assente nesta premissa, a teórica francesa conclui ainda que a escrita enquanto elemento «outro» se adapta a este terceiro corpo oriundo dos interstícios do «feminino». A escrita converter-se-á então para a escritora e na escritora «a passagem, a entrada, a saída, a estadia, do outro que eu sou e não sou, que não sei ser, mas que sinto passar, que me faz viver (…) – que me rasga, inquieta, altera, quem? – uma, um, uns/umas? (…)» (Cixous, 2010: 115).

Neste espaço outro que a produção escrita esboça inscrevemos a perspetiva ginocrítica que pretendemos seguir. Com efeito, e apesar de reconhecer que certos objetivos da fase fundacional desta crítica especializada foram já ultrapassados ou recolocados em questão, parece-nos todavia imprescindível manter um ponto de vista crítico no qual a diferença sexual é verdadeiramente uma categoria da análise epistemológica nas ciências humanas. Assim, utilizamos o termo ginocrítica na esteira da professora e crítica Anna Klobucka como um «modelo interpretativo que tem por objetivo a mulher enquanto produtora de significado textual» tal como «no sentido alargado de um paradigma científico e académico» (Klobucka, 2009: 16). Num artigo emblematicamente intitulado «Os Estudos Feministas Revisitados: Finalmente Visíveis?» datado de 1999, mas publicado em 2001, Ana Gabriela Macedo destaca, por um lado, a ainda ténue visibilidade deste tipo de estudos no panorama português e, por outro, parafraseando Elaine Showalter, define o objetivo da crítica feminista:

A crítica feminista, seja centrando-se essencialmente nas representações literárias da diferença sexual, seja no modo como os géneros literários têm sido moldados de acordo com os valores masculinos ou femininos, ou ainda com a exclusão da voz feminina do terreno literário, da crítica ou da teoria, tem-se preocupado fundamentalmente em estabelecer o género e o espaço do feminino como categoria fundamental nos estudos literários (Macedo, 2001: 272).

Neste sentido, resgatar a história silenciosa e latente das mulheres e reescrever a(s) história(s) será objetivo de uma vertente crítica especializada a que a mesma Showalter apelidou de «ginocrítica», distinguindo-a da crítica feminista. Determinar, se tal for possível, as idiossincrasias de uma literatura especificamente feminina, uma literatura of their’s own, explica em parte a especialização desta crítica. A ginocrítica, ponto de vista crítico cujo epicentro é o olhar da mulher, defende de facto que as mulheres têm processos de leitura e escrita diferentes do homem, por força das diferenças biológicas e das formações culturais da categoria de género. Repensando e revisando o cânone, a ginocrítica centra-se na escrita feminina, elaborada por um sujeito diferente do masculino, contextualmente posicionado e biograficamente marcado. Elaine Showalter, principal promotora desta revolução da crítica feminista, definiu assim os seus limites e objetivos: «o estudo das mulheres enquanto ‘escritoras’ e os seus temas são a história, os estilos, os temas, géneros e estruturas da escrita de mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou colectiva; e a evolução e leis da tradição literária feminina» (Showalter, 1989: 248).

A «revolução da crítica feminista», como a denomina a própria Showalter, floresceu em combinação com outras abordagens críticas oriundas do formalismo, da semiótica, da psicanálise. A mudança de paradigma do «machocentrismo » à perspetiva feminista de leitura e de crítica acarretou uma experiência diferente, um ângulo outro na receção e também na produção do fenómeno literário; a crítica feminista (feminist criticism) estabeleceu o género como categoria fundamental da análise literária. Contudo, mais do que identificar na escrita os estereótipos de uma escrita marcadamente feminina ou claramente masculina, afigura-se de extrema importância «reflectir sobre o fundamento e os processos imaginativos e ideológicos que presidem à construção desse feminino ou desse masculino no tecido poético» (Santos e Amaral, 1997: 7)3.

Nas teorizações que estabelecem o controverso conceito de «escrita feminina », em particular nas diferentes propostas apresentadas por Cixous, Irigaray ou Wittig o corpo, fonte direta da escrita feminina, veicula um discurso subversivo potente já que, escrevendo a partir do corpo, se recria o mundo e se permite o aparecimento da multiplicidade, da variedade que põe em causa o binarismo até então aceite e o falso neutro masculino de que dava conta Maria Isabel Barreno. No entanto, quer o conceito de «feminilidade» quer o de «escrita feminina» são problemáticos e avassaladores porque extremos. Como o assinala Ann Rosalind Jones em «Writing the Body Toward an Understanding of l’Écriture feminine»: «elas (féminité e écriture feminine) foram criticadas por serem idealistas e essencialistas, elaboradas no interior do sistema que pretendiam minar; foram atacadas como sendo teoricamente imprecisas e perniciosas para uma ação política construtiva » (Jones, 1989: 367). De facto, o corpo e a sexualidade femininos não existem aprioristicamente e independentes de uma sociedade e cultura determinadas. O conceito de mulher surge como um conceito escorregadio e marcado por variações de raça, de classe, de orientação sexual, de país ou ainda de etnia. Todavia, como ideias alternativas, polémicas e teoricamente chamativas, féminité, écriture feminine e a própria noção de «mulher», apresentam-se como estratégias vitais que podem, pese o seu extremismo ideológico, levar a mudanças políticas, sociais e a uma performance do sujeito que tenha realmente impacto. Através da linguagem, da sua disposição no corpo da folha e na entrega do corpo da mulher como condição sine qua non, poder-se-á chegar a representações díspares, não binárias e mais próximas da realidade do mundo e da vida. A mudança do filtro interpretativo acaba com alguns dos mitos arreigados à escrita feminina e à mulher, enquanto página em branco pronta para ser escrita pelo criativo e poderoso lápis masculino, afirmando de maneira simultânea novos protocolos de leitura enformados por uma renovada visão crítica do mundo e consequentemente da literatura.

 

2. «Deus é a nossa / mulher-a-dias / que nos dá prendas / que deitamos fora»4

Consciente dos dispositivos de poder exercidos pelo primeiro sexo na sociedade que a viu nascer, a terceira mulher patenteada pela escritora portuguesa contemporânea Adília Lopes (Lisboa, 1960) expressa-se da seguinte forma: «Vivo numa sociedade / de homens / posso convidar / um homem / que conheço mal / para sair / mas ele achava / estranho / e nem eu gostava / de fazer isso» (Lopes, 2009: 199)5. Esta sensação de estranhamento, provocada pela atitude fora de normas do processo de galanteio habitual entre homem e mulher, evidencia o visível mal-estar da mulher numa sociedade da verdade falocrática. Com efeito, a sociedade é construída pelos «homens», termo genérico, universal e representativo de todo o tecido social. Esta afirmação taxativa e de uma aparente cientificidade apresenta-se como um axioma válido para todos aqueles que a constituem. Porém, nos versos seguintes «posso convidar / um homem / que conheço mal / para sair / mas ele achava / estranho», o genérico «homens» particulariza-se em «um homem / que conheço mal» que não entende o convite feito por um elemento outro da sua sociedade (sublinhado nosso), pois esta é uma sociedade de homens, denominação específica, não abrangente da multiplicidade. Por essa razão, a alteridade, o outro, o diferente não se revê neste conjunto «de homens» que, de forma análoga, rejeita a diferença. O complemento determinativo «de homens» acaba retirando a força genérica que o termo «sociedade» exibe e que a poetisa, a partir de um acto prosaico da vida em sociedade (convidar alguém para sair), denuncia. Por outro lado, a coordenada «e nem eu gostava / de fazer isso» sublinha que a própria mulher aceita a distribuição de papéis sociais e se submete a esta. Neste sentido, o sujeito poético confirma que esta sociedade é exclusivamente de homens e as regras estabelecidas no jogo social são da sua autoria. Expondo a falácia desta sociedade, a poetisa desvela a precaridade do jogo social dominado por um grupo que impõe as suas regras.

Outro poema que segue a mesma dinâmica de repartição social é o conhecido «Poetisa-fêmea, Poeta-macho (cliché em papel couché)» do qual citamos o início: «1 / Eu estou nua / eu estou viva / eu sou eu // Eu uso gravata / e, olhe, não foi barata // 2 / Sou uma poetisa-fêmea / falo do falo // Sou um poeta-macho / sacho (…)» ( Lopes, 2009: 462)6. Iniciando pela voz «feminina» da poetisa7 e por três máximas vitais («Eu estou nua / eu estou viva / eu sou eu»), o poema apresenta uma série de definições essenciais expressas pela forma verbal «sou», uma insistência em formas pronominais e verbais de primeira pessoa («eu, estou, uso, falo, sacho, tenho, escrevo, mim»), assim como uma reiteração do determinante indefinido um / uma («uma poetisa, um poeta»). A dicotomia poetisa-fêmea / poeta-macho e os atributos respetivamente atribuídos a cada figura encerram claramente clichés, preconceitos, construções culturais e representações identitárias vinculados à hegemonia ideológica patriarcal.

As formas de primeira pessoa, aplicadas quer ao «eu» feminino, quer ao masculino, respondem-se de maneira dialógica dado que a poetisa e o poeta se autodefinem seguindo uma lógica de verdadeiro slam, onde a poetisa fala, em primeira posição na troca comunicativa, dando o mote ao seu interlocutor macho. Expressando-se como poetisa ostenta, in praesentia, o seu corpo físico que marca o género sexual e gramatical. Esta tomada de palavra por parte da voz «feminina», no espaço dialógico dominado pelo «falo», sublinha a escrita transgressora que produz Adília penetrando, sem pedir licença, no império do macho. A poetisa escreve como fala e não como «falo» apesar de falar sobre ele, toma a palavra, materializa o seu corpo e produz lixo, pois falar implica colocar-se numa situação comunicativa em que a linguagem gestual atua simultaneamente. A gestualidade de Adília visibiliza-se nos excessos de uma escrita do quotidiano feminino onde o culto do poder simbolizado pelo phalo domina. A oralidade nua e crua de Adília associa-se ao «louvor do lixo»8 que faz a poetisa, um louvor à singularidade de um grão de voz que é grito mas também saída de si em direção ao outro. Seguindo um dos eixos temáticos destacados por Burghard Baltrusch – a dicotomia entropia / «desentropiar» – (Baltrusch, 2008)9, este «lixo» está presente no pó que asfixia os modelos literários canonizados e impede a sua revisão e reescrita. A mulher-a-dias, demiurga neste universo que domina por limpá-lo à sua maneira, desintegra-o da sua sujidade e dá-lhe uma ordem nova, limpa, mas instável e sempre a recuperar.

A nova ordem do mundo perpassa também no poema dos clichés «Poetisa- -fêmea, poeta macho». Prosseguindo a nossa leitura deste poema, entendemos que o uso reiterado do determinante indefinido um / uma nas cinco primeiras estrofes salienta a generalização, a indeterminação de poetisas e poetas que são, simplesmente. Tal como no conceito deleuziano de uma vida enquanto imanência, o artigo não particulariza; ao invés, subtrai a determinidade devolvendo os conceitos autorais à sua impessoalidade, virtualidade e constante devir. O impessoal é aqui pensado não como negação do pessoal mas por aquilo que tem de absolutamente singular e simultaneamente geral. Assim um poeta / uma poetisa, como conceitos imanentes à própria vida enquanto força absoluta de criação e resistência, têm a capacidade de resistir, criar novas formas, novos possíveis e pulverizar clichés. Contudo, se seguirmos na leitura do poema, da abrangência permitida pelo determinante indefinido, passamos, nas sexta e sétima estrofes, à singularidade do determinante definido a / o que trava, de alguma forma, a virtualidade contida no impessoal colocando-nos face ao evento, à ocorrência, à quotidianidade: «6 / A poetisa-fêmea / toca viola / o poeta-macho / viola-a». Por fim, o poema conclui com o regresso da primeira pessoa, um «eu» indefinido que parece afastado do elenco das características dos poetas e das poetisas, com preocupações existenciais e morais: «8 / Não tenho culpa / não tenho desculpa / não tenho cuspo / não tenho tempo» (ibíd.). Neste movimento ondulante da escrita entre o indefinido, o definido e o próprio e na oposição feminino / masculino, Lopes explora uma característica do terceiro corpo que Cixous denominou de «outra bissexualidade »: «aquela na qual cada sujeito não encerrado no falso teatro da representação falocêntrica institui o seu universo erótico. Bissexualidade, isto é, o dar-se conta em si próprio, individualmente, da presença, diversamente manifesta e insistente segundo cada um ou cada uma, dos dois sexos, não-exclusão da diferença de nenhum sexo (…)» (Cixous, 2010: 113). Desapropriando-se das primeira e segunda pessoas, Adília Lopes funde-se no cosmos atingindo a resolução da contradição na impessoalidade da terceira. Roberto Esposito, seguidor da teorização de Simone Weil sobre o impessoal, conclui numa obra basilar Tercera Persona – Política de la vida y filosofía de lo impersonal (2009) que só desativando o dispositivo de pessoa poderemos pensar o ser humano enquanto tal, por aquilo que tem de mais único mas, ao mesmo tempo, de mais comum com o outro.

Tendo em conta a produção poética de Adília Lopes, assim como textos metaliterários, notas da autora, entrevistas, exibições sociais (televisivas, leituras de poemas, aparições públicas etc.), pretendemos ler a obra e sobretudo o projeto literário Adília Lopes como uma escrita que desfaz a categoria de pessoa na medida exata onde parece exacerbá-la e ostentá-la de forma quase compulsiva. «Eu estou viva, eu sou eu, este livro foi escrito por mim» são algumas das declarações poéticas da autora que revelam, na verdade, que «eu» sou «ela», «eu» sou sempre terceira pessoa porque «eu» não existo, sou apenas escrita. De facto, é de salientar que Adília Lopes é um pseudónimo, isto é, o nome de uma não-pessoa que não reenvia a um «eu» ou «tu», mas a «ela», à própria escrita que este nome sela.

A questão do valor da escrita e da necessidade vital ou acessória da estética reencontra-se num texto em prosa contido no livro Le vitrail La nuit*A árvore cortada (2006) e intitulado «Haverá uma beleza que nos salve?» (Idem: 601-602). Adília, poetisa de papel, «poetisa op-art» ou ainda «freira poetisa barroca», é um dos elos da cadeia do ser e considera que «só a bondade nos salva». «Se a nossa obra artística, ou outra, não implica a renúncia às coisas inúteis e a partilha, então é bastante inútil. E as coisas inúteis, para uma poetisa, são o desejo de escrever obras perfeitas e o de ser reconhecida pelos seus pares» (Idem: 601). A partilha consubstancia-se na solidariedade e na escrita solidária que Adília pratica, como quem pratica a religião católica. O seu uso paródico dos textos que pesca quer na tradição canônica quer nos discursos populares, nas frases feitas e na sua experiência de mulher revaloriza afetivamente o passado textual e a sua fidelidade aos paradigmas intemporais da arte da escrita, literária ou não. «A arte é feita para construir a paz. Não é um esgrimir no vazio. Não pode ser.» (Idem: 602). Fidelidade também ao mundo empírico, aos seres que povoam a terra para a qual a sua arte é dirigida. A própria Adília representaria, deste modo, a experiência mística por excelência no quadro da doutrina cristã, aquela que permite a ascensão à bondade e à paz, ao reencontro da unidade perdida.

Daí o surgimento de uma outra forma de se identificar, de se auto-identificar, sem enigmas, nem problemáticas existencialistas ou feministas: «Um espelho / não é / uma janela / um espelho / não é / um quadro / Quem espreita / por meus olhos / no espelho / sou eu / E eu / sou eu / Não há / enigmas» (Idem: 580) diz-nos, ironicamente10, Adília Lopes. Ironicamente porque de facto Adília Lopes é, como já o salientámos, um pseudónimo, personagem, máscara inventados por Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira e é também um corpo produto da escrita de um «eu» que reaparece noutros corpos textuais como, por exemplo, no da freira Mariana Alcoforado incontestavelmente, nas mãos de Adília, autora das epístolas dirigidas ao Marquês de Chamilly. Na cadeia de ADN formada pelas moléculas de Adília / Maria José inscrevem-se as identidades queridas e desejadas: «A minha sombra / não é minha / o meu olhar / não é meu / Quem me roubou / o meu eu / senão eu?» (Idem: 578). O roubo da identidade dá-se através do próprio ser que, autograficamente, se constrói e reconstrói num «Círculo de poesia». É de notar que Adília passa de um Clube da poetisa morta (1997) a um «Círculo de poesia» (Cadernos, 2007) que a circunda e fecha no mesmo espaço literário. De facto, o clube veicula a ideia de deslocação, de reunião e partilha que levaria a um novo começo, uma outra etapa na vida poética. Desta forma, a opção pela pseudonímia reitera a autodeterminação identitária de um sujeito que escolhe a sua identidade e os genes que constarão do seu mapa genético. A deslocação do centro de gravidade do eu pensante, permitida pela capa da pseudonímia, reforça a incerteza ontológica mas, paradoxal e ironicamente, esta incerteza é vivenciada de forma paródica, como uma vida ao lado da vida socialmente aceite (para e doxa). No entanto, o conceito de círculo, enquanto conjunto de todos os pontos de um plano contido numa circunferência, limita e encerra os malabarismos poéticos experimentados pela autora. Por outro lado, relembra a limitação da escrita que nunca se sobrepõe à pessoa, à mulher de carne e osso que a projeta: «Escrevia / porque estava sozinha / e queria estar / com pessoas /» (Idem: 579). Todavia a escrita apodera-se, de forma antropofágica, do ser que a orquestra e a mulher de carne e osso converte-se numa mulher de carne e verso: «Depois / estava com pessoas / e queria estar sozinha / para escrever» (Idem: 579). Encontramos neste jogo de contradições e de releituras das experiências vividas uma Adília leitora de Adília, leitora de Maria José e leitora do mundo em que vive. A poetisa, artista num palco pós-moderno, desdobra a história e cultiva o seu desdobramento, mostrando as várias perspetivas nela contidas. Na relação que Adília mantém com o passado canónico e consagrado, firma-se a aliança paródica, símbolo da afetividade e fidelidade à tradição literária. Interrogando este passado e buscando sobretudo as suas antepassadas, o pseudónimo Adília mantém o género da criadora Maria José, reivindicando uma linhagem, uma cadeia de um ser dito «feminino». O nome tresanda a banalidade e encoraja, ao mesmo tempo, a familiaridade, a aproximação a uma persona que poderia ser uma mulher de «todos os dias», aparentemente despreocupada, ingénua e livre das suas escolhas e opções. Aparentemente, pois Adília também põe «em prática atos tanto de resistência como de construção feminista, sendo que é precisamente no campo da intertextualidade que se encontram muitas e interessantes oportunidades para tal» (Klobucka, 2009: 312). Lembrando que a igualdade permanece utópica – «Eu escrevo / pequeno- -almoço / os poetisos escrevem / almoço pequeno // Sobre a erva / sobre a relva»11 (Lopes, 2009: 591) – a autora desmistifica, com o auxílio do sufixo «-iso», o tradicional poeta que se torna «poetiso», classificação depreciativa. Este uso da forma masculina de «poetisa» relembra que a grande e reconhecida escrita poética sempre foi a dos poetas «machos». No juízo da professora Rosa Maria Martelo «a expressão ‘os poetisos’ é uma resposta à centralidade histórica do termo poeta, de resto, um termo de que algumas autoras se apropriaram, sobretudo nos anos 70 e 80, em resposta à subalternização longamente carreada pelo termo poetisa» (Martelo, 2010: 241). Às «poetisas» não foi permitida a entrada no Olimpo da poesia ou da «coisa» escrita, já que estes seres estavam confinados às amarguras dos trabalhos domésticos e conjugais. A prisão patriarcal podia admitir fantasias ridículas de mulheres escritoras, mas não seriam mais do que isso12. Por outro lado, a inversão simples da expressão «pequeno-almoço» e a antinomia «erva / relva» reforçam a diferença e valorização de uma prática de escrita (masculina) face a outra considerada esteticamente inferior.

 

3. «Porque a caridade bem ordenada por nós mesmos é começada»13

No âmago de um tempo considerado (e desconsiderado) pós-moderno, a igualdade entre sexos parece subsistir apenas no questionamento sobre as identidades que se colocam os indivíduos e do qual as teorias feministas foram / são porta-voz. A re-visão da história lida e escrita por mulheres, assim como a interrogação sobre a naturalidade de uma diferença sexual articulada com as desigualdades entre os sexos levam a reformular a perspetiva crítica até então adotada no âmbito literário. A voz errante das mulheres mantida «sob a terra», nas palavras de valter hugo mãe, e abafada por uma cosmovisão masculina tida como neutra, única e exemplar vem ressuscitando do fundo do corpo feminino, despertando-o da sua forçada letargia e inscrevendo-o nas re-leituras que o sujeito crítico elabora. Importa realçar que este despertar no âmbito luso deve-se em grande parte à obra plural Novas Cartas Portuguesas publicada em 1972, da autoria das «Três Marias», Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa.

Destruindo fronteiras entre categorias estéticas, entre o pessoal e o político, entre o coletivo e os dispositivos de poder, as Novas Cartas emolduram-se numa poética do excesso porque «rompem, extravasam» conceitos e fronteiras. Continuando a citação de Maria de Lurdes Pintasilgo no prefácio à obra, o excesso patenteia- se sobretudo «na ousadia de serem mulheres a quebrar os limites, a inverter a situação sujeito / objeto universalmente adquirida» (Pintasilgo, 2010: XXVIII). Escrito por três mulheres de nome Maria, de nacionalidade portuguesa e num Portugal onde se vivia a primavera marcelista, o texto eclode como crítica às formas sociais e opressoras do patriarcado e questiona vários aspetos da vida nacional. O primeiro desafio que lança prende-se com a dessencialização da figura da mulher que simultaneamente se torna Mariana, Maria Ana, Mónica, Ana Maria, Maria, Isabel, Fátima, Teresa, ou seja, uma mulher em devir, uma posição do discurso.

O desafio à categoria mulher passará também pelo desmantelar da categoria autoral e pela escolha da figura anacrónica de Mariana Alcoforado, pseudo- -autora das Lettres Portugaises (1669), como voz e protótipo da mulher portuguesa submissa e marginalizada. Provocando a autoridade social, política, familiar e através do estilhaçamento autoral que pulveriza o conceito canónico de autor e de autoridade literária fecundado numa tradição machista do génio literário português, as Novas Cartas utilizam a figura em trânsito da freira de Beja, ou seja, uma figura em contínua deslocação representada pela sua condição marginal. A marginalização de Mariana evidencia-se, de facto, na sua tripla condição periférica e de excluída: Mariana vive fora da comunidade, no exterior do círculo social da maioria, enclausurada num convento de uma cidade periférica, pertencente a um país exterior aos círculos do poder. Os círculos de exclusão nos quais se move a freira ligam-se, paralelamente, à exclusão da figura autoral feminina do cânone tradicionalmente masculino. Na escolha de Mariana, da sua história pessoal e transgressora e da sua posição privilegiada de «estar à janela» subjaz uma opção política, socialmente comprometida e literária de originar uma genealogia da escrita feminina portuguesa cujo ponto de partida seria Mariana Alcoforado, uma proposta subversiva, transitória e movediça do tratamento da filiação materna no âmbito da memória literária.

Recuperando esta genealogia, Adília Lopes14 vinca que a sua escrita pertence a uma voz gramaticalmente feminina: «Vivo / dia a dia / sou / uma mulher-a-dias» (Lopes, 2009: 599), mas também impessoal tal como o sublinhamos no decurso deste artículo. Desde o corpo próprio, mas sobretudo do corpo da escrita, Adília problematiza a linguagem tornando-a desconcertante, abalando-a, retorcendo-a. Em Adília a questão não é tanto de redefinir a subjetividade feminina em termos de diferença sexual e enfatizar assim a falta de simetria entre os sexos, mas buscar a sua identidade no espaço da comunidade, da partilha com o outro onde se desenha a impessoal terceira pessoa. Sendo escrita, isto é, terceiro elemento que rompe a relação dialógica do «eu» e do «tu», Adília Lopes é impessoal, pois extravasa o conceito de pessoa, chamando a atenção, a partir deste movimento para fora, para as minorias, os excluídos ou a-normais (mulheres, deficientes, animais). A projeção social e política da sua intervenção artística na qual é patente a re-visitação ou re-visão da história lida e escrita por mulheres, assim como a interrogação sobre a naturalidade da história única contada por eles (history), conduz a uma necessária leitura ginocrítica da obra adiliana.

Utilizando a contratualização autobiográfica como arma para defender um nome que abarca, de forma rizomática15, problemáticas identitárias e ontológicas, Adília Lopes sintetiza, posicionando-as lado a lado, a excecionalidade dada à arte poética e a marginalidade de todos aqueles que não correspondem às normas de uma sociedade catalogadora e impositiva. Este pressuposto autobiográfico afigura- se como «condição indispensável da eficácia crítica da obra poética adiliana, » dado que associa uma «hiperconsciência discursiva de poeta» à banalidade e «vulnerabilidade de um quotidiano» comum que «habitualmente não tem voz» (Martelo, 2010: 245).

Ler Adília como mulher do seu tempo e perspetivá-la ginocriticamente leva-nos a perceber que a autora ultrapassa as polémicas teóricas de teor feminista e se inscreve de uma certa forma na resistência própria ao texto poético através do seu discurso «a contramão» e na sua reconfiguração do sujeito mulher enquanto sujeito sexual e com voz. Da mesma forma, entender Adília Lopes como um projeto literário e a escolha pseudonímica como elemento basilar desta arquitetura autoral equivale a formular este projeto enquanto «construção da personagem de mulher autora de poesia, isto é, da poetisa» (Klobucka, 2009: 279). Sendo, segundo Hélène Cixous, impossível «definir uma prática feminina da escrita»(…) «pois nunca se poderá teorizar esta prática, encerrá-la, codificá-la, o que não significa que não exista» (Cixous, 1995: 30), a escrita / leitura de Adília representa singelamente uma hipótese de leitura do mundo, da identidade, do ser que se escreve e que, nesse movimento de inscrição no papel e na memória histórica, resiste aos discursos hegemónicos e falsamente inclusivos.

 

Referências bibliográficas

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Artigo recebido em 7 de setembro de 2011 e aceite para publicação em 23 de março de 2013.

 

Notas

*É doutoranda em Construção e Representação de Identidades Culturais (Faculdade de Filologia Românica – Universidade de Barcelona), seguindo a linha de investigação em Relações interculturais e intertextuais: tradução, reescrita e receção do texto literário. Vinculada ao Centro de Investigação Dona i Literatura da Universidade de Barcelona. Investigadora da equipa espanhola do projeto da FCT, «Novas Cartas Portuguesas, 40 anos depois». Bolseira da Fundação para a Ciência e Tecnologia. E-mail: melosonia@hotmail.com

1Lopes, 2009: 574.

2Quando não houver indicação contrária, as traduções para português são da nossa autoria.

3Neste sentido, convém lembrar o início do texto de Maria Irene Ramalho de Sousa Santos e Ana Luísa Amaral, Sobre a «escrita feminina»: «as aspas do nosso título exprimem uma perplexidade genuína. Não nos parece ser hoje possível conceber o fenómeno estético-literário sem uma reflexão séria sobre a questão da diferença sexual. Porém, falar de uma «escrita feminina» e, consequentemente, falar de uma «escrita masculina» (…) poderá não ser a perspectiva mais produtiva» (1997: 5).

4Lopes, 2009: 380.

5O peixe na água (1993). As referências à obra de Adília Lopes far-se-ão a partir do último volume compilador Dobra editado pela Assírio & Alvim em 2009. Será no entanto especificado, no corpo do texto ou em nota de rodapé, o livro e a primeira data de publicação, exceto nos títulos atribuídos a cada parte que compõe este artículo.

6A mulher-a-dias (2002).

7Somos conscientes da ambivalência do termo poetisa que temos vindo a utilizar por ser visto ora pejorativamente, denotando uma desvalorização da escrita de mulheres autoras, ora como apropriação feminina e feminista de diferenciação positiva relativamente aos poetas homens. Porém, seguindo a autora Adília Lopes que se autodenomina «poetisa», optaremos por este término. É quanto a nós deliberada e conscientemente que a autora elege afirmar-se como poetisa e não poeta seguindo, por exemplo, o modelo de Natália Correia para quem o termo poetisa apresentava justeza e clareza definidora quando se trata de nomear a autora de poesia. Por outra parte, este gesto classificador e catalogador representa também uma forma de intervir na língua enquanto sistema modelizante primário que veicula o mapa da realidade desenhado pelo homem e a sua supremacia científica, representativa e neutra. Utilizando uma nomenclatura que reconhece que a poetisa é mulher em primeiro lugar, Lopes resiste, no âmago do sistema patriarcal que denuncia e sabota desde o seu interior, à máquina ideológica que é a língua.

8Título do primeiro poema do livro A mulher-a-dias publicado em 2002 no qual a autora anuncia, em guisa de prefácio, que «a mulher-a-dias sou eu, é qualquer pessoa» e ainda que «os meus textos são políticos, de intervenção, cerzidos com a minha vida»(Lopes, 2009: 445). No poema em questão, «Louvor do lixo», surge a poetisa na função estereotipada da mulher-a-dias que arruma o poema como arruma a casa retirando-lhe o pó, permitindo-lhe uma nova organização, uma nova concatenação. O pó, por extensão, o lixo e o amor figuram como elementos coordenados, justapostos, nivelados, vitais aos quais devemos dar as graças, cantando o seu louvor: «o pó e o amor / como o poema / são feitos / no dia a dia» (…) «o poema desentropia / o pó deposita-se no poema / o poema cantava o amor / graças ao amor / e ao poema / o puzzle que eu era / resolveu-se / mas é preciso agradecer o pó (…)» (Lopes, 2009: 447).

9Importa esclarecer a hipótese de leitura do professor da Universidade de Vigo, Burghard Baltrusch: «Resumindo, penso que o eixo temático mais destacado da sua obra é a dicotomia entropia / «desentropiar». AL (…) está fascinada com a segunda lei da Termodinâmica, também conhecida como lei da Entropia, que estabelece uma direção para toda a atividade na natureza: da concentração das coisas sempre se passará à dispersão, a ordem sempre cederá ao caos, a desordem é sempre mais verosímil que a ordem. (…) A desordem na nossa vida ou na nossa mente necessita ser controlada de forma ininterrupta, temos que explicar a convivência de uma literatura de massas com outra sofisticada, de um discurso demagógico com outro idealista, a convivência de um discurso poético sério e sublime com outro que utiliza a paródia, simultaneamente como arma destrutiva e construtiva, também a convivência do kitsch e da pirosice com a tragédia sublime e os sentimentos profundos e complexos» (Baltrusch, 2008: 240).

10Sobre Adília Lopes e a ironia ver o artigo «Contra a crueldade, a ironia» e ainda «As armas desarmantes de Adília Lopes» ambos re-editados no livro A Forma informe – leituras de poesia (2010) de Rosa Maria Martelo, respetivamente pp. 223-234 e 235-252.

11Le vitrail la nuit * A árvore cortada (2006).

12A esta dificuldade das mulheres escritoras em penetrar no cânone nacional luso e nos seus instrumentos de prova canônica (enciclopédias, dicionários, antologias, histórias da literatura) vigentes, consulte-se os estudos fulcrais de Chatarina Edfeldt (2006), Uma história na História: representações da autoria feminina na História da Literatura Portuguesa do século XX, Montijo, Câmara Municipal do Montijo e ainda o recente estudo de Hilary Owen e Cláudia Pazos Alonso (2011), Antigone’s Daughters? Gender, Genealogy, and The Politics of Autorship in 20th Century Portuguese Women’s Writing, Plymouth, Bucknell University Press.

13Lopes, 2009: 420.

14A relação entre Adília e o mito cultural de Mariana Alcoforado estabelecido pelas Novas Cartas Portuguesas é outra das linhas de leitura da obra adiliana já que a poetisa consagra pelo menos dois livros à freira de Beja: O Marquês de Chamilly (Kabale und Liebe) (1987) e O Regresso de Chamilly (2000). Note-se que apesar de ser sobretudo vincada a perspetiva de Mariana em ambos os livros os títulos remetem, ironicamente, para o «herói» masculino, o poderoso cavaleiro andante. Relativamente ao mito de Mariana Alcoforado e a sua relação com Adília Lopes veja- -se Anna Klobucka (2006), Mariana Alcoforado. Formação de um mito cultural e O Formato Mulher. A emergência da autoria feminina na poesia portuguesa (2009), em particular as páginas 261-284.

15Aplicamos o conceito de rizoma (rhizome) definido pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari. Assim, «um rizoma como caule subterrâneo distingue-se absolutamente das raízes e radículas», pois é um sistema heterogéneo e múltiplo que estabelece conexões várias e multidirecionais, contrariamente ao sistema raízes/árvores. Os autores de Mille Plateaux relacionam, de maneira rizomática, livro e mundo e concluem que escrever, fazendo rizoma, será equivalente a «aumentar o seu território pela desterritorialização» (Idem: 19).

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