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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.20 Vila Franca de Xira  2009

 

Queer, ou a crítica da "Política do Possível"

 

Bruno Maia, Patrícia Louro e Sérgio Vitorino

Panteras Rosa

 

Da teoria às práticas

«Queer», hoje, é uma miríade de entendimentos, com diferentes contextos e usos. Pode ser um termo guarda-chuva reivindicando orientações sexuais não-heteronormativas, identidades de género e características sexuais não-conformes ao binarismo; é um termo guarda-chuva de diversas e distintas correntes de pensamento académico sobre a sexualidade, o género, o sexo (biológico) e as identidades; é o nome escolhido para expressões recentes e actuais de recomposição de movimentos radicais em muitas sociedades ocidentais, por oposição à institucionalização

das últimas décadas e à apropriação e fixação ideológica e comercial de identidades LBT e sobretudo Gay (masculinas, «naturalmente»).

Os primeiros movimentos políticos queer são fundados nos EUA num período de recuos sociais e políticos (Reagan, Bush) e no contexto da crise do surgimento da Sida, final dos anos 80. São portadores de uma démarche política que rompe com as concepções essencialistas de alguns movimentos gays e feministas.

É com o crescimento do movimento e a sua consequente visibilização, que a estratégia de guerrilha sexual subversiva dá lugar a muitas e variadas formas de luta. É com o aparecimento de um movimento cada vez mais influente e aproximado às instituições de decisão política (e também próximo, cada vez mais, de uma abordagem académica), que estas identidades de luta se começam a apagar (politicamente e na realidade cultural gay) em prol de um movimento mais intrinsecamente ligado ao binarismo e à normalidade dos comportamentos. Parte das minorias sexuais pode ser integrada, enquanto uma outra parte passa a ser encarada como cópias defeituosas do modelo heterossexual ou mesmo do homossexual «integrado» (obviamente integrado num contexto que permanece ferozmente heteronormativo). Gays e Lésbicas tornam-se modelos legitimados pela proximidade à norma comportamental patriarcal, com a recusa de uma boa parte do movimento em afirmar travestis, drag-kings, drag-queens, butch-femmes, etc., como entidades de luta.

Curioso é que os actuais movimentos radicais, ou queer, são acusados frequentemente de condenar as opções pessoais das pessoas LGBT «integradas» ou com modos de vida relativamente «normalizados», quando na verdade estão a fazer uma crítica cultural, e não a dirigir um julgamento sobre vidas particulares.

Esse engano é partilhado, por exemplo, por Miguel Vale de Almeida (MVA), na sua comunicação «De vermelho a violeta e vice-versa»1. No mesmo, o autor sustenta igualmente que «a sociedade está organizada e tem determinado tipo de privilégios, tem determinado tipo de regalias e de medidas fiscais no sentido de promover a família».

Não. A sociedade está organizada para defender as uniões heterosexuais e sobretudo o seu modelo, aliás facilmente transponível para as relações entre pessoas do mesmo sexo, bem como a «naturalidade» do mesmo, com reflexo no entendimento dos laços de sangue, de «propriedade» parental, nas relações entre homens e mulheres, e entre LGBT e hetero-cultura.

Na verdade, num contexto LGBT que se hetero-normaliza, são as identidades ainda incapazes de integração, vidas concretas, que são excluídas, marginalizadas e criticadas pela «maioria da minoria». E um movimento político não pode fingir não o ver, sob risco de não se dirigir a tod@s nem ser fundado na solidariedade.

Um pensamento académico pode prescindir de categorias. Um movimento político tem de brandi-las, manuseá-las e reconhecer a sua existência, mesmo desconstruindo e relativizando. Tem de imaginar, como tem de gerir realidade. Ignorá-las, às categorias sexuais e de género, é ingenuidade e é perigoso, correndo mesmo o risco de deixar de saber distinguir e nomear grupos sociais discriminados. Mas desistir de fazer a sua crítica em nome de uma «visibilidade» aceitável (para a sociedade hetero), é derrotar à partida um projecto que poderia ser emancipatório. Não se trata de um julgamento das vidas das pessoas LGBT que procuram legitimar-se/integrar-se socialmente, mas sim a um movimento político que prescinde da crítica cultural às bases da homofobia e da transfobia, quer o patriarcado, quer a heteronormatividade. A luta política e a crítica cultural não são de facto, opostas nem incompatíveis, mas no movimento LGBT mais institucional em Portugal, parecem particularmente divorciadas. Se este argumenta com «a política do possível», convém lembrar que o «possível» é mutante, conforme variam as condições, mas também a ambição, a visão e as cedências dos seus actores. A «política do possível» pode também ser medida pela «crítica cultural» possível, se nos dermos ao trabalho, e pela diversidade de opiniões e contributos.

 

Aparte a teoria e aparte o queer: as práticas e as questões estratégicas e políticas

No plano estratégico e das práticas, não deve haver dogmas. O contexto português tem muitas particularidades, como todos. Em Portugal não existem verdadeiros grupos políticos queer. Também não existem – e as panteras não o são – grupos incapazes de compreenderem e se aliarem pela conquista e defesa dos direitos, das bandeiras amplas do movimento LGBT, mesmo aqueles cuja base social tenha um desejo «normalizador». O combate à discriminação e à discriminação legal são igualmente importantes. O contexto da intervenção política de um movimento como as panteras rosa pode ser complementar à acção do movimento institucional, mas também, naturalmente, exprimirá as suas discordâncias com as práticas políticas deste quando é o caso, e vice-versa.

O argumento de MVA de que temas «marginais» como o poliamor, ou minoritários, como as questões transsexuais, não podem impedir a obtenção de direitos para as maiorias LGBT, facilmente significa outro bastante mais banal: o de que os direitos das minorias, estão sempre atrás dos das maiorias, como a revolução sexual que nos partidos maioritários da esquerda devia esperar eternamente o dia da revolução geral. O que nos aproxima de outros movimentos LGBT radicais de vários países, reinvindicados queer ou não, com quem partilhamos pensamento e acção?

Uma leitura de partida feminista, que não é partilhada por todo o queer, e antipatriarcal. Um regresso a algumas reivindicações originais do movimento LGBT nascido nos anos 60 e 70 no sentido de uma libertação sexual e do aprofundamento do combate à homofobia e à hetero-cultura enquanto sistema cultural e político opressivo, e não apenas por direitos corporativos ou mudanças legais. Embora sem negar a importância da evolução legal, questionar e expandir os alegados limites da «política do possível», do que hoje é possível e concreto alterar, propor novas alianças, explorar as possibilidades de novos fôlegos.

Uma flexibilidade de alianças múltiplas no campo dos direitos sexuais e relacionais, para lá do universo LGBT – grupos feministas, luta pela despenalização do aborto, movimentos de trabalhadores/as do sexo, grupos poliamor, … e questionamento, portanto, também dos modelos relacionais dominantes.

Uma compreensão do reforço mútuo e da semelhança de mecanismos entre discriminações, que abre pontes com outros movimentos sociais que não trabalham directamente a questão dos direitos sexuais – como os movimentos de imigrantes – em vez de encerrar o movimento nas exclusividades estanque das questões «LGBT», numa espécie de autismo social, e numa leitura das pessoas exclusivamente pela orientação sexual ou identidade de género.

A solidariedade interminorias, com particular atenção aos mais desfavorecidos dentro do LGBT, e a solidariedade internacional num mundo tão ferozmente repressor das nossas identidades, com particular atenção aos movimentos emergentes ou aos países onde a criminalização continua efectiva.

Um entendimento do patriarcado e do heterossexismo como sistemas políticos que correspondem a relações sociais de poder complexas e multifacetados, e não apenas como problema cultural ou de mentalidades, ou apenas como sistema legal desmantelável.

Face às conquistas legais de direitos como o casamento (para nomear não necessariamente a mais urgente, mas uma que mal ou bem está centralizada em Portugal neste momento), a homofobia vai simplesmente desvanecer-se porque é só cultura, ou é também sistema baseado no privilégio e supremacia da heterossexualidade, e no domínio masculino?

Não temos as respostas. Mas limitarmo-nos hoje a brandir a limitação de uma pretensa política do «possível» que faz tábua rasa da diversidade em nome dos interesses maioritários, com prejuízo de uma visibilidade diversa, lutar por uma evolução cultural e legal sem olhar e criticar as contradições vivas dentro da própria comunidade e nas vivências LGBT (o que não as torna menos legítimas, repetimos), é, de novo, responder a esta questão como faziam os partidos da esquerda, ao prometerem a resolução dos problemas do sexismo e da homofobia para depois da instauração do socialismo.

 

 

Notas

1 Apresentada no 2.º Congresso Feminista e disponível no website do autor: http://site.miguelvaledealmeida.net/

 

 

Bruno Maia, neurologista, fundador Panteras Rosa Porto.

Correio electrónico: brunocruzmaia@gmail.com

 

Patrícia Louro, tradutora, fundadora Panteras Rosa.

Correio electrónico: dijk@walla.com

 

Sérgio Vitorino, jornalista e tradutor, fundador Panteras Rosa.

Correio electrónico: svitorino@gmail.com

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