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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.20 Vila Franca de Xira  2009

 

Empatia radical @ MySpace.

A construção de uma autoficção política

Cristiana Pena

CEMRI, Universidade Aberta

 

 

Este é apenas um relato ficcionado duma viagem de três anos na rede social MySpace.

Tomo a liberdade de não utilizar uma linguagem uniforme ou consequente porque acredito no texto como uma aventura que se deve percorrer com prazer. O rigor fica para depois, agora é o hipertexto, a elipse, a dispersão e intertextualidade que me importam.

Em 2006, aderi ao MySpace por curiosidade mas com desconfiança, ou seja, aquela desconfiança feminista queer que é necessário possuir para retirar o maior partido duma ferramenta de comunicação criada para alimentar o sistema farmacopornográfico, tão bem descrito por Beatriz Preciado (2008).

Apercebi-me, no entanto, de que esta rede social, que serve de plataforma para a indústria musical/cultural heterossexual se expandir, poderia afinal ser uma excelente via para integrar uma sub-rede trans(g)local de feministas-lésbicas-queer que <não encontro/sinto> na vida material que habito com o meu corpo, a cidade de Lisboa.

<Amputada, mutilada, isolada pela ausência d@s seres radicalmente queer que me fazem acreditar na vida como possibilidade de viver sem um ponto de origem… um espaço onde se atravessam as fronteiras das identidades prescritas pelo regime heterossexista normalizado assimetricamente>.

Descobri que o MySpace é mais uma das tecnologias de género, parte dos dispositivos sexopolíticos (Preciado, 2003), que pode ser reapropriada e subvertida como espaço de resistência à normalização dos géneros.

Rapidamente, a minha curiosidade <transformou-se em necessidade>.

<… necessidade quotidiana de querer conhecer mais gente queer mais música, mais feministas, mais activistas queer… subitamente, estava embrenhada numa rede de afectos e reflexos, de projectos artísticos, políticos, sociais e académicos>.

O meu ciberactivismo começava ali e mais uma fase da minha vida também, codificada mas pronta a conectar-se com outr@s seres.

Finalmente, podia experienciar a minha autoficção política e a minha pertença a uma comunidade imaginada de avatares e perfis de zeros e uns. Se anteriormente lésbicas e feministas resistiram editando fanzines e criando grupos de autoconsciencialização, agora é na internet que essa resistência pode ser exercida e experienciada em tempo real e translocalmente.

As lésbicas, queers, transgéneros e gays compreenderam a potencialidade da tecnologia para a criação de uma rede virtual que permitisse reinventar formas de acção pública. Representações e discursos subversivos, paródicos e alternativos podiam agora ser disseminados em grande escala.

 

Login

utilizador@espectador@protagonist@

O MySpace aparece assim como um espaço imaginário de construção e desconstrução do que penso ser, através do contacto com @ “Outro”. A tal <empatia radical1> mencionada por Suzanne Lacy.

discovering the Other to discover oneself…

<o “Outro” que também sou. o reencontro na ausência do corpo… o meu corpo são os dedos que teclam, apagam, copiam e colam, flirtam… viciados os olhos espiam e espelham… fluxos de narrativas pessoais, confessionais… a excitação e a frustração, o stress da confusão mental de falar sem cheirar, de falar sem ouvir e todas aquelas pessoas fantasmáticas invadem o meu quotidiano… A mesmidade aborrece-me e sufoca-me, a mesmidade surpreende-me e conforta-me>.

wired with the world i feel connected to myself…

Corporificada pela máquina (Haraway, 1991), personalizo o <meu perfil>

<quem sou eu? Quem quero eu que @s outr@s conheçam? Quem procuro? Quem eu quero que me encontre?>

Primeiro, adicionei as minhas bandas favoritas, os perfis de sites feministas e lésbicos que já conhecia. Depois comecei a procurar amig@s. Apareceram croatas, australianas, norte-americanas, alemãs, espanholas… de repente, movia-me mentalmente de continente para continente.

Por esta altura, a febre “The L Word” estava no seu auge. A maioria dos perfis de lésbicas, europeias ou americanas, coleccionavam fotografias, excertos da série e discussões sobre qual das personagens seria mais sexy ou “interessante”. No início da minha cibervida, ter tido acesso a esta série desde que começou a ser exibida nos EUA, em 2004, foi determinante para o aprofundamento das minhas relações on-line.

A primeira pessoa que adicionei para amig@ é croata e tem escrito no seu perfil “I’m a little GrrlBoi tryin make my way in this world”. Este “statement” passou a servir de critério para as minhas buscas transcontinentais de seres marginais que se expõem e vivem através desta rede social.

Interessava-me conhecer pessoas que utilizassem esta plataforma não só como forma de activismo político, mas também como extensão dos seus corpos des-materializados em representações de múltiplas e marginais performatividades de género.

A possibilidade de poder ser, sem as restrições impostas tanto pelo espaço público físico como pelas práticas discursivas de género, potenciava aquilo a que Preciado denominou de des-identificação2.

Nesta busca, encontrei artistas queer como Emilie Jouvet3 e Kael T. Block4. As suas fotografias e filmes registam novos modos de ser da vida queer e transgender e abrem espaço para diferentes discursos visuais marginais que se encontram fora das temporalidades e dos espaços5 regulados pela heteronormatividade.

A minha identidade dyke desvanecia-se cada vez mais à medida que as representações queer inundavam o meu ecrã tal como se desvanecia a sensação de isolamento por ausência de identificação assim que comecei a viajar para conhecer @s amig@s digitais.

Em 2006, viajei até à Zagreb para visitar a minha primeir@ amig@. A ligação à Croácia permitiu-me, mais tarde, publicar um artigo na revista electrónica Cunterview6. No ano seguinte, aterrei em Bilbao para ver a exposição Kiss Kiss Bang Bang – 45 Años de Arte y Feminismo e para conhecer a Mónica, uma activista lésbica queer feminista. A minha estadia coincidiu com as festas da cidade e, por isso, tive oportunidade de participar no almoço organizado pelas feministas bascas e de trabalhar na tenda/bar que estas montaram para angariar fundos para a sua associação.

O MySpace passou a ser muito mais do que <o meu espaço> onde deambulava sozinha, sonolenta, por perfis desinteressantes, exibicionistas e demasiado heterornormalizados.

<… o meu imaginário ligado a pontos reais próximos e longínquos… em tempo real vivo todos os tempos do hemisfério norte ao hemisfério sul… uma combinação de linguagens agregam-se e misturam-se em movimentos… em ficções com diversas possibilidades narrativas…>

Estas viagens transformaram a minha vida, fazendo-me sentir realmente ligada a uma rede de queers, lésbicas e feministas que lutam e resistem quotidianamente para transformar as sociedades e os mundos por onde transitam.

na minha autoficção política posso ser todos os géneros e não ser nenhum.

logout

 

 

Referências bibiográficas

Halberstam, Judith (2005), In a Queer Time and Space – Transgender Bodies, Subcultural Lives, New York and London, New York University Press.

Halberstam, Judith (1998), Female Masculinities, Durham and London, Duke University Press.

Haraway, Donna J. (1991), «Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX», in Tomaz Tadeu da Silva (org.), Antropologia do Ciborgue, Belo Horizonte, Autêntica Editora.

Lauretis, Teresa de (1989), Technologies of Gender, Londres, McMillan Press.        [ Links ]

Preciado, Beatriz (2003), «Multitudes Queer – para una política de los “anormales”», Revista Multitudes, 12. Disponível em: http://multitudes.samizdat.net/rubrique.php3?id_rubrique

Preciado, Beatriz (2008), Testo Yonqui, Madrid, Editorial Espasa.

Rhodes, Jacqueline (2005), Radical Feminism, Writing, and Critical Agency: from Manifesto to Modem, Albany, State University of New York Press;

Wittig, Monique (2005), El Pensamiento Heterosexual, Madrid, Editorial EGALES.

Wittig, Monique (1973), The Lesbian Body, Boston, Beacon Press.

 

 

Notas

1 Para a artista norte-americana, a empatia radical é um dos factores a considerar na relação entre performance feminista, activismo e espaço público. Para Lacy, a empatia radical confere à performance a experiência da alteridade. “The Body Public: From Private Performance to Public Policy in Feminist Art”, palestra realizada durante o evento Re.Act Feminism. http://www.suzannelacy.com

2 “Des-identificación” (para retomar la formulación de De Lauretis), identificaciones estratégicas, reconversión de las tecnologías del cuerpo y desontologización del sujeto de la política sexual, estas son algunas de las estrategias políticas de las multitudes queer” (2003, 4).

3 www.myspace.com/emyphotography.

4 www.myspace.com/kaeltblock.

5 Segundo Judith Halberstam “’Queer time’ is a tem for those specific models of temporality that emerge within postmodernism once one leaves the temporal frames of bourgeois reproduction and the family, longevity, risk/safety, and inheritance. ‘Queer space’ refers to the place-making practices within postmodernism in which queer people engage and it also describes the new understandings of space enabled by the production of queer counterpublics” (2005, 6).

6 www.cunterview.net/index.php/English/

 

 

Cristiana Pena é investigadora do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais – CEMRI, da Universidade Aberta, em Lisboa.

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