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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.22 Vila Franca de Xira  2010

 

Introdução

Teresa Joaquim, Ana Isabel Crespo e Isabel Cruz

Universidade Aberta / CEMRI

 

Talvez que a concepção deste dossier temático «HABITAR» partisse da busca de um novo lugar ou de outro lugar, de uma interrogação, de uma perplexidade perante (talvez) a inovação sem repetição, ao contrário do poeta Manuel de Barros, «repetir, repetir, até ficar diferente» – é o título do texto de Suely Kofes –, que aparecem em certos discursos em torno da igualdade nas suas dicotomias funcionando de forma estanque (e por vezes inquestionadas) como público / privado, vida familiar / vida profissional, como se estas dicotomias criassem espaços enclausurantes da vida e do pensamento, talvez se buscasse o repensar deste espartilhar que percorre mundos e espaços – os nossos e doutros – num quotidiano em que os relatórios das agências internacionais marcam / enquadram essas outras, as suas vidas, pela ausência de condições básicas (falta de água, de comida, de abrigo).

Partiu-se, pois, para o desenho deste dossier a partir desta premissa: «Acreditar no mundo é suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapam ao controle ou fazem nascer novos espaços-tempos» (Deleuze, Pourparlers: 239).

Pensar um habitar que não deixa ninguém sem terra, nem excluído.

Um habitar que não se isola, nem isola, antes age como estrangeiro, encontrando neste o próximo e o longínquo. Encontros heterogéneos nos quais acolhimento, hospitalidade, conflito possam ser pensados. «Casa são localizações», afirma bell hooks, ou décadas antes, a afirmação de «um quarto que seja seu», de Virgínia Woolf; demanda de um espaço físico que até hoje não sabemos avaliar nos seus efeitos culturais e simbólicos.

Este dossier – este espaço – foi pensado a partir de um centro, a noção de habitar que define os humanos, como um momento de encontro e de diferendo a partir de abordagens diversas e sabendo que essa noção, hoje, só pode ser pensada de forma descentrada.

Habitar marcado por ausências que se dizem diferentemente no Norte e no Sul: não lugares enquanto privados das condições básicas de existência; não lugares enquanto lugares de passagem, de trânsito, de não pertença, em que de uma forma ou de outra se tenta pensar o laço, a marca, o traço ténue de alguém, de algo. Como diz Marc Augé: «vemos pois que pelo termo de «não lugar» entendemos designar duas realidades complementares mas distintas: espaços constituídos em relação a certos fins (transporte, trânsito, comércio, lazer) a relação que os indivíduos estabelecem com esses espaços» (p. 99), e mais adiante: «na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os não lugares confundem-se, interpenetram-se» (p. 112).

Habitar no quotidiano, na hospitalidade, nos lugares inóspitos, nas casas para se fazer na repetição ou simplesmente no espaço íntimo que não separa o fora do dentro mas os reúne como os sem abrigo em que «o corpo torna-se então o receptáculo último do mundo da intimidade quando estes homens trazem/carregam neles próprios o conjunto dos seus objectos, preciosos porque pessoais (…). Nestas condições, somente o envelope corporal, a última reserva territorial, pertence como próprio (en propre) à pessoa» (p. 27).

Habitar a teoria tornando-a aberta, atravessada por correntes e desejos de ordem diversa ou não se inscreverão as teorias feministas nessa questão, desejo, projecto de Donna Haraway de reformular fronteiras e, neste caso, entre saberes: em simultâneo, lançar pontes, articular espaços e, deste modo, deslocar fronteiras (modos de conhecer do que se pode conhecer, do que se exclui). Perplexidade do habitar em trânsito – no seu próprio corpo enquanto abrigo, domínio, domicílio, casa, em lugares e não lugares (e nesses, à semelhança dos sem abrigo, refazer um espaço privado, que seja seu, como «conservar uma abertura às trocas sociais, é construir a último defesa/ muralha do habitar»).

E nessa última fronteira aparece como possibilidade sempre dada, oferta e sempre a repensar, nas pertenças que aí se estabeleçam, a questão política, a comunidade como terreno básico do «ser em comum»; habitar como nómada à semelhança de Teresa d'Ávila, como abertura a outros mundos, como plasticidade e passagem a outros mundos.

Este dossier funciona como um ensaio no sentido de tentativa de pensar as questões do espaço íntimo, pessoal, teórico. De abrir as Ciências Sociais a esse lugar, a esse espaço, à semelhança das práticas teóricas que marcaram a área dos Estudos sobre as Mulheres na sua rede descentrada, na sua viagem dos conceitos que em novos contextos produzem outras figuras que irão criar outras paisagens teóricas de nomadismo, de mestiça/gem. Pensar o habitar enquanto construtor de identidade nas diversas identificações que vão acontecendo e, nesse acontecer, contribuem para a formulação de «políticas de identidade» que, retomando a citação de Gilles Deleuze, suscitem acontecimentos e (logo) «acreditam no mundo».

Como afirma Ph Bonnin:

Temos hoje de compreender como é que, na provável viragem duma era, as nossas sociedades produzem e especificam os seus lugares, criam novos e reinterpretam os que herdam, os agenceiam e os distribuem em configurações significantes, dão-lhes forma de uso e estética arquitectural, a todas as escalas a que se exerce a prática social. Como é que elas ordenam a actores especificados como as conceberem e as realizarem, como as usarem e as ocuparem, como as habitarem e as saborearem. Entre outros objectos, a habitação, o bairro, a aldeia, os subúrbios ou as cidades reenviam-nos incessantemente questões que tinham sido julgadas resolvidas cedo demais: as da sua própria identidade, da sua forma, da sua estrutura, do seu funcionamento prático, do seu uso simbólico, da sua poética, da sua estética.

Em particular, a rede descentrada criada a partir da perspectiva analítica de género que obrigou a reelaborar saberes (no seu encontro e conflito com outros conceitos) e a redefinir quotidianos e modos de vida. Ensaio e tentativa também de desejar um pouco mais uma aliança com outras áreas (inter) disciplinares, ou somente na articulação com outras abordagens do espaço e da elaboração de espaços, por exemplo na arquitectura, no urbanismo e no que isso implica de «pensar a cidade» e o (não) acesso de cada um/a: a presença e a palavra, sem as quais a comunidade política não existe.

Este dossier inicia-se com o texto de Sassia Sasken que, no seu texto Roaming thoughts about making and experiencing cityness fala desse «fazer e experimentar a cityness» e, com esta noção, pretende reelaborar e sugerir outras possibilidades de pensar a cidade, já que há «modos de urbanidade que não encaixam na definição dada pelo Ocidente». E nesta tentativa de repensar a cidade, e também neste dossier, é frequente a afirmação / ou dar visibilidade a esta perspectiva em que «os excluídos também fazem parte da história» que se prende, a nível das teorias, com a noção de interseccionalidade, que é tematizada no texto de João Oliveira Os feminismos e os espaços hifenizados – a localização e interseccionalidade dos saberes feministas como outra dimensão do habitar.

O texto de Fernando Belo, «É em comum que habitamos», a partir da obra filosófica de Martin Heidegger – «a maneira como nós, os humanos, somos na terra é a habitação», em que habitar se faz nas aprendizagens e, como nelas, «se altera o sujeito», deslocando, desfazendo assim a oposição entre sujeito e objecto, na afecção constante (mais próxima de Deleuze) em que, de certo modo, «o amante se torna na coisa amada (e vice-versa)». Estas aprendizagens que tornam algo em alguém são feitas através de doação, de modos diversos em experiências várias, em que ao dar se retira (o que dá) para que essa doação possa ser fecunda. Do mesmo modo que há essa busca de aprendizagens e, nelas se altera o sujeito, como no repensar a amizade, os encontros, no texto de Betlem Cuesta Cremades y Àngela Lorena Fuster Peiró «Habitar la amistad, resistir à la precaridad». Em que e a partir de precariedades diversas, estas marcam as formas de amizade (os locais, as distâncias, o próprio tempo), tornando-as frágeis: amigas en tiempos precarios.

Para que esse habitar, ou esse «é em comum que habitamos», seja possível, passa-se pela necessidade da justa distância, política, pessoal, como no texto de Suely Kofes, «manter a distancia na proximidade» e, na relação entre criadas e patroas, como separar esse espaço habitado em simultâneo de forma diferente, o modo como os corpos deslizam nesse espaço e na sua possível ausência, por parte das criadas, uma presença, se possível invisível, e ao mesmo tempo como avaliar essas relações em que as empregadas / criadas nomeiam a «amizade» das patroas e estas nunca nomeiam esse modo de ver as criadas, porque, aqui, a precariedade é marcada de modo aberto pela classe social, pela subalternidade e por uma ordem simbólica e politica que dificulta ou antes impede a reciprocidade, talvez porque «estas mãos para todo o trabalho» são marcadas pela escravidão: «intercessão de classes sociais diferentes na intimidade das relações familiares».

Neste dossier há também o questionar do ponto de vista teórico da leitura unívoca e homogénea da categoria mulheres, mesmo se não podemos esquecer que foram as teorias críticas feministas que se inscreverem nessa leitura/luta emancipatória em que precisamente «os excluídos também fazem parte da história». Há esse desejo de modo claro no texto «Habitar a amizade» na resistência à precariedade e como nele há um redesenhar dos espaços e das relações.

Podemos ainda referir que há outras linhas de pesquisa que atravessam estes textos nos seus enquadramentos e objectos diferenciados, a saber: a noção de corpo que é abordada no texto de Patrícia Miranda sobre o jogo de apresentação do doing/undoing gender intitulado Habitar um corpo sexualizado: identidades de género construídas numa modernidade ambígua; no texto de Letícia Lima sobre a transformação do corpo a partir do consumo-objecto trabalho a partir do filme «confessions of a shopaholic» (pode-se dizer que se trabalha também a partir de um não lugar ou a sua marca está na vitrine) e, no texto de Shahd Wadi «a explosão dos úteros: entre o patriarcal e o colonial», a marca no corpo de torturas e das cicatrizes e como estas marcas produzem um outro lugar sobre a noção de honra, clivando-o e dando-lhe uma outra leitura, a da resistência, e de um corpo que existe também por si próprio e que, deste modo transforma «pedaços de corpo» em «estilhaços de resistência».

Há nestes textos a marca desta citação de Michel Foucault: «o pensamento é a liberdade em relação ao que fazemos, é o movimento pelo qual nos descolamos do que fazemos e o constituímos como objecto e reflectimos sobre ele como um problema» (in Suely Kofes neste dossier) ou no texto sobre «habitar a amizade»: «Só quando o desejo de ser e aparecer livres nos faz entender que há outras narrativas ainda que não articuladas sobre o devir das mulheres, nos damos conta como sujeitos com força de construir espaços para que estas relações tenham lugar no mundo».

Haveria outros múltiplos espaços que poderiam ter integrado este dossier mas, na sua proposta, havia o desejo que ele nos obrigasse, também, a repensar o mundo em que vivemos e os mundos que, ao longo dos séculos, tiveram a marca de mãos de mulheres. Como poder habitar as cidades globais não perdendo essas «mãos inteligentes» (Hatherly) que, hoje, estão em trânsito para outros espaços de forma incerta e precária, em espaços ainda interditos de sofrimento e resistência e, certamente, de alegria.

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