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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.27 Vila Franca de Xira  2013

 

O olhar político feminista na performance artística autobiográfica

The feminist political gaze on autobiographical performance art

Le regarde politique féministe sur l’art performance autobiographique

 

Armando F. Pinho*1 e João Manuel de Oliveira*2

Universidade do Minho, Portugal / Universidade do Porto, Portugal

 

RESUMO

A história da performance artística confunde-se com a dos movimentos e teorias feministas, evidenciando-se uma relação simbiótica persistente. A performance autobiográfica feminista é, contudo, a mais consonante com a dimensão política daquilo que é pessoal, explorando criticamente a dialética público/privado, tão significativa para as perspetivas feministas. Por isso, interessa-nos refletir sobre a constância destas relações e como se manifestam atualmente, de forma a articular estes trabalhos artísticos com uma leitura feminista e concluir acerca do seu significado e impacto políticos, tal como é exemplificado a partir da obra de Carlota Lagido. Deste estudo ressalta a pertinência de uma interligação mais intencional entre os movimentos sociais feministas, a academia e as artes, com particular destaque para a performance artística.

Palavras-chave: Performance autobiográfica, feminismos, pessoal-político, público-privado.

 

ABSTRACT

The history of performance art merges with the feminist theories and movements, revealing a prevailing symbiotic relationship. Feminist autobiographical performance, however, is more consonant with the political dimension of what is personal, critically exploring the public / private dialectics, so significant for feminist perspectives. Therefore, we are interested in reflecting on the constancy of these relationships and how they are manifested today in order to articulate these artworks with a feminist reading and conclude about its political significance and impact, as illustrated through Carlota Lagido’s artworks. This study underscores the relevance of a more intentional interconnection between activism and feminist social movements, academia and the arts, with particular emphasis on performance art.

Keywords: Autobiographical performance, feminisms, personal-political, public-private.

 

RÉSUMÉ

L'histoire de l'art performance se confond avec les mouvements et théories féministes, révélant une relation de symbiose persistante. La performance autobiographique féministe, cependant, est plus conforme à la dimension politique de ce qui est personnel, explorant de façon critique la dialectique public / privé, très important pour les perspectives féministes. Par conséquent, nous sommes intéressés à réfléchir sur la constance de ces relations et la façon dont ils se manifestent aujourd'hui, dans le but d’articuler ces oeuvres d’art avec une lecture féministe et de conclure quant à sa signification et impact politiques, comme illustré par les oeuvres de Carlota Lagido. Cette étude souligne la pertinence d'une interconnexion intentionnelle entre l'activisme féministe, les milieux universitaires et les arts, avec un accent sur l'art de la performance.

Mots-clés: Art performance autobiographique, féminismes, personnel-politique, public-privé.

 

Introdução

Os percursos históricos da performance artística e dos movimentos feministas têm estado profundamente interligados, com particular evidência nos Estado Unidos, a partir da década de 1970. Esta forte ligação tem proporcionado importantes contributos mútuos para o enriquecimento e sofisticação de novas perspetivas em ambos os campos, numa relação simbiótica, por vezes controversa, mas que nem sempre recebe adequada atenção e sistematização (cf. Heddon, 2006). Contudo, a rápida expansão da teoria feminista fez com que esta cedo chegasse ao teatro e à performance artística, saindo também muito reforçada desta profícua relação (Carlson, 1997). São disso prova os ainda influentes trabalhos de Sue-Ellen Case (1988), Jill Dolan, (1991), Peggy Phelan (1993), Elin Diamond (1997) e, de forma mais indireta mas com inúmeras implicações epistemológicas e práticas, a proposta queer de Judith Butler (1990).

Uma das primeiras evidências da vantagem e necessidade de pôr em diálogo artistas da performance e académicas feministas foi o lançamento, em 1983, da revista Women & Performance: a journal of feminist theory. No editorial inaugural, Jill Dolan explica que a reformulação feita pelas performers e académicas das «maneiras estabelecidas de estudo e apresentação do trabalho criativo» tem permitido «desafiar continuamente a maneira pela qual fomos ensinadas a olhar para nós próprias e para os outros»1 (Dolan, 1983: 3). Por conseguinte, este jornal constitui «uma ferramenta» que pretende perpetuar o diálogo entre performers e teóricas, retirando-as do «isolamento» e do esquecimento por parte dos media, conferindo-lhes uma voz «mais alta, mais articulada (…) na cultura» e testemunhando o «legado da criatividade feminina», enquanto «moldadoras de performance, inventoras de significado, criadoras de cultura» (Idem: 3). Esta tendência rapidamente contagiará o Women and Theatre Program da American Theatre Association, que passa a manifestar preocupações mais teóricas e feministas, desenvolvendo uma profícua relação com a Women & Performance (Blair, 1989).

Mais recentemente, contudo, tem surgido uma curiosidade pela constância desta relação e um renovado interesse no poder transformador da performance (cf. Dolan, 2005,2007; Fischer-Lichte, 2008), bem como um fascínio pelo alcance político e o simbolismo de resistência associado às primeiras performances artísticas feministas das décadas de 1960 e 1970 (Rosenberg, 2007, 2009). Os recentes projetos Once More with Feeling2 e RE.ACT.FEMINISM: a performing archive3 ilustram bem a tendência de retorno a esta performance artística feminista inicial (cf. Fox, 2010; reactfeminism.org , 2012).

Sendo plausível que este renovado interesse feminista pela performance artística enquanto mecanismo político possa inserir-se numa estratégia possível da designada 3ª Vaga do Feminismo (Kaplan, 1992)4, marcadamente construcionista e focada na produção de conhecimento (cf. Starr, 2000), importa explorar melhor como tem sido atualmente articulada esta relação e perscrutar o seu reflexo nas performances artísticas criadas por mulheres. Neste sentido, analisaremos ao longo deste artigo, a título de exemplo, algumas obras da performer portuguesa Carlota Lagido.

 

Propostas teóricas sobre a interseção da performance feminista autobiográfica e os movimentos feministas

Marvin Carlson (1996/2004) refere uma viragem social na performance artística durante a década de 1970, com uma maior preocupação e envolvimento em temas de cariz social e um consequente afastamento das questões mais estético-formais. Estes novos tipos de performance artística são agrupados, grosso modo, sob a designação de performance de identidade e performance cultural.

No primeiro tipo, Carlson salienta que a temática da identidade foi desde sempre tão central na prática e teoria da performance, que é considerada por muitos como o tema emblemático da arte da performance em geral. Associada com a construção e/ou exploração da identidade pessoal, focava-se, inicialmente, nas preocupações, desejos e até visibilidade dos/das que eram normalmente excluídos/as, dos contextos artísticos instituídos ou dominantes, como o teatro tradicional e a performance moderna-formalista, devido ao género, classe social ou etnia (Carlson, 1996). Neste contexto destacam-se, quer pelo pioneirismo, quer pelo grau de elaboração, as performances artísticas realizadas por mulheres que, mais tarde, justificarão a emergência da designada performance feminista (Carlson, 2004).

A performance cultural trata-se, afinal, de uma expansão da performance da identidade, sempre empenhada em dar voz aos «indivíduos e grupos previamente silenciados», mas agora dirigida menos para «a exploração de expressão da identidade do indivíduo» e mais para o «contexto social e cultural no qual esse individual deve operar» (Idem, 2004: 179). A performance, que começa a ser entendida como um modo de ação cultural e sítio de «renegociação de experiências e significados » (Zarilli, 2007: 109), promove na performance artística o interesse em explorar os modos de subjetivação e em assumir-se como performance de resistência, questionando criticamente e resistindo aos modelos culturais dominantes de comportamento e de constituição dos sujeitos. Uma vez mais, as performances desenvolvidas por mulheres e/ou performances feministas assumem aqui um importante protagonismo (Carlson, 1997; 2004).

A diversidade de posturas feministas, que carateriza a 2ª Vaga do Feminismo (Nogueira, 2001), traz uma nova direção às reivindicações das mulheres, na medida em que, ao criticar a sua posição na família, na sociedade e na esfera pública e privada, os discursos feministas adquirem poderosos argumentos políticos que lhes conferem significativa capacidade interventiva na ordem social. Neste contexto, a máxima avançada por Carol Hanisch (1970), O Pessoal é Político, condensa um forte argumento reivindicativo destes movimentos de libertação das mulheres, rapidamente popularizado. Com o intuito de intervir em todas as áreas onde as mulheres estavam excluídas, exigindo igualdade na educação e no trabalho, o debate contestatário abarca também as relações dentro da esfera privada, defendendo-se o acesso a uma sexualidade autodeterminada e a divisão do trabalho doméstico (Oliveira, 2009).

Joan B. Landes (1998) salienta que, de entre os movimentos contestatários modernos, o feminismo é aquele que mais contribuiu para o entendimento aprofundado dos efeitos históricos, simbólicos e práticos da organização da vida pública e privada, por ter desafiado ousadamente os mitos que dão suporte às convenções de família e de vida pessoal. Ao contrário da ideia então veiculada de que a vida privada constituía para as mulheres uma plataforma de realização e satisfação pessoal, as feministas denunciam a esfera privada como sítio de desigualdade sexual, trabalho não remunerado e fonte de grande descontentamento para as mulheres. Por isso, empenham-se em dar voz pública ao desespero privado das mulheres e a indicar uma saída para o seu isolamento privado, através do ativismo público e denúncia dos problemas que emanam nos e dos múltiplos papéis da mulher enquanto esposa, mãe, companheira sexual, trabalhadora e sujeito político. Por conseguinte, a teoria que acompanha esta nova fase do ativismo feminista elege o problema da subordinação sexual como estando fortemente ligado com a divisão da vida pública e privada.

Após o intenso questionamento em torno das caraterísticas da vida privada nos finais da década de 1960 e durante a de 1970, reaparecem frequentes referências ao privado no discurso público a partir dos anos 90. Desta feita, encontramos críticos e defensores do corpo, da família e das questões do género a reclamarem espaço público, enquanto vários setores do espectro político manifestam preocupação com os temas da privacidade, havendo ainda vozes que, ao mesmo tempo que defendem o individual, advogam também o uso do poder de estado para regular o corpo do indivíduo e para restringir a liberdade pessoal (Landes, 1998). Neste contexto, muitas feministas continuam empenhadas em demonstrar o quanto a linha entre o público e o privado tem sido, e continuará a ser, constantemente renegociada (Benhabib, 1998).

Contudo, o lema O Pessoal é Político tem sofrido várias interpretações e usos, produzindo, desde cedo, «ambiguidades e contradições» (Zimmerman, 1975: 254). Sheila Rowbotham, Lynne Segal e Hilary Wainwright (1980) advertem para os perigos contidos na generalização desta afirmação, por reforçar uma interpretação ameaçadora do lema, já que seja o que for que façamos, essas ações têm significação política. Perante esta possível interpretação de constante policiamento, em que o pessoal é policiado, o lema tem merecido novas leituras e discussões a partir da chamada 3ª Vaga de Feminismo. No geral, tem-se redefinido o pessoal como político, na medida em o pessoal é um direito político, no sentido em que as liberdades individuais e os desejos individuais requerem um empowerment político, pelo que «podes ser político sendo quem tu és!» (Wong, 2003: 296). Contudo, os posicionamentos a este respeito continuam múltiplos, havendo contantes alertas para o facto das escolhas pessoais não quererem implicar, obrigatoriamente, uma ação política. No caso específico da performance autobiográfica, há críticas no sentido de que o pensamento e testemunho pessoais não são suficientes para ter um argumento político (cf. Baumgardner e Richards, 2000), já que «a revelação pública da experiência pessoal não é em si mesma, necessariamente e sempre, um ato político» (Heddon, 2006: 132). Por outro lado, as novas conceções políticas do que é pessoal têm motivado importantes reflexões sobre a emergência das ideologias pós-feministas, como as de Angela McRobbie (2009). As políticas neoliberais, ao veicularem conceitos ilusórios de responsabilidade pessoal, empowerment e escolha pessoal, promovem afinal uma individualização da mulher, reinstalando «hierarquias de género» e «novas formas de poder patriarcal» (Idem, 2009: 47).

Não obstante toda a complexidade do tema, é inegável que esta reflexão sobre a dimensão política do que é pessoal e a distinção público/privado se tem revelado uma lente fundamental a partir da qual todo pensamento contemporâneo é perspetivado, nomeadamente a discussão alargada sobre os modos contemporâneos de subjetivação (cf. Blackman et al., 2008).

A este respeito, a performance artística de vertente autobiográfica, autorreferencial ou centrada nas experiências pessoais d@s artistas revela-se como fonte preferencial de reflexão, prática e teorização para os movimentos feministas. A base deste interesse está nas dimensões sociais e políticas que o material autobiográfico pode assumir (Forte, 1988). Para Catherine Elwes é precisamente a insistência no pessoal e no específico que une muita da performance artística feminista, e também o que lhe permite a reivindicação principal de eficácia social e política, já que «combina autoria ativa e um meio ilusório para afirmar a sua presença irrefutável (um ato de feminismo) num ambiente hostil (patriarcal)» (Elwes, 1985: 162). Interessa, por isso, determo-nos um pouco na evolução histórica deste tipo particular da performance feminista.

 

A origem autobiográfica e política da performance artística feminista

As mulheres estão muito envolvidas na criação de um tipo específico de performance artística a partir da década de 1960, tendo contribuído de forma decisiva para o estabelecimento da arte da performance enquanto atividade artística autónoma na década de 1970 (Carlson, 2004). As fundações mais imediatas desta nova forma de expressão artística encontram-se em abordagens inovadoras nas artes visuais e no movimento da nova dança, onde as mulheres tiveram grande protagonismo, destacando-se artistas como Yvonne Rainer, Carolle Schneemann, Trisha Brown, várias performers associadas com a Judson Dance e outras associadas ao Fluxus, tais como Alison Knowles ou Yoko Ono (Goldberg, 2007).

No entanto, pouca desta performance se dirigia diretamente aos temas sociais ou de género, com exceção de um pequeno grupo de artistas (e.g., Yvonne Rainer, Carolee Schneemann, Yoko Ono), cujos trabalhos iam claramente nesta direção, ainda que enfrentassem considerável resistência por parte dos seus pares. Obras como Cut Piece, de 1964, na qual Yoko Ono se sentava passivamente enquanto pessoas da audiência lhe cortavam as roupas, perspetivavam a violação pessoal e a violência de uma maneira distintamente mais feminista do que aquela revelada pelos artistas da body art homens, com grande destaque na altura. Mas é o movimento feminista no início da década de 1970 que vem forneceu o clima favorável para o florescimento do trabalho performativo feminista, particularmente preocupado com a experiência privada e pública das mulheres5 (Carlson, 2004).

As primeiras performances deste tipo caraterizam-se por comentários pessoais e psicológicos acompanhados por ações físicas específicas e repetitivas associadas com a experiência das mulheres, salientando o peso das atividades não satisfatórias impostas às mulheres. Outras, por sua vez, inspiravam num crescente corpo de pesquisa sobre aspetos místicos e míticos do feminino, relacionando esse material com a experiência (Idem, 2004).

Na Europa, aparecem os primeiros trabalhos de Gina Payne e Marina Abramovic que usam os seus próprios corpos como material artístico em rituais que envolviam dor física, de forma a sensibilizar «uma sociedade anestesiada» ou a denunciarem a «agressão passiva entre os indivíduos» (Goldberg, 2007: 209).

Em The Amazing Decade, Moira Roth (1983) distinguiu 3 principais orientações na performance artística feita por mulheres na década de 1970: 1) performance relacionada com a experiência pessoal das mulheres; 2) a relacionada com o passado coletivo das mulheres; 3) a relacionada com a exploração de estratégias de ativismo feminista específico. Enquanto as duas primeiras situações se relacionam com o ímpeto do movimento das mulheres em usar a arte da performance para compreender melhor a situação das mulheres, em geral, na sociedade e na história, a terceira manifesta claramente a sua necessidade de ação e intervenção política.

Quando a performance ritualizada e ligada aos mitos começou a ser abandonada no início da década de 1980, a autobiografia e as experiências pessoais mantiveram- se muito presentes na performance artística feita por mulheres, sendo considerada a orientação mais típica da performance feminista (Forte, 1988).

Para além da performance entendida claramente como autobiográfica, há que considerar outros tipos de performance auto exploratória, como o caso da performance artística de personagem ou persona, muito utilizada no âmbito da performance feminista. Aqui não interessa diretamente a autobiografia ou experiências de vida-real, mas a exploração, através da performance, de selves alternativos, imaginários ou míticos6 (Carlson, 2004). O trabalho de Eleanor Antin é ilustrativo deste tipo de criações7. Interessada na realidade da natureza humana, nas fronteiras e capacidade transformacional do self, usou principalmente o seu próprio corpo e experiência enquanto matéria-prima (Brunham, 1989).

O self, autoimagem e self social eram preocupações igualmente centrais para o movimento de mulheres emergente neste período e a performance artística constituía um importante laboratório para a desconstrução da sua identidade e sua consciencialização política, servindo, simultaneamente, como espaço de expressão, ativismo e intervenção (Rosenberg, 2009; Forte, 1988; Martha Roth, 1983). Muit@s são @s crític@s e performers que reconheceram o imenso potencial destas manifestações autobiográficas enquanto atos de protesto, resistência, reinvenção, transformação ou sobrevivência (Heddon, 2006). Para Sidonie Smith (1993), por exemplo, as práticas autobiográficas são oportunidades para colocar a resistência em cena, enquanto bell hooks considera a autobiografia um ato inerentemente político, uma vez que as «pessoas oprimidas resistem identificando-se elas próprias como sujeitos, ao definirem a sua realidade, moldarem a sua nova identidade, nomearem a sua história, contarem a sua estória» (1989: 43).

Jeanie K. Forte (1988) defende efusivamente que toda a performance artística se carateriza por uma intenção desconstrutiva, que a acompanha desde os anos iniciais. É nesta lógica que a sua compreensão se tornou difícil, pois pretende-se frustrar a análise crítica e impossibilitar a definição absoluta. Trata-se afinal de uma rebelião contra a comodificação da arte, contra a estrutura e instituições do modernismo e contra a cultura patriarcal dominante. A partir desta ideia, Forte (1988) argumenta que foi a natureza abertamente política que acompanha toda a performance artística realizada por mulheres, que permitiu distinguir a performance feminista como subgénero reconhecível. Na perspetiva da teoria feminista pós-moderna, a performance artística feita por mulheres apresenta-se como inerentemente política (quer o seja abertamente ou não), pois todas estas performances derivam da relação das mulheres com o sistema dominante de repressão, o que as situa dentro de uma crítica feminista. Por conseguinte, é inevitável o seu potencial disruptivo, já que estas mulheres posicionam-se aqui como sujeitos do discurso, subvertendo a conceptualização tradicional de um sujeito homem, único e unificado.

 

Expansão e sofisticação da estratégia de resistência na performance feminista autobiográfica: posicionamentos materialistas, críticos e queer

As performances da resistência, teorizadas por Carlson (2004), estão em articulação tanto com performances de identidade, como com as performances culturais. Contudo, as de resistência inspiraram-se em movimentos artísticos e sociais contestatários da década de 1960, mais radicais e politizados, e em abordagens feministas diferentes das que estiveram mais associadas com as performances de identidade. Uma importante influência foram as estratégias performativas da guerrilha radical e do teatro de rua, havendo mulheres performers a introduzirem estas mesmas estratégias e temáticas nas suas performances artísticas. O teatro de guerrilha feminista aparece em várias demonstrações públicas, mais ou menos organizadas, que mereceram grande publicidade na altura8. Estas, como outras performances de ativismo social emergentes correspondem a essa evolução dentro do movimento feminista em termos do desenvolvimento teórico e discurso político (Rosenberg, 2009).

Sob influência do pensamento materialista que procura expor as operações de poder e opressão existentes na sociedade, as pensadoras e performers feministas interessam-se em questionar, expor e desmantelar os pressupostos e construções sociais, culturais e estéticas que governam os papéis tradicionais de género, encenações do corpo e performances de género, quer no contexto artístico, quer nos contextos do quotidiano, despertando novas discussões em torno da problemática público/privado (Carlson, 2004).

A teoria da subjetividade de Jacques Lacan torna-se igualmente relevante neste período, ao colocar o Homem na posição de Sujeito no sistema de representação ocidental tradicional. A arte visual e as artes do espetáculo tradicionais estão baseadas neste sistema patriarcal que assume o Homem como espetador e a Mulher como o Outro, ou seja, o objeto de contemplação desejosa do Homem (Carlson, 1997). A este propósito, Sue-Ellen Case (1988) salienta que as mulheres não têm os mecanismos culturais de significado que as permitam constituírem-se como sujeitos e não o objeto da performance. Por conseguinte, o palco, sítio objetivado para a realização do Desejo, torna a Mulher que aí se reapresenta numa «espécie de cortesã cultural» (Case, 1988: 120).

Consequentemente, nas duas últimas décadas do século XX, a performance artística feita por mulheres desafia e confronta este sistema de representação, estabelecendo a mulher performer como um sujeito falante, fenómeno que o sistema nega (Forte, 1988; Zimmer, 1995). Neste contexto, a performance física é vista como possibilidade de escapar àquilo que Kristeva (1980) chama de lógica simbólica e linguagem discursiva do pai, em contraponto com a poética semiótica e linguagem física da mãe, logo a utilização do corpo na performance fornece não só uma maneira alternativa de conhecimento, mas uma subversão necessária à ordem simbólica dominante da linguagem (Roth, 1983).

Entretanto, na década de 1990, assistimos a um renovado interesse pela body art na performance artística, tal como tinha acontecido nos anos 70, refletindo, contudo, preocupações e temáticas diferentes, em que se explora a relação entre o corpo em sofrimento e a construção da identidade (Carlson, 2004). De entre estas performances destaca-se a performer ORLAN, cujos projetos envolvendo cirurgias plásticas continuadas, não sendo expressões de dor, pretendem antes constituírem- se como comentários sobre a formação social dos corpos das mulheres, das suas imagens sociais e culturais, especialmente as prostitutas e as santas (Clarke, 1999).

Apesar destas obras se terem revelado particularmente úteis para as reflexões feministas contemporâneas, algumas das primeiras reações feministas marxistas à body art foram muito negativas, acusando estes trabalhos de um essencialismo naïve e reacionário, por participarem da dinâmica falocêntrica do fetichismo associado ao corpo da mulher (cf. Amelia Jones, 1998). Paralelamente, coloca-se o problema de saber como utilizar a representação e a performance artística nesta perspetiva feminista, uma vez que ambas estão profundamente envolvidas nos pressupostos culturais que se querem desafiar. O corpo da mulher, profundamente inscrito como objeto no sistema representacional, e o espaço da performance, impregnado pelas políticas de género, faz com que as mulheres respondam sempre «perante os padrões de exibição aceitável definidos pelo homem», reinscrevendo sempre as suas performances nesse sistema (Jill Dolan, 1989: 28).

Emergindo da Nova Dança Portuguesa9, Carlota Lagido propõe uma interessante reflexão a propósito da posição da Mulher neste sistema representacional, num dos seus primeiros trabalhos de performance artística a solo: notforgetnotforgive (1999). Nesta obra, estreada na casa de banho dos homens no Teatro Carlos Alberto (Porto), a performer canta Boys in the backroom, originalmente interpretada por Marlene Dietrich, enquanto um papagaio artificial que tem na mão a interrompe, repetindo e distorcendo a mesma canção. Guarda-roupa e penteado são consonantes com a intenção de recrear uma memória cinemática de uma mulher situada num determinado período histórico (algures entre 1930 e 1960). A letra da canção, a persona criada e o contexto espacial da performance conferem um posicionamento político contra um mundo crescentemente amnésico e a figura moralista do perdão, manifestando a recusa em esquecer e perdoar, e concentrando esta questão na Mulher, sua imagem e representação nas artes e na sociedade. As referências autobiográficas são subtis, mas encontram-se, em parte, no seu longo percurso pela dança. Como mostra João Manuel Oliveira (2011a), a fantasmagoria a que Lagido recorre corresponde a uma estratégia de invocação da ideia da femme fatale, aqui repetida distorcidamente, mantendo a performer uma relação de aliança com essa figura, mas não de identidade, por via da performatividade.

Este dilema relativo à representação da Mulher tem desencadeado uma variedade de respostas performativas e teóricas: a performance, particularmente a pós-moderna, concebida como representação sem reprodução, procura romper a tentativa totalizante do olhar e as convenções da perceção, permitindo um panorama representacional mais diversificado e inclusivo (Dolan, 1989); o feminismo pós-estruturalista recorre à descentração pós-moderna do sujeito para encorajar as performers e espectadores a pensarem criticamente sobre o aparato tradicional da representação, incluindo a relação particular sujeito/objeto (Idem, 1989; Phelan, 1993).

Neste contexto, o trabalho de Judith Butler (1988; 1990; 1993) tornou-se particularmente influenciador, ao perspetivar o género não como um atributo social ou cultural, mas como categoria construída de forma performativa. Esta caraterística de performatividade que o género apresenta remete para um fazer, que não consiste em atos ou acontecimentos singulares, mas numa produção ritualizada, reiterada e controlada por um conjunto de constrangimentos sociais (e.g., proibição, tabu, ostracismo ou até morte). Apesar de parecer não haver aqui lugar para desafiar ou alterar as categorias de género fornecidas pela sociedade, uma vez que não dependem da iniciativa ou escolha do sujeito prévia à performance da identidade, há uma possibilidade, e até uma tendência, de alteração e modificação neste processo de repetição (i.e., reiteração, citação) das performances de género (Oliveira, 2011b). Para isso, Butler recorre ao conceito de citação de Derrida (2001/1978) e à ideia de deslize na repetição, pois nenhuma citação consegue ser repetida com total precisão a partir do original ausente, encontrando-se aí, portanto, um espaço para inovação (cf. Rayner, 2008).

Butler inspira as estratégias e operações da performance de resistência, já que a chave para resistir passa a ser entendida como tomar as ferramentas que a cultura oferece e empregá-las numa outra direção, confiando na instabilidade da repetição. Não evitando as representações tradicionais, altamente codificadas, estas performances procuraram precisamente este tipo de material e sujeitam-no a vários tipos de citação irónica, numa espécie de dupla-codificação política (Carlson, 2004).

Contudo, as performances de mascarada10, que recorrem ao mimicry11 ou à citação e subversão irónicas, correm sempre o perigo enunciado por Derrida (2001) a propósito das operações desconstrutivas, que é o de simplesmente reinscrever, reforçar ou reificar estas mesmas estruturas que pretende desconstruir. Trata-se de um problema comum em muitas das performances políticas pós-modernas e contemporâneas (Auslander, 1994; Jon Erickson, 1990).

Uma outra forma de resistir à receção convencional da performance surge na estratégia mais radical de colocar a mulher na posição de sujeito de desejo da performance em contraste com o papel passivo tradicionalmente atribuído às mulheres como objeto do desejo dos homens» (Elwes, 1985). A este respeito, a performance lésbica tem sido um dos campos mais férteis de experimentação desta estratégica. Case (1989) sugere o sujeito feminino heterossexual permanece aprisionado, na medida em que ainda é percebido na perspetiva do homem. Por isso, a performance da mulher butch dentro e fora do palco, apresenta-se como uma realização camp da teoria da mascarada contra a essencialização dos papéis e narrativas sociais e teatrais12. Teresa de Lauretis (1988), contudo, enfatiza outros problemas na ligação da teoria lésbica e com a performance: 1) a dificuldade de definir uma forma autónoma de sexualidade da mulher e um desejo livre da tradição Platónica; 2) a tendência para identificar um espetador unificado; 3) a tentativa de alterar o enquadramento de visibilidade, daquilo que podemos ver.

Cada uma destas áreas recebeu uma atenção crescente na performance e na teoria feminista durante a década de 1990. O processo de alterar o que pode ser visto, dar visibilidade e voz a fenómenos até agora excluídos (i.e., o desejo da mulher; a subjetividade da mulher) tem sido uma preocupação central de muita da performance feminista e teoria da performance, bem como da teoria e performance lésbica e queer. As performances feministas contemporâneas têm-se aliado às políticas de visibilidade na exploração de estratégias para lidar com estas questões, como o jogo desestabilizador dos papéis sexuais (e.g., Butch/femme) ou a exposição do espetador homem passivo e o retorno do seu olhar. Adotam também um posicionamento crítico e uma consciência pós-moderna pautada pela paródia, subversão e ironia, na revisitação de temas já antes tratados (e.g., corpo, nudez, representações das mulheres, papéis de género, sexualidades) à luz das preocupações, tensões e pressupostos atuais (Carlson, 2004; Rosenberg, 2009).

Em Self (2004), Carlota Lagido consegue um sofisticado cruzamento de muitas destas temáticas e preocupações estético-formais, simultaneamente feministas e artísticas. Envolvendo múltiplos formatos expressivos (e.g., vídeo, canto, dança), esta obra volta a receber influências do cinema, da body art e da performance de persona. Tal como Eleanor Antin ou Cindy Sherman, centradas nos limites e potencial transformacional do self, também Carlota Lagido recorre a várias personae para explorar uma multiplicidade de selves espetrais, no que se subentende ser uma espécie de retrato interno da artista. Aqui, o arco de possibilidades existenciais vai desde figuras estereotipadas a outras de grande singularidade e hibridismo, coabitando personagens de um universo cinemático (e.g., Norma de Sunset Boulevard; the blonde killer) com múltiplos outros personagens ou selves desta mulher. A alternância de imagens videogravadas e presenciais dos corpos com identidades ambíguas faz emergir um complexo jogo entre personae e intérpretes, real e ilusório, ausência e presença, Eu e o Outro, apelando, simultaneamente, à desconstrução dos modos de ver e das políticas de visibilidade. Trata-se ainda de uma reflexão aprofundada do narcisismo como ponto de partida para a exploração pessoal e o entendimento da dinâmica intersubjetiva, caraterística que Amelia Jones enfatiza a propósito da body art feminista (cf. Jones, 1998).

O facto de, nesta obra, as personae serem interpretadas por dois homens (i.e., Miguel Bonneville e Francisco Camacho), remete também para um entendimento butleriano e uma queerização do género, ao evidenciar o seu carácter de performatividade e construção. Nesta recusa do binarismo de género/sexo e subversão dos códigos instituídos de género, a criadora recorre ao cross-dressing para trabalhar o hibridismo e a confusão de fronteiras. Noutros trabalhos, contudo, Carlota Lagido pratica também drag king e outras maneiras subtis de transgenderismo. Self aborda, afinal, uma série de temas recorrentes no seu trabalho e tão pertinentes para os feminismos pós-estruturalistas e queer, como a dissociação/dissipação do eu, do género e do sexo, a decadência, falência ou destruição de referenciais e ícones.

 

Contexto atual da performance feminista autobiográfica

A prática da performance artística baseada no material pessoal e nas experiências vividas pel@s criador@s continua a ser comum, particularmente na performance feita por mulheres. Dee Heddon alega que, desde os finais da década de 1980, muitos destes trabalhos têm sido «mais autorreflexivos na sua re-presentação do Eu», salientando a «performatividade da subjetividade e a construção do self ou múltiplos selves através e dentro da autobiografia» (2006: 135). Recorrem, para isso, a estratégias que permitam usar e criticar simultaneamente conceitos de identidade e experiência, dificultando distinções entre verdade-ficção, personagemperformer ou self-outro, e evitando posicionamentos absolutos, reconhecíveis ou essencialistas, numa linha ténue entre a reificação da experiência real e a sua dissipação (Idem).

Tal como em Self, estas mesmas estratégias e temas evidenciam-se noutra obra mais recente de Lagido, The importance of nothing (2011), que aborda o tema do corpo que permanece e se relaciona com a morte, em permanente esforço, dor e desequilíbrio. Neste caso, o ambiente fantasmático e espectral da multiplicidade de selves continua a estar presente, destacando-se o efeito espiral e hipnótico da obra, recriado por técnicas estroboscópicas de luz e som. A partir da visualização vídeo da destruição de uma árvore e sua reconstrução no palco, vários fantasmas, obsessões e neuroses pessoais são trabalhados numa espécie de duplo movimento de contrários, que perpassa toda a peça e nos arrasta numa onda centrípeta para dentro do universo psíquico da artista. A sua presença física cria, alternadamente, imagens penetrantes de força e vigor, desenhadas por poses em staccato, com imagens inquietantes de fragilidade e abandono, conseguidas através de suas aparições em contraluz, sugerindo a volatilidade dos espectros. Os temas da ausência/presença, desequilíbrio, abismo, ideia de dissipação, queda e fuga constantes aqui tratados, alicerçam-se nas suas experiências de vida, particularmente marcada pelo ambiente misógino da dança e pelo trabalho físico torturante, através do qual procurou, em vão, dominar um corpo ansioso e intenso de mulher.

Contudo, estas «estratégias desestabilizadoras» e a «instabilidade destes selves que nos habitam» não apagam o impacto real das condições materiais que nos rodeiam, pelo que se justifica o interesse político continuado no material autobiográfico, pois torna visível e aumenta a consciencialização desta materialidade da vida (Heddon, 2006: 135). Exemplo deste interesse persistente é a reapropriação da credibilidade política das performances autobiográficas feministas iniciais, a que se tem assistido nos últimos anos (Rosenberg, 2009; Heddon, 2006). Numa análise ao panorama atual da performance artística feita por mulheres na Suécia, Tiina Rosenberg (2007) salienta que há uma ligação entre estas performances e a tradição feminista precedente, devido ao forte elemento autobiográfico e à centralidade temática do corpo. Esta ligação13 manifesta um tipo de solidariedade intergeracional feminista que permite preservar uma memória e legado dialogantes com o presente14, de forma a lidar com questões e conflitos políticos e intelectuais ainda em aberto.

Não obstante algumas vozes no meio artístico afirmarem um acentuado decréscimo deste tipo de criações nos últimos anos, na sua pesquisa de reconhecimento da performance autobiográfica nova-iorquina contemporânea Heddon concluiu que: 1) os espetáculos publicitados a que teve acesso integravam «muitas performances ao vivo baseadas em material autobiográfico»; 2) estas performances eram normalmente apresentadas como sendo «honestas, humorísticas e divertidas»; 3) agora circulam em espaços reservados para produções pouco financiadas, em vez dos espaços reservados para performances experimentais das décadas anteriores (2006: 137). Para esta autora é inevitável, contudo, contextualizar estas performances baseadas em material pessoal numa cultura ocidental mais vasta, «saturada de oportunidades confessionais» fornecidas pelos reality shows televisivos, onde se «incita à revelação pessoal» como «estratégia para assegurar ratings de sucesso» (Idem: 141). Esta comodificação do pessoal pode, de facto, desvirtuar o significado do lema – O Pessoal é Político – tornando a performance autobiográfica pouco eficaz enquanto instrumento político. Contudo, Heddon (Idem) recorda a performance artística foi formalmente desafiante desde o seu início, integrando o experimentalismo formal nos objetivos políticos do trabalho, pelo que esta poderá continuar a ser a maneira mais eficaz da performance artística autobiográfica se diferenciar desta exploração comercial do pessoal. Por outro lado, a agenda política radicalmente conservadora que se tem instalado em muitos países ocidentais tem justificado o retorno ao pessoal como forma de aumentar a consciencialização e o ativismo. No entanto, perante o panorama atual é difícil detetar e analisar o carácter político de qualquer uso do pessoal na performance, já que essa análise dependerá sempre do conteúdo como da forma, bem como de quem o usa, quem o testemunha, onde e quando (Idem).

De acordo com Tiina Rosenberg (2009) podemos contextualizar o renovado interesse pelo carácter político das performances feministas autobiográficas na revitalização da arte política e nas estratégias estéticas de contracultura mais próximas do quotidiano, emergentes nos finais da década de 1990 e que têm persistido no século XXI. Perante a agressividade das políticas económicas neoliberais de direita, a pretensa guerra contra o terrorismo, as mudanças climatéricas e o aumento globalizado da injustiça, iniquidade e pobreza, a teoria marxista tem sido de novo evocada e reintegrada na teoria crítica, políticas feministas e na performance artística (Idem). Junte-se a esta equação os efeitos diretos da globalização nas condições sociais e políticas das mulheres, que agravam situações de opressão, mas que, paradoxalmente, denunciam e alertam para uma multiplicidade de realidades problemáticas vividas por mulheres nas mais diferentes etnias e culturas (cf. Aston & Case, 2007). Por sua vez, estas alterações têm justificado uma viragem mais solidária na teoria feminista, ou seja, tornou-se mais afetiva e social, com repercussões semelhantes nas performances feministas que, não obstante as continuidades, recorrem a novas abordagens e meios estéticos de expressão (Rosenberg, 2009).

Encontrando suporte teórico nos trabalhos de Sara Ahmed (2004) e Ann Cvetkovich (2003), Rosenberg (2009; 2007) defende que a performance artística feminista contemporânea surge, deste modo, como um meio de politizar e demonstrar a raiva e frustração sentidas por muitas feministas. A ideia de que o especto emocional dos feminismos varia, sobretudo, entre a raiva e dor, sendo a raiva uma reação ao carácter injusto e errado desta dor, vem da teoria de Ahmed (2004), que considera ser esta raiva que alimenta o ativismo feminista e queer. Contudo, este ativismo impede que estes movimentos fiquem pelos sentimentos negativos, na medida em que permite transformá-los num novo poder feminista e queer. Cvetkovich (2003), por seu lado, defende que esta diluição de fronteiras entre sentimentos positivos e negativos leva a novas formações culturais, incluindo novas perspetivas feministas e queer, sem que os participantes destas culturas se sintam vítimas, uma vez que a raiva e o poder são politizadas e transformadas em ação decisiva.

Perante a constatação desta estética feminista ativista entre as jovens performers suecas, Rosenberg (2009) inspira-se nas artistas ativistas feministas, na noção de solidariedade praticada e descolonizada de Mohanty (2003) e no conceito de intelectual orgânico de Antonio Gramsci (1971) para defender a importância de interligar os movimentos sociais, a academia e as artes, nesta forma de ativismo político que mistura autobiografia, body art e questões do quotidiano vivido pelas mulheres.

 

Conclusão

A constância e o carácter simbiótico da relação entre os feminismos e a performance artística evidenciam-se e têm justificado uma análise atenta e continuada das suas implicações artísticas, teóricas e políticas, como nos revelam estudos retrospetivos, como os de Rosenberg (2007; 2009). A performance artística autobiográfica, auto exploratória ou de caraterísticas autorreferenciais desenvolvida por mulheres destaca-se como a mais relevante neste produtivo intercâmbio de reflexões em torno dos modos existentes de subjetivação das mulheres e de contributos para a construção de modos alternativos. Neste contexto, a ferramenta metodológica mais útil da performance artística autobiográfica é a inevitável negociação entre o privado e o público ou o pessoal e o político, exercitando e praticando, sistematicamente, o poderoso lema feminista, O Pessoal é Político. Tami Spry (2003), por exemplo, refere-se à performance autobiográfica como «o lugar de autoridade narrativa» que lhe confere o poder de reclamar e renomear a sua voz e o seu corpo em privado, durante os ensaios, e depois publicamente, nas performances. Isto permite-lhe «dizer o pessoalmente político em público, o que tem sido libertador e torturante, mas sempre de alguma maneira capacitante» (Idem: 169).

As especificidades estético-formais e temáticas da performance artística autobiográfica feita por mulheres e a natureza política da sua relação com os vários feminismos têm entusiasmado algumas teóricas e práticas deste tipo de performance a avançarem com a proposta de um subgénero distinto de performance artística, a performance feminista (i.e., Jeanie, 1988) ou, mais recentemente, com o conceito de estética feminista ativista (i.e., Rosenberg, 2009).

Contudo, o alcance político desta associação parece ser maior ainda do que o seu impacto estético, já que as recentes abordagens pós-estruturalistas e queer têm permitido alargar este debate em torno da subjetivação das mulheres para fora das ou transcendendo as restrições categoriais de género, sexo, cultura e classe, enfatizando a multitude, performatividade e dimensão política dos processos de subjetivação. Por outro lado, se é verdade que a comodificação do pessoal nos media poderá prejudicar ou neutralizar a eficácia política mais profunda da performance artística autobiográfica, é também verdade, como nos lembra Heddon (2006), que a performance artística sempre se caraterizou pela sua intencionalidade em desafiar os e resistir aos sistemas dominantes. Portanto, a natureza e direção política no uso de material pessoal ou autobiográfico nas performances, dependerá sempre desta intencionalidade, bem como de uma série de outras variáveis, como as estratégias estético-formais usadas.

Por todas estas razões, parece-nos fácil de concluir a favor da pertinência de um estudo continuado e aprofundado sobre esta articulação entre abordagens feministas e a prática da performance artística autobiográfica, que tem sido reavivada ultimamente. Igualmente pertinente é aprofundar este mesmo estudo em relação ao nosso país. O presente artigo pretende contribuir nesse sentido e desafiar outr@s autor@s a explorarem e enriquecerem estas reflexões.

 

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Artigo recebido em 22 de outubro de 2012 e aceite para publicação em 20 de janeiro de 2013.

 

Notas

*1Desenvolve estudos doutorais em Psicologia Social, na Universidade do Minho, explorando o tema da performatividade de género e modos contemporâneos de subjetivação, junto de criadores/as de performances artísticas autobiográficas. E-mail: armando.f.p@gmail.com

*2É investigador em pós-doutoramento no Centro de Psicologia da Universidade do Porto. E-mail: joao.m.oliveira@gmail.com

1Todas as citações foram traduzidas pelos autores.

2O projeto «Once More with Feeling», surge na sequência de um convite formulado à Oriana Fox pela «Women’s Art Library» e a «Feminist Review», e foi apresentado na Tate Modern em 2009. Propunha-se apresentar de novo uma série de performances feministas das décadas de 1960 a 1990, reinterpretadas por artistas contemporâneas (Fox, 2010).

3O projeto «RE.ACT.FEMINISM: a performing archive» dedica-se, desde 2008, à investigação, arquivo e exposição a performance artística feminista, queer e crítica de género, desenvolvida desde década de 1960. É um projeto itinerante que percorre até 2013 seis países europeus, organizando exposições dos trabalhos artísticos, oficinais e debates temáticos, bem como colaborações com as academias de arte e universidades locais (reactfeminism.org , 2012).

4Kaplan (1992) identifica 3 vagas no movimento feminista: a 1ª situa-se em meados do século XIX e preocupou-se, sobretudo, em reivindicar a emancipação e os direitos de cidadania das mulheres; a 2ª situa-se entre as décadas de 1960 e 1980, caraterizando-se por uma pluralidade de movimentos feministas em torno da ideia comum central da opressão feminina, tanto na esfera pública quanto privada; a 3ª vaga corresponde ao período actual, ainda em desenvolvimento, integrando várias influências, perspectivas e epistemologias feministas (e.g., críticas, construcionistas sociais, queer, pós-estruturalistas), onde se destaca a preocupação comum com as múltiplas formas de discriminação e opressão a que as mulheres estão sujeitas, procurando combatê-las através do debate académico intenso, a construção de conhecimento e o activismo (cf. Nogueira, 2001; Oliveira, 2009).

5Neste sentido, o trabalho desenvolvido no âmbito dos Programas de Feminist Art nas escolas da Carolina do Sul (e.g., Judy Chicago, Faith Wilding e Suzanne Lacy) foi inaugural para uma definição clara da prática e teoria da performance artística criada por mulheres, inicialmente sob o signo teórico-político do feminismo cultural (Carlson, 2004).

6De salientar, contudo, que estas personae não são personagens no sentido teatral tradicional, ou seja, não se referem a papéis-personagens distanciados de quem os interpreta ou escritos e dirigidos por outrem (Carlson, 2004).

7Não obstante ter as suas raízes na body art, dominada por artistas homens no início da década de 1970, o seu trabalho revelar-se distintamente feminista na sua orientação e nas preocupações.

8São disso exemplo as intervenções das WITCH – Women’s International Terrorist Conspiracy from Hell ou as das New York Guerrilla Girls (Carlson, 2004).

9Nova Dança Portuguesa é um movimento artístico que surge no final dos anos de 1980 em Portugal, ligado à dança contemporânea (cf. Maria José Fazenda, 2007).

10No seu artigo Film and the masquerade, Mary Ann Doane (1982) desenvolve a teoria da mascarada, a qual sugere que a mulher performer no cinema poderia subverter papéis e máscaras tradicionais se ela pudesse «ostentar a sua feminilidade, produzir-se a ela mesma como um excesso de feminilidade – pôr em evidência a mascarada» (1982: 81).

11Elin Diamond (1997) usa o termo mimicry, avançado por Luce Irigaray (1985), para caraterizar estas formas variadas de usar a ironia na performance artística. Luce Irigaray (1985), que vê na condenação da mimese de Platão uma tentativa de controlar a proliferação de alternativas a uma Verdade patriarcal estável e monolítica. Em vez da simples cópia implícita na mimese, Irigaray propõe uma múltipla e excessiva mimicry que minimize, em vez de reforçar, a reivindicação absolutista da Verdade patriarcal. As mulheres, diz ela, devem jogar com a mimese, devem deliberadamente assumir esse papel do feminino, o que significa já converter uma forma de subordinação numa afirmação e, assim, começar a frustrar essa subordinação.

12Contudo, outras teóricas (e.g., Dolan, 1988; Davy 1986) têm questionado a associação que Case faz das lésbicas com a performance camp gay. Davy demonstra que as práticas e os discursos homoeróticos dos homens têm apoiado, em vez de subvertido, as conceções hegemónicas da masculinidade, reinscrevendo-se dentro da mesma estrutura patriarcal que parecem querer contrariar. Contudo, admite a pertinência das ferramentas usadas na performance camp (i.e., artifício, sagacidade, ironia, exagero) a performance lésbica, já que desconstrói o conceito mulher e «desafia a sexualidade masculina como a norma universal», subvertendo «as ideologias e as relações sociais de género na vida quotidiana» (Davy, 2007: 244).

13Que muitas vezes tem justificado a revisitação de obras emblemáticas de performances artísticas feministas por parte de artistas mais recentes (Rosenberg, 2009).

14Preocupação esta já precocemente formulada por Jill Dolan no primeiro editorial de Women & Performance, quando apela a que «o legado da criatividade feminina não se perca outra vez» (1983: 3).

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