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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  no.26 Vila Franca de Xira  2012

 

Oliveira, Alexandra (2011), Andar na Vida: Prostituição de Rua e Reacção Social, Coimbra, Almedina, 272 páginas.

 

Fernando Bessa Ribeiro

Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e Centro de Investigação em Ciências Sociais – Universidade do Minho

 

Psicóloga de formação, Alexandra Oliveira leva mais de dez anos de trabalho nas ruas do Porto, observando e sobretudo participando nos quotidianos de vida das mulheres, homens e transgéneros que vivem do comércio do sexo. Este envolvimento exprime uma orientação metodológica pela etnografia, certamente em confronto com as abordagens mais mainstream da psicologia. Ainda que não recuse outros métodos e técnicas de investigação, cabe à observação participante o lugar central no seu trabalho de campo.

Logo a abrir o seu livro A. Oliveira explicita o que pretende: «contrariar preconceitos e estereótipos dando a conhecer o mundo da prostituição de rua e dos actores que o habitam, em particular das mulheres prostitutas, mas também de transexuais, [fazendo um pouco mais à frente a defesa] do envolvimento e comprometimento de muitos dos seus investigadores quando colocam o seu saber ao serviço da sociedade» (p. 7). Por outras palavras, A. Oliveira tenta combinar o proposto por Bourdieu em «Um saber comprometido» [Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, ano 3 (35), p. 3, 2002, também citado no seu livro]: o scholarship com o commitment, isto é, um saber engajado, socialmente comprometido, que rompe com a separação entre o conhecimento científico e a intervenção no mundo exterior à academia.

Ao longo do livro quem o lê é confrontado/a com elementos etnográficos e argumentos que nos permitem conhecer, muito para além das fachadas pessoais e dos preconceitos, mulheres e transgéneros no comércio do sexo. Para as trazer até nós, a autora viveu, entre Outubro de 2002 e Novembro de 2007, nas ruas, nas pensões e nas casas das mulheres observadas, descrevendo-nos com minúcia os terrenos de acção, os problemas, os medos, os desejos, os trajectos e os seus projectos de vida. Foi tão bem sucedida neste processo de incorporação no meio social observado que chegou ao ponto de ser tomada como mais uma «mulher da vida»: «tive novamente a evidência de que, para algumas pessoas, nomeadamente para alguns homens, eu tenho o rótulo de puta naquela zona. A maneira como os homens olham para mim leva-me a pensar isso. A forma como o empregado da farmácia lida comigo também: com extrema simpatia, tentando o contacto ocular, emitindo olhares galantes, fazendo afirmações intencionalmente agradáveis e mesmo procurando afinidades» (diário de campo, p. 219).

Esta opção metodológica, trabalhosa, desgastante, até perigosa – veja-se a agressão que sofreu com um saco de óleo queimado arremessado por dois indivíduos circulando de moto (p. 232) –, permite ao leitor um olhar por dentro deste complexo e multifacetado campo social. Conhecedora e praticante experiente deste método, cujos resultados foram vertidos para as páginas do livro – tanto os testemunhos como os registos no diário de campo denunciam a sua etnografia de rua e de acção, oferecendo-nos estes algumas das mais estimulantes passagens do seu texto –, esta opção facilitou a aproximação àquilo que Bourdieu [«Compreende » in La misère du monde, 1993, pp. 1388-1447], na esteira de Weber [Economía y sociedad: esbozo de sociología comprensiva, 1993 (1922)], nos propõe: «l’oubli de soi», isto é, proceder ao deslocamento do nosso olhar de forma a colocarmo-nos, em pensamento, no lugar dos outros observados.

Olhando mais de perto o livro, este começa por uma longa e bem fundamentada introdução, onde discute o objecto, os objectivos e o método, à qual se seguem quatro capítulos: (i) o mundo social da prostituição; (ii) o mundo familiar da prostituta; (iii) ser-se prostituta; (iv) reacção social: estigma, exclusão, violências; encerra com uma proposta de acção, a que deu o título «Da compreensão à intervenção». Ao longo de quase três centenas de páginas, A. Oliveira descreve- -nos os contextos de acção, as dinâmicas da prostituição de rua, os quotidianos de trabalho; fala-nos dos clientes, mostrando que, ao contrário do comummente aceite pelo senso comum (e não só), as relações entre estes e as mulheres são intensas e multifacetadas, não se circunscrevendo ao acto sexual, podendo envolver também amizade, afecto e até amor, aliás na esteira do por nós observado [M. Ribeiro et al, Vidas na raia: Prostituição feminina em regiões de fronteira, 2007]; ocupa- -se com o campo doméstico das mulheres observadas, mostrando-nos como estamos perante pessoas comuns da classe popular, com os seus problemas, dificuldades, conflitos, sonhos e projectos, desconstruindo a tese velha e gasta da prostituta atada a uma vida familiar desestruturada, marcada por uma relação de opressão por parte de um proxeneta travestido de companheiro, cujo único interesse é tirar dela proveito económico e sexual; analisa os trajectos de vida, esquadrinhando as razões que levaram as mulheres e os transgéneros inquiridos a entrar, permanecer e sair da prostituição; uma preocupação muito nítida para as questões que se prendem com o estigma, as exclusões e as múltiplas violências que atingem estas mulheres e, com redobrada intensidade, as mulheres masculinas, havendo aqui que destacar as que são produzidas pelas instituições estatais e seus agentes; contesta as políticas de imigração e de luta contra o tráfico e a exploração sexual que, aparentemente escudadas em boas intenções, mais não fazem do que aprofundar a marginalização, a estigmatização e a violência sobre quem vive do trabalho sexual.

O livro fecha com uma demorada reflexão sobre a intervenção política e social. Em linha com as posições assumidas em estudos recentes [v.g., M.E. Handman e J. Mossuz-Lavau (dir), La prostitution à Paris, 2005 e M. Ribeiro et al, Vidas na raia: Prostituição feminina em regiões de fronteira, 2007], A. Oliveira assume uma posição contrária às teses abolicionistas e proibicionistas, tecendo diversas críticas, das quais destaco a que se prende com a questão da vitimização das mulheres: […] «os empresários da moral, os defensores das teses abolicionistas, aparecem como causadores daquilo contra o qual dizem lutar, pois ao defenderem a perspectiva vitimizante das pessoas que se prostituem estão a prolongar essa imagem negativa que há-de contribuir para que quem faz trabalho sexual não se sinta bem consigo mesmo e se sinta descapacitada» (p. 252). Bem conhecida e explicitada de modo categórico em trabalhos anteriores, mormente em As vendedoras de ilusões: estudo sobre prostituição, alterne e striptease, 2004, e em tomadas de posição públicas [entre outras, «Por uma nova política para o trabalho sexual», Público, ano XVIII, n.º 6194, 47 de 15 de Março de 2007, também por mim subscrita], este ponto de vista denuncia que A. Oliveira não se escuda numa confortável, ainda que aparente e sempre inexistente, neutralidade teórica e política. Não se trata aqui de obliterar as violências, opressões e situações de exclusão e de estigmatização que atingem, às vezes com especial intensidade, todas as pessoas que se dedicam à venda de serviços sexuais mas tão-somente de responder, na esteira do proposto por Handman e Mossuz-Lavau [La prostitution à Paris, p. 397, 2005] à questão acerca do enquadramento, nomeadamente político-legal e social, da prostituição. Comprometida com o alargamento da liberdade e da ampliação das capacidades de agência das mulheres, transgéneros e homens que vivem do trabalho sexual, A. Oliveira defende a livre determinação dos indivíduos na definição dos modos de vida e de trabalho, sem ignorar que os constrangimentos económicos e outros, como acontece com a escolha de qualquer outra profissão, estão presentes e não podem ser descartados. Trata-se aqui de fazer a defesa radical do direito dos seres humanos ao self-ownership sobre o seu corpo, incluindo o que envolve a sexualidade, conforme nos é proposto por filósofos libertários como van Parijs [v. C. Arnsperger e P. van Parijs, Ética económica e social, 2003] e Vallentyne e Steiner [Left libertarianism and its critics: the contemporary debate, 2000].

Em vez dos discursos ora regenerador, ora censurador, uns e outros profundamente moralizantes, o livro de A. Oliveira é atravessado pela crítica às posições que vêem na prostituição uma forma severa de dominação masculina e uma ausência praticamente total de capacidade de agência por parte das mulheres. Mais, em linha com o defendido por Gil [«Sexualité et prostitution», in M. E. Handman e J. Mossuz-Lavau (dir.), La prostitution à Paris, p. 345-376, 2005], quem lê este livro é confrontado/a com a tese da «venda do corpo», tão cara aos e às abolicionistas. Não só esta é desmentida pelas práticas fixadas no seu livro, como percebemos também que estamos perante uma forma insidiosa de desclassificação dos indivíduos que vivem do comércio do sexo, ao desapossá-los da sua integridade física e do seu direito à utilização social do corpo. Deste modo, o debate sobre a prostituição transborda os campos estritos do género e da moral, abrindo-o nomeadamente ao campo do trabalho, como faz Bourdieu em A Dominação Masculina, 1999.

Em suma, este livro proporciona a quem o lê uma análise compreensiva da prostituição de rua na cidade do Porto e dos actores sociais nela envolvida, em especial no que se relaciona com as mulheres que oferecem serviços sexuais a homens. Respondendo cabalmente aos objectivos fixados, é um livro que vai muito para além das fronteiras da academia, das suas e dos seus profissionais que trabalham sobre este campo social, interessando a todos os cidadãos e a todas as cidadãs, sobretudo a quem, inquieta/o com as violências, injustiças e sofrimento que atingem muitas das mulheres, homens e transgéneros que vivem do comércio do sexo, procura outras respostas que possam contribuir para a construção de uma agenda política e social emancipatória equipada também duma política inclusiva para o trabalho sexual e para os actores sociais nele envolvidos.

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