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Ex aequo

versión impresa ISSN 0874-5560

Ex aequo  n.17 Vila Franca de Xira  2008

 

Editorial

Teresa Toldy

 

A Comissão Europeia declarou 2008 como o «Ano Europeu do Diálogo Intercultural». Ao apresentar a proposta, o Comissário Europeu responsável pela educação, formação, cultura e multilinguismo, Ján Figel’, afirmou o seguinte: «nos últimos anos, a Europa viveu alterações importantes, resultantes do efeito combinado dos alargamentos sucessivos da União, da mobilidade acrescida criada pelo mercado único e da importância acentuada dos intercâmbios humanos e comerciais com o resto do mundo. Tal deu origem a interacções entre europeus e diversas culturas, línguas, etnias e religiões aquém e além do continente europeu. O diálogo entre culturas surge como instrumento indispensável na perspectiva de uma aproximação dos povos europeus, entre si e entre as culturas subjacentes» (IP/05/1226).

Este ano constitui, pois, uma oportunidade de reflexão crítica sobre discursos e práticas de interculturalidade, numa Europa onde muitos se manifestam perplexos com uma diversidade que consideram pôr em causa ou, no mínimo, desafiar uma «identidade» crida e tida como «una». Afinal, nem a Europa é uma só, nem parece óbvio que a sua identidade se tenha constituído e se constitua, ainda hoje, numa perspectiva sempre dialogante com outras culturas: basta ver os discursos emergentes em torno de temas como as migrações, o pluralismo religioso, as diversas abordagens às questões dos direitos humanos, quer absolutizando a sua interpretação ocidental, quer relativizando a sua relevância para a construção de sociedades mais justas. Para não falar das preocupações com a segurança, que parecem constituir, muitas vezes, uma porta aberta à inflexão no reconhecimento da irreversibilidade e intocabilidade do respeito pelos direitos e liberdades individuais.

«À porta» da Europa (que alguns já designam como «o clube dos ricos») ficam aqueles que estão «para além da linha» de demarcação e que continuam a ver a sua entrada no velho continente cada vez mais dificultada. Mas estes estão também dentro de portas, pelo que falar da diversidade cultural e da interculturalidade pressupõe o reconhecimento de que aqueles que possuem raízes culturais não-europeias e que vivem na Europa não são «outros» entre nós, nem estranhos ou estrangeiros. São concidadãos: vozes com ecos de outros lugares, que fazem a ponte entre mundos, contribuindo para um cosmopolitanismo construtivo de uma nova identidade, em processos de tradução mútua tecida em espaços comuns.

Por isso, este número é dedicado ao tema da interculturalidade, num diálogo que se quer entre iguais. Falaremos de concidadãs, pois. Falaremos de «vozes demulheres do Sul» (tema do dossier do presente número) presentes no Norte ou tornadas presentes por vozes que fazem eco das suas. Inverteremos o mapa-mundo e colocaremos no centro o mundo que fica a Sul nos mapas convencionais. Chamaremos para o centro as mulheres dos países periféricos ou subalternizados. E procuraremos dar voz e vez às suas preocupações, bem como às suas falas sobre o mundo e às suas realidades, ausentes e presentes entre nós, no que elas têm, portanto, de diferente e semelhante em relação à realidade das mulheres no hemisfério Norte. Aliás, alguns dos artigos são escritos em parceria por mulheres do Norte e do Sul. Outros são da autoria de mulheres do Sul, que escrevem sobre a sua experiência, tanto no Sul, como no Norte. E outros, ainda, constituem reflexões de mulheres do Norte, com experiência no Sul. Procura-se, portanto, que o dossier espelhe convergências e divergências, fios comuns e pontas soltas, diálogos feitos e a fazer.

Assim, o dossier abre com um artigo, escrito a quatro mãos, por Paola Cappellin e Alessandra Vincenti, que apresenta comparativamente a problemática da promoção e das novas discriminações de género nos anos 90, confrontando a experiência da desregulação do mercado de trabalho e do impacto da mesma sobre as mulheres na Itália e no Brasil e procurando identificar as semelhanças e dissemelhanças existentes entre ambas as realidades, tanto do ponto de vista das suas causas, como da perspectiva das iniciativas promotoras da igualdade de oportunidades nos dois países. As autoras concluem que, no Brasil, a proposta de luta contra as discriminações avançou durante toda a década de 1990, procurando reduzir o déficit de aplicação dos direitos de categorias de trabalhadoras cujas profissões careciam de protecção jurídico/legal, ainda sem resultados efectivos, dado a existência de mecanismos de controlo da sua aplicação. Na Itália, por seu turno, difundiu-se o fomento de estratégias e planos de acções afirmativas, de impacto sobretudo regional, ainda que, mais recentemente, se possa falar com mais propriedade de um impacto nacional destas mesmas medidas.

María José Escartín e Maria Dolores Vargas, por seu turno, apresentam-nos um artigo sobre a questão do trabalho e da cidadania no contexto da imigração em Espanha, relacionando a temática com o empoderamento das mulheres imigrantes e com a identificação das limitações dos direitos e deveres sociais daquelas nas sociedades que as recebem. As autoras procuram tirar ilações a partir das diferentes correntes feministas para um enquadramento das questões relacionadas com a participação das mulheres imigrantes nas sociedades de acolhimento, nomeadamente, através da sua inserção no mercado de trabalho.

É de poder, das relações de poder e de inscrições identitárias que Silvia Rodríguez Maeso nos fala, a propósito das mulheres e da diferença cultural indígena em contextos latinoamericanos. A autora analisa as tensões que a relação entre feminilidade e «indianidade» produzem nos processos de identificação cultural andina, entendidos como processos de construção e legitimação de sujeitos políticos. De realçar como Silvia Maeso problematiza tanto a categoria «mulheres em contextos latinoamericanos», como a das «identidades indígenas», esclarecendoque partirá das práticas e experiências de mulheres em contextos latinoamericanos nos quais se geraram processos de identificação cultural entre sectores subalternos que foram sujeitos historicamente à condição de índios. Invocando Gayatri Chakravorty Spivak, Sílvia Maeo procura evidenciar como relações de poder essencialmente assimétricas modelam os vínculos entre género e etnicidade.

Paula Meneses, por seu turno, procura analisar a questão das identidades de género, tal como elas se colocam e se jogam no norte de Moçambique, região de síntese cultural de sociedades matriliniares e muçulmanas, nomeadamente, nos mecanismos de resolução de conflitos a que a população recorre. Procurando superar análises simplistas e redutoras do Islão e do lugar ocupado pelas mulheres no seu interior, Paula Meneses contribui para a compreensão dos motivos que levaram e levam a que as relações de género tenham representado e continuem a representar um espaço de interacções complexas, tanto durante o tempo colonial, como após a independência, discutindo a construção do «poder feminino» à luz das teorias feministas pós-coloniais.

Como poderá a educação contribuir para uma outra visão das mulheres dos países em vias de desenvolvimento? Como poderá ela desenvolver uma «solidariedade feminista transfronteiriça não-colonizadora?», para utilizar as palavras de Mohanty, citadas por Cecília MacDowell. É desta problemática que se ocupa o artigo desta mesma autora, de nacionalidade brasileira, que relata a sua experiência de docência da disciplina de «Women in Developing Countries» na Universidade de San Francisco, nos Estados Unidos. Fazendo um balanço desta experiência, Cecília MacDowell chama a atenção para o facto de a construção da solidariedade constituir um processo difícil, longo e doloroso, que implica uma aprendizagem mútua e que pode resultar em transformações recíprocas. Tal como Jacqui Alexander, citada pela nossa autora, afirma, esta solidariedade implica «que nos tornemos fluentes nas histórias dos outros».

São apelos a esta fluência, agora em termos literários e poéticos, que os artigos de Ana María Toscano e de Margarida Calafate Ribeiro nos apresentam, o primeiro, a propósito de Encarnación Ezcurra, uma mulher de referência na história da Argentina, o segundo, a propósito da voz angolana de Ana Paula Tavares, em resposta a Camões. De facto, Ana María Toscano debruça-se sobre a figura da esposa daquele que viria a ser o primeiro ditador da argentina, D. Juan Manuel de Rosas, procurando explicitar a relação entre o papel atribuído à mulher como esposa, apaixonada pelo seu marido, e a procura de um papel próprio, numa espécie de transferência do amor para a Nação e o poder político. A autora enquadra o seu artigo no contexto da análise literária, bem como na historiografia dos movimentos de independência e construção da nacionalidade argentina, no séc. XIX, concluindo que o envolvimento de mulheres nestes movimentos, pela transgressão ao modelo de feminilidade que a participação política constituía, foi silenciado durante muito tempo e que foi já no século XX que, num processo de reescritura da história, essas mulheres foram recuperadas, também nos romances históricos.

Margarida Calafate Ribeiro, por seu turno, apresenta-nos um texto sobre Ana Paula Tavares, poeta angolana, no qual procura mostrar como a dupla premissa do poder e do conhecimento, sobre a qual se ergueu o colonialismo dos séculos XIX e XX, foi reapropriada, subvertida, desmultiplicada e antropofagizada, revelando outras identidades. Margarida Calafate deseja apresentar a novidade «desta voz poética vinda do Sul», que retira as mulheres do silêncio, melhor, revela que as mulheres sempre falaram, mas para ouvidos androcêntricos surdos. Ana Paula Tavares responde à pergunta camoniana: «Que gente será esta?» A sua resposta dá voz a outras vozes: vozes de mulheres num espaço colonizado.

Para além do dossier temático, o presente número da Revista ex aequo inclui dois estudos sobre dois temas candentes: o corpo e a feminização da pobreza, por um lado, e a educação e a igualdade de oportunidades, por outro. Assim, Luciane Lucas e Tânia Hoff apresentam-nos um estudo no qual procuram provar que a discursificação de género, como forma de saber, perpetua estratégias de poder nem sempre visíveis. Partindo dos conceitos de cidadania e dominação, as autoras procuram evidenciar como o corpo se configurou num espaço de poder e de silenciamento do feminino. O corpo e a dominação analisados são os das mulheres pobres no Brasil. Na segunda parte do estudo, as autoras procuram aplicar este quadro teórico à análise do programa brasileiro de transferência de renda.

Por último, Tânia Brabo escreve sobre o papel do movimento feminista na redemocratização da sociedade brasileira, nomeadamente, na área da educação. A autora considera que a pedagogia do movimento feminista ainda é actual e necessária e analisa o impacto dos movimentos de mulheres nas mudanças, tanto no plano legal, como pedagógico, concluindo continuar a ser necessário investir na formação de educadores sensíveis à questão de género nos cursos de formação inicial e em continuidade, pois, na sua perspectiva, a questão de género continua a ser invisível aos olhos dos educadores e das educadoras, apesar de constar das políticas educacionais.

Esperamos que a leitura deste número constitua um exercício de interculturalidade, que ele não seja apenas «mais (…) um poema a rimar», parafraseando Margarida Calafate, já que, continuando a pedir emprestadas as palavras da autora, «o tema é outro, a posição epistemológica do sujeito (…) é outra», enfim, «a fala é outra».

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