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Ex aequo

versão impressa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.17 Vila Franca de Xira  2008

 

Ribeiro, Margarida Calafate (2007), África no Feminino. As Mulheres Portuguesas e a Guerra Colonial, Porto, Edições Afrontamento.

 

Teresa Maria Leal de Assunção Martinho Toldy

Universidade Fernando Pessoa

 

Resultante de um projecto de pós-doutoramento no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, o livro de Margarida Calafate Ribeiro constitui um estudo sobre as mulheres portuguesas e a Guerra Colonial, num país que, passados mais de quarenta anos sobre o início desta guerra, parece continuar a manifestar dificuldade em visibilizar as histórias e memórias dos acontecimentos. De facto, na perspectiva da autora, o facto de a memória da Guerra Colonial estar associada a três acontecimentos extraordinariamente relevantes da história de Portugal – o final da ditadura salazarista, o 25 de Abril de 74 e a descolonização – assim como a quase inexistência de estudos sobre a história colonial portuguesa, levam a que o conflito em causa seja visto quase como «algo externo e não como algo de profundamente interno a Portugal e aos países africanos, agora independentes» (p. 14). Se a visibilidade pública daquilo que pode não ser esquecido passa pela monumentalização da memória, bem como pela oficialização das comemorações, pela estetização (da literatura e outras artes) e pela elaboração de discursos e registos historiográficos, pedagógicos, políticos ou mediáticos, o que não deve ser lembrado é remetido para o domínio do privado: o trauma não se expõe na praça pública. A memória da Guerra Colonial conhece este lado «publicamente não recomendável de recordar, invisível», isto é, reservado aos «ex-combatentes e as suas famílias» (idem). É destas memórias silenciadas, destas histórias invisíveis, tecidas de «subjectividades e de objectos, como cartas, fotografias ou souvenirs» (p.13), que nos fala o livro de Margarida Calafate Ribeiro.

A obra divide-se em duas partes: uma primeira, constituída por um ensaio teórico a que a autora chama modestamente «introdução», mas que nos apresenta uma reflexão de referência sobre a memória, uma resenha brevíssima do eco que a expansão portuguesa e a Guerra Colonial têm encontrado na historiografia e na literatura portuguesa e as linhas-mestras de interpretação dos depoimentos de vinte e uma mulheres que acompanharam os seus maridos na guerra, matéria que constitui a segunda parte da obra. O seu contributo fará, certamente, história (memória) no processo de (re)construção de um acontecimento que marcou e marca a sociedade portuguesa. Detenhamo-nos, então, em cada uma das duas partes.

Na primeira parte do livro, Margarida Calafate Ribeiro discorre sobre o significado da memória, mais, do «dever de memória» (nas palavras de Primo Levi, citado pela autora: p. 15), na passagem dos testemunhos a história. Ora, na sua perspectiva, em Portugal, o valor político e social da memória privada e da memória colectiva não é coincidente, no que diz respeito à Guerra Colonial. O divórcio existente no tempo da guerra entre o discurso oficial e a experiência dos mobilizados, bem como das suas famílias, prolonga-se na teimosia em ignorar publicamente o testemunho dos envolvidos. O «dever de memória» inscreve-se neste hiato, com o objectivo de «estabelecer um cúmplice compromisso entre quem conta – que assim cumpre a sua função de testemunha – e quem ouve – que assim toma conhecimento e não mais pode dizer que não sabia» (p. 15). A obra de Margarida Calafate compreende-se, então, à luz deste «pacto de responsabilidade partilhada», contribuindo para «uma textualidade produzida contra o esquecimento» (idem).

O interesse por um projecto deste tipo nasceu, no dizer da autora, da leitura e interpretação destas textualidades, tanto nas obras ficcionais portuguesas dos «assombrados pelas memórias da guerra» (para retomar as palavras de Paulo Medeiros, citadas pela autora: p. 16), como no contacto com mulheres da geração da guerra. Margarida Calafate confessa que foi na leitura das obras de Lídia Jorge e de Wanda Ramos, envolvidas na Guerra Colonial pelo facto de terem acompanhado os seus maridos, que encontrou as «personagens» do seu livro. Das mulheres que partilharam esses acontecimentos com os seus maridos, e que «estão em toda a parte na nossa sociedade» (p. 17), não havia, até agora, qualquer registo do ponto de vista da história documental. É do «espanto» resultante da constatação da inexistência de registo não-ficcional das vivências das mulheres que acompanharam os seus maridos na Guerra Colonial que nasce o impulso para a realização deste estudo, à procura da «densidade histórica do rosto destas mulheres que partiram» (p. 18).

A autora reconstitui o percurso das questões hermenêuticas que se foi colocando a si própria ao longo do estudo, a começar pela passagem de uma perspectiva em que as mulheres ocupariam um lugar passivo – na qual a pergunta de partida seria: «por que razão os homens portugueses levaram as suas mulheres para a guerra?» – para uma abordagem que pressupõe o seu protagonismo («por que razão as mulheres portuguesas foram para a guerra com os seus maridos?») (p. 18). O testemunho das mulheres que partiram por opção choca, assim, com o tema das mulheres que ficaram, «cum choro piadoso/ (…) / Mães, Esposas, Irmãs» (nas palavras de Camões, autor de referência para Margarida Calafate, cit. p. 19) – e que constituem «a aventura feminina das mulheres», que, nos Lusíadas, «ficavam e (…), pela via do amor, questionavam a partida dos futuros heróis do mar» (idem). De facto, a autora questiona os papéis atribuídos tradicionalmente às mulheres na sociedade ocidental em guerra, ao longo da história, bem como na literatura sobre a expansão. No seu dizer, foram precisos cinco séculos para retomar os fios perdidos da presença das mulheres nas caravelas, para desconstruir o estereótipo que atribui aos homens a construção do Império e às mulheres a guarda passiva da casa. A construção do império pela valorização da «via masculina» de saída para o espaço público e para a guerra, invisibilizou as mulheres. Retomar os fios desta meada perdida pressupõe a redescoberta da «presença insidiosa» das mulheres «nas naus rumo ao Oriente» (p. 20): filhas da baixa nobreza, órfãs, prostitutas, missionárias1.

Os estudos das mulheres têm procurado reconstituir os lugares de presença das mulheres nos acontecimentos e territórios identificados durante séculos como «do domínio do heroísmo masculino». Assim, sabe-se hoje que, durante as guerras (nomeadamente, as duas Grandes Guerras), as mulheres desempenharam papéis relevantes nos domínios «subsidiários» dos conflitos: fábricas de munições, hospitais militares), mas também na resistência e num quotidiano de protecção dos filhos em circunstâncias extremas. Permito-me aqui acrescentar, contudo, que, muito frequentemente, a superação do momento «de excepção» significou o «regresso ao lar». Também na Guerra Colonial, as ocupações das mulheres relacionadas com a mesma giravam em torno de tarefas de apoio (na área do cuidar dos feridos e do bem-estar dos militares). Margarida Calafate conclui que «a manutenção do mito de que a guerra é tarefa de homens possibilitava uma certa estabilidade social, cara ao regime que promovia o conflito» (p. 24).

Particularmente interessante, contudo, é a conclusão que a autora tira acerca da ineficácia do discurso de regime que procurava exaltar «o sacrifício das mães portuguesas», que deveriam incitar os seus filhos a combater pela pátria, oferecer-se como «madrinhas de guerra» de militares em campanha e gerir o lar na ausência do seu chefe. Na perspectiva de Margarida Calafate, ainda que o governo apostasse na participação das mulheres (introduzindo a componente «família» no cenário de guerra) no «projecto civilizador», subjacente à colonização, a geração de mulheres que partiu com os seus maridos não parece ter coadjuvado este projecto. De facto, estas mulheres – maior parte delas, viajando com filhos pequenos, de meses; oriundas de todo o território continental e das regiões autónomas dos Açores e da Madeira; de diversas proveniências sociais; instaladas em situações extremamente diversas e díspares, num esforço de adaptação hercúleo; sem profissão ou com profissões, muitas delas, professoras – contribuíram para a «manutenção de uma certa aura de normalidade familiar num teatro de guerra» (p. 28), tanto dentro de casa, como no espaço social, na assistência e no ensino em África, mas também viveram, em termos individuais, no dizerm de Margarida Calafate, «um momento emancipador», já que «a vivência em África foi o momento de início de vida conjugal fora das peias familiares tradicionais, de início de vida profissional fora do quadro esperado à saída dos liceus, das escolas técnicas ou da universidade» (idem). Além disso, a vivência em África constituiu também um momento revelador do ponto de vista político, já que proporcionou um encontro com o reverso do discurso de exaltação gloriosa dos feitos na nação, embarcado em caixões de pinho, entrados pelo calar da noite. A doçura das recordações de juventude (da paixão, dos primeiros anos de casamento, do nascimento dos filhos) aparece associada aos «voos dos helicópteros e aviões que traziam os feridos, os boatos que alimentavam a guerra» (p. 29). De facto, como a autora conclui: «o regime comprometeu as mulheres com a guerra» (idem): elas foram testemunhas. «Colocadas na margem do universo da guerra, vivendo muitas vezes situações de grande isolamento, elas registaram esta experiência, ouviram, observaram, traçaram relações com o poder e foram revelando um olhar-outro, elaborando uma razão-outra, sobre as razões do conflito bélico (…)» (idem).

Este olhar complexo sobre uma realidade complexa torna a leitura da segunda parte da obra ainda mais interessante, já que nela encontramos consubstanciada a ideia de que há muitos universos de mulheres, transgredindo as habituais linhas entre o público e o privado, mas também iludindo os discursos convencionais de separação entre cada um deles. Seria arbitrário fazer um resumo da segunda parte da obra: como se resumem testemunhos? O texto será lido e interpretado a partir dos olhares dos seus leitores, num processo que apela ao estabelecimento do pacto de responsabilidade partilhada de transmissão das memórias de uma geração marcada pelo cais de Alcântara, como recorda uma das testemunhas:

Aquele cais era uma coisa tremenda, um drama humano com imensos rostos. Os militares entravam no barco, nós ficávamos num varandim a acenar e o barco ia-se afastando lentamente. Pessoas com crianças ao colo, mulheres, mães, não sabendo se eles voltavam ou não. E eram choros, desmaios, um pranto contínuo no ar. Era um ritual tremendo, todos com os lenços a acenarem, já nem sabíamos para quem, com as imagens que se iam perdendo na distância (p. 173).

Por isso, o medo do telegrama com a notícia fatídica, a dor da separação sem certeza de regresso, o amor contra toda a esperança, o sacrifício pelos filhos, a invocação e simulação de uma «normalidade» para impedir a loucura, o choque e a desilusão da impossibilidade de «tudo voltar a ser como antes», a nostalgia da luz em África, as fotografias guardadas, escondidas e reencontradas muitos anos depois, o silêncio da morte – tudo isso «é de uma violência tremenda», como diz uma testemunha, que acrescenta: «não há perdão político ou moral para uma coisa destas» (p. 192). É desse drama da nossa história recente que olivro de Margarida Calafate Ribeiro nos dá conta, num exemplo magistral de como a investigação social é produtora de conhecimento útil.

 

1 Margarida Calafate Ribeiro reporta-se ao Congresso Internacional O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa: Actas I e II, Cadernos Condição Feminina, 43, Lisboa, Comissão para a Igualdade e para os Direitos da Mulher, 1995.

 

Teresa Maria Leal de Assunção Martinho Toldy, Doutorada em Teologia Feminista pela Philosophisch-Theologische Hochschule Sankt Georgen (Frankfurt), Mestre e Licenciada em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa. Professora Associada da Universidade Fernando Pessoa, onde é docente de Ética e investigadora do Centro de Estudos Culturais, da Linguagem e do Comportamento (da mesma Universidade), na área da cidadania. Colaboradora do CES (Universidade de Coimbra). Vice-Presidente da APEM. Endereço electrónico: toldy@ufp.pt

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