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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.26 no.2 Lisboa  2012

 

Cognição social fora do laboratório não é peixe fora de água: o caso do efeito de ancoragem

Social Cognition Out of the Lab Is Not a Fish Out of the Water: The case of anchoring effect

 

João Niza Bragaa*, Leonel Garcia­‑Marquesa**, Mário Boto Ferreiraa***

aFaculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa

Autor para correspondência

 

RESUMO

A aplicabilidade da investigação laboratorial a contextos “reais” é um problema comummente discutido nas ciências sociais, em particular na psicologia experimental. Ou seja, até que ponto os estudos feitos em ambientes artificiais nos permitem retirar conclusões e aplicações em contextos “reais”? Este artigo propõe­‑se a contribuir para a desmistificação deste “problema”, recorrendo ao caso do efeito de ancoragem. O efeito de ancoragem – a assimilação de uma estimativa numérica sobre um alvo a um valor­‑standard – descrito inicialmente por Tversky e Kahneman (1974), cedo se revelou um efeito experimental extremamente consistente e com implicações práticas. Assim, revemos aqui exemplos de manifestações do efeito de ancoragem em diversos contextos, como nas decisões de consumo, económicas ou judiciais. Exploramos, ainda, as principais hipóteses explicativas do efeito de ancoragem e em que medida, essas teorias e testes às mesmas, permitiram compreender o fenómeno e gerar evidências das suas manifestações em variados contextos aplicados.

Palavras­‑Chave: Ciências sociais; aplicabilidade; psicologia experimental; efeito de ancoragem.

 

ABSTRACT

The applicability of laboratory investigation to “real­‑life” contexts is a common problem attributed to social sciences, in particular to experimental psychology. The question is: to what extent do the studies conducted in artificial environments allow us to draw conclusions and applications in real­‑life contexts? This article proposes to contribute to the demystification of this "problem", using the anchoring effect as a case­‑study. The anchoring effect – the assimilation of a numerical estimate about a target to a standard value – described by Tversky and Kahneman (1974), soon proved to be an experimental effect with great consistency and a lot of practical implications. Therefore, we present some evidences of anchoring effects in several contexts such as consumer, economic or judicial decisions. We also explore the main hypothesis about anchoring effect, and to what extent these theories and tests to these theories allowed to understand the anchoring phenomenon and to generate evidence of its manifestations in multiple applied contexts.

Keywords: Social sciences; applicability; experimental psychology; anchoring effect.

 

Introdução: O “problema” da validade externa do laboratório

A investigação nas ciências sociais, e na psicologia experimental em particular continua a ser frequentemente questionada quanto à efemeridade das suas conclusões aplicadas. Os resultados experimentais obtidos em condições muito controladas não podem ser generalizados a outros contextos, pelo que o valor aplicado desses dados é muito pequeno. Desta forma, estes estudos realizados em ambientes artificiais controlados são por vezes questionados quanto à sua falta de aplicabilidade a contextos “reais”.

No entanto, os ataques às metodologias experimentais controladas enquanto más metodologias para a construção de ciência aplicada, parecem ignorar alguns aspectos epistemológicos essenciais aos objectivos dessas investigações.

O objectivo deste artigo é, por isso, fundamentar a relevância e importância aplicada dos resultados experimentais, ilustrando as implicações em ambientes “reais” que os fenómenos e efeitos estudados no laboratório podem ter.

De facto, o problema da generalização dos resultados na psicologia experimental, que dificulta a percepção de aplicabilidade desses resultados, deve­‑se à relação entre o seu objecto de estudo e a questão popperiana da validação teórica.

Ou seja, as ciências sociais, como a psicologia, propõem­‑se a lidar com uma enorme variedade e complexidade de estímulos com múltiplos níveis de explicação (por exemplo, estímulos contextuais, emocionais, motivacionais, cognitivos, etc.), o que dificulta o teste das teorias e hipóteses explicativas, assim como a transposição das mesmas para contextos onde os factores presentes são variáveis e com diferentes importâncias. Desta forma, áreas da psicologia experimental como a psicologia cognitiva, a psicologia social, ou a cognição social, têm desenvolvido formas de controlo experimental cada vez mais sofisticadas que permitem um maior controlo e isolamento de processos e variáveis nos ambientes artificiais do laboratório. Com isto não se pretende reduzir o estudo de complexos processos psicológicos ao estudo dos elementos que os compõe, mas sim permitir que o estudo destes processos se possa concentrar nas variáveis de interesse de forma mais específica, para que sejam metodologicamente “maleáveis”. No entanto, estes ambientes controlados e artificiais que permitem, o teste de hipóteses e a validação das teorias são, também, criticados por reduzirem as implicações e conclusões aplicadas que se podem retirar a partir da generalização dos resultados (e.g., Neisser, 1978).

Essas críticas, dirigidas à psicologia experimental, que se centram na alegada falta de validade externa das investigações, questionam sobre se a amostra, a situação e as manipulações são tão artificiais que a classe de situações do quotidiano real a que os resultados podem ser generalizados é insignificante. Neisser (1978), por exemplo, criticou os estudos laboratoriais de memória de apenas descobrirem trivialidades, de não responderem às questões que realmente importam e de serem tão artificiais que não oferecem condições de generalização dos resultados a contextos da vida real. Estas críticas e defesa da validade ecológica dos resultados foram transversais a várias áreas da psicologia experimental, como a percepção visual (e.g., Gibson, 1979), psicologia do desenvolvimento (e.g., Brofenbrenner, 1974), clínica (e.g., Brooks & Baumeister, 1977; Gaylord­‑Ross, 1979), social (e.g., Argyris, 1975) ou do ambiente (Proshansky, 1976) para nomear algumas.

No entanto, esta perspectiva crítica parece assumir que o experimentador pretende, ou deve pretender, necessariamente, generalizar os resultados a sujeitos, manipulações e situações semelhantes. O que parece ignorar os objectivos da investigação que, muitas vezes, não procura generalizações, mas sim o teste de teorias (Mook, 1983).

Deste modo, a aplicabilidade dos estudos laboratoriais, não deve ser necessariamente procurada na capacidade de generalização e validade externa dos resultados, mas sim na validade teórica que estes permitem (e.g., Banaji & Crowder, 1989). Ou seja, para saber se uma conclusão teórica é válida são feitas experiências e testadas predições baseadas nessa teoria. No entanto, os resultados dessas experiências muitas vezes não são, nem pretendem ser, generalizáveis, mas contribuir para a compreensão dos processos subjacentes. É, então, essa compreensão sobre os processos que apresenta validade externa e não a amostra, a situação, ou manipulações que lhe deram origem, isto é, validade conceptual externa. Isto sugere que muitas críticas à investigação experimental partem da confusão entre os objectivos de generalização dos resultados e os objectivos de compreensão, explicação e generalização das conclusões teóricas (e.g., Mook, 1983; Roediger, 1991).

A questão da aplicabilidade dos resultados laboratoriais a contextos “reais” é, então, um exercício de aplicação de teorias validadas experimentalmente à compreensão dos fenómenos e processos que ocorrem nesses contextos. Dessa forma, embora a cognição social, a psicologia cognitiva e a psicologia social sejam áreas de investigação que privilegiam a experimentação controlada em ambientes artificiais para testar teorias, as conclusões teóricas que dai resultam podem ser aplicadas, e ajudar a compreender, fenómenos que ocorrem em ambientes “naturais”. Assim, alguns fenómenos e processos, após serem validados conceptualmente, isto é, após serem demonstrados e compreendidos no ambiente de laboratório, foram, a partir dessa compreensão e validação teórica, demonstrados e estudados em contextos práticos “reais”, evidenciando a relevância aplicada dos estudos laboratoriais.

No presente artigo vamos, então, explorar um destes casos de sucesso aplicado na cognição social e psicologia cognitiva, em que um fenómeno de laboratório passa à vida real. Propomos, por isso, analisar o percurso teórico­‑prático do efeito de ancoragem e utilizá­‑lo como um estudo de caso de investigação laboratorial com aplicações verdadeiras no mundo real.

O efeito de ancoragem diz respeito à assimilação de um julgamento ou decisão a informação irrelevante para essa tarefa, o que resulta num enviesamento dos julgamentos no sentido dessa informação. A simplicidade e facilidade com que se obtém o efeito, a sua consistência e a dificuldade em controlar as suas consequências nas decisões e comportamentos, tornaram a ancoragem um foco de estudo com implicações teóricas e práticas em inúmeros contextos relevantes. Assim, para compreender o como e porquê deste efeito ter tantas manifestações em contextos de decisão “naturais”, é um dos propósito do presente artigo, rever o que se sabe sobre este fenómeno, começando por destacar a hipótese de acessibilidade selectiva (Strack & Mussweiler, 1997), os métodos de teste e evidências empíricas que suportam esta explicação do efeito de ancoragem. De seguida apresentamos várias manifestações do efeito de ancoragem, em contextos experimentais e aplicados com evidentes implicações práticas para a acção humana no mundo “real”, decorrentes em grande parte da teoria e sua validação. Ilustrando, desta forma, que fenómenos descobertos e estudados em contextos artificiais de laboratório, não carecem, necessariamente, de validade ou aplicabilidade. Por fim, e face à robustez deste efeito que leva a erros e enviesamentos sistemáticos e característicos, discutiremos as melhores formas de “içar a âncora”, ou seja, de evitar ou pelo menos atenuar estes erros de julgamento.

O efeito de Ancoragem

O efeito de ancoragem foi proposto inicialmente por Tversky e Kahneman (1974), no seu revolucionário programa de investigação heurísticas e enviesamentos. Neste programa os autores desafiaram o uso de modelos racionais como explicação para os processos de tomada de decisão, ao apresentarem três heurísticas simplificadoras, como estando subjacentes a grande parte das respostas humanas a problemas inferenciais complexos: a heurística da representatividade; a heurística da disponibilidade e a heurística da ancoragem e ajustamento (Tversky & Kahneman, 1974).

A ideia central do programa heurísticas e enviesamentos era associar a cada heurística um conjunto de enviesamentos de decisão. Assim, e de acordo com esse objectivo, Tversky e Kahneman (1974) ilustram a heurística da ancoragem e ajustamento a partir do efeito de ancoragem: a assimilação de um valor irrelevante presente no ambiente (a âncora) aos julgamentos ou estimativas numéricas sobre determinado alvo, que resulta num enviesamento de resposta, ao serem feitas estimativas ou julgamentos demasiado próximos desse valor­‑âncora irrelevante.

Num dos exemplos apresentados no seu estudo seminal, Tversky e Kahnenman (1974), após girarem uma roda da sorte com valores entre os 0 e os 100 perguntavam aos sujeitos, se a percentagem de países africanos membros das nações unidas era maior ou menor que o número que lhes havia calhado na roda da sorte. Após a resposta a esta pergunta comparativa era pedida uma estimativa absoluta sobre a percentagem de países africanos nas nações unidas. As respostas dos sujeitos permitiram observar um efeito de ancoragem, uma vez que o número aleatório e irrelevante que saiu na roda da sorte influenciou as suas respostas no sentido da âncora. Especificamente, a estimativa de percentagem média de países africanos nas nações unidas foi 25% quando o valor sorteado foi 10 e foi de 45% quando o valor sorteado foi 65, embora os sujeitos soubessem que o valor da roda da sorte (âncora) não tinha qualquer relevância para o julgamento e que tinha sido gerado aleatoriamente. Este paradigma experimental de duas perguntas, uma pergunta comparativa, do alvo com a âncora, e uma pergunta absoluta sobre o alvo, é o paradigma clássico de ancoragem. É também a forma mais fácil de encontrar um efeito de ancoragem consistente, pois, mesmo avisando os participantes do enviesamento ou da irrelevância da âncora o efeito continua a ocorrer (Tversky & Kahneman, 1974). No entanto, uma breve análise do estudo acima descrito levanta óbvias preocupações de validade externa dos resultados. As escolhas e decisões que realizamos no mundo real raramente envolvem percentagens de países africanos, e muito menos “rodas da sorte”. Contudo, como já referido, não é da generalização dos resultados de um contexto experimental assumidamente simplificado e artificial que aqui se trata. Em vez disso interessa­‑nos explorar a validade externa das conclusões teóricas retiradas desta e de outras investigações de laboratório.

A consistência e facilidade em obter este efeito a partir deste e outros paradigmas, promoveu, então, uma grande quantidade de estudos no sentido de compreender os processos cognitivos que lhe subjazem. Sendo a partir da teoria que surgiram depois extensões empíricas e semelhantes evidências da presença deste fenómeno em muitos contextos aplicados, cumprindo­‑se, como mostraremos a seguir, o famoso adágio atribuído ao psicólogo social Kurt Lewin de que não há nada mais prático do que uma boa teoria.

“Não há nada mais prático do que uma boa teoria”

Como referimos, o efeito de ancoragem foi proposto inicialmente por Tversky e Kahneman (1974) para ilustrarem a heurística da ancoragem e ajustamento. Por isso mesmo, estes autores teorizaram o efeito de acordo com a heurística subjacente, pelo que, este fenómeno de assimilação de um valor irrelevante (a âncora) aos julgamentos se deveria a um ajustamento insuficiente. Ou seja, as pessoas, quando teriam de gerar uma estimativa absoluta sobre um alvo, partiam do valor apresentado na pergunta comparativa anterior (a âncora), e ajustavam até um valor que considerassem plausível. Como o ajustamento seria tipicamente insuficiente, as respostas dadas seriam enviesadas ao estarem muito próximas do valor da âncora.

No entanto, os estudos que procuraram encontrar evidências de processos de ajustamento cognitivo em paradigmas semelhantes não foram muito bem­‑sucedidos, apresentando resultados contraditórios (e.g. Wilson, Houston, Brekke, & Etling, 1996), a não ser que as âncoras apresentadas fossem valores indubitavelmente inaceitáveis. Por exemplo, foram encontradas evidências de processos de ajustamento quando as âncoras apresentadas eram valores implausíveis, por exemplo, 260 anos de idade para um ser humano (Strack & Mussweiler, 1997), ou quando as âncoras eram valores auto­‑gerados – isto é, em incerteza sobre o valor absoluto de um alvo, e na ausência de uma âncora externa, as pessoas geravam espontaneamente valores de referência a partir dos quais ajustavam até um valor plausível para o alvo (Epley & Gilovich, 2001). Contudo, mesmo nos casos em que existe ajustamento, o efeito não desaparece e as pessoas continuam a ser enviesadas no sentido das âncoras. Desta forma, embora os processos de ajustamento contribuam para o efeito em algumas situações, fica por explicar o processo cognitivo subjacente à ancoragem, isto é, o como, e porquê das pessoas serem afectadas por valores que sabem ser irrelevantes para a decisão.

Hipótese de Acessibilidade Selectiva

Para responder a estas perguntas, foram apresentadas várias explicações alternativas para o efeito como as inferências conversacionais (Grice, 1975) ou a primação numérica (Jacowitz & Kahneman, 1995; Wilson et al., 1996; Wong & Kwong, 2000), todas elas contribuindo para uma melhor compreensão do efeito de ancoragem. No entanto, a explicação dominante e que nos últimos anos tem reunido mais evidências é a Hipótese de Acessibilidade Selectiva (HAS) proposta por Fritz Strack e Thomas Mussweiler que entende o efeito enquanto um caso especial de primação semântica (e.g. Strack & Mussweiler, 1997; Chapman & Johnson, 1994).

De acordo com a Hipótese de Acessibilidade Selectiva, no paradigma clássico de ancoragem, os sujeitos resolvem a pergunta comparativa, por exemplo, “Mahatma Ghandi tinha mais ou menos de 79 anos quando morreu?”, utilizando uma estratégia de teste­‑de­‑hipótese de que o alvo é igual à âncora. Uma vez que as pessoas são confirmatórias a testar as suas hipóteses, gerando informação congruente com as mesmas (Klayman & Ha, 1987; Trope & Liberman, 1996), no teste da hipótese de que o alvo é igual à âncora, os sujeitos recuperam selectivamente conhecimento consistente com esta hipótese (hipótese de selectividade). Assim, para responder se Ghandi tinha mais ou menos de 79 anos, um sujeito vai testar a hipótese de que Ghandi tinha de facto 79 anos quando morreu, recuperando selectivamente informação congruente com essa hipótese, por exemplo: “Ghandi era careca e magro como um velhinho”, “Ghandi lutou pela independência da Índia durante décadas.”, etc. (Mussweiler & Strack, 1999).

A geração desse conhecimento torna­‑o mais acessível para responder à pergunta absoluta (hipótese de acessibilidade), à semelhança do processo de primação semântica (e. g. Higgins, 1996), o que resulta em estimativas baseadas em conhecimento sobre o alvo congruente com a âncora, levando ao enviesamento no sentido da âncora.

Um caso especial de primação semântica

Esta interpretação do efeito de ancoragem enquanto um caso especial de primação semântica recebeu bastante suporte empírico, existindo vários estudos a demonstrar directa ou indirectamente que a consideração da âncora na pergunta comparativa parece tornar acessíveis os atributos do alvo que são semelhantes à âncora (Strack & Mussweiler, 1997, Mussweiler & Strack, 1999, 2000a; Chapman & Johnson, 1999).

Por exemplo, num teste directo a esta hipótese, os sujeitos após responderem à pergunta comparativa do paradigma clássico de ancoragem, por exemplo, ”A temperatura média anual na Antárctica é maior ou menor que – 47º C (para âncora baixa ou – 17º C para âncora alta), tiveram de listar os atributos do alvo que lhes ocorreram na mente e só depois respondiam à pergunta absoluta sobre a temperatura média anual na Antárctica. Os resultados mostraram que, além de um consistente efeito de ancoragem, os sujeitos aos quais foi apresentada a âncora baixa listaram mais pensamentos que implicavam um valor baixo do alvo, por exemplo, “A Antárctica tem as temperaturas mais baixas da Terra”. Os sujeitos aos quais foi apresentada uma âncora alta listaram atributos do alvo congruentes com um valor elevado do alvo (Mussweiler & Strack, 1999, estudo 4), revelando, assim, a natureza semântica do efeito. Noutro estudo, foi também demonstrado que os sujeitos eram mais rápidos a reconhecer palavras associadas a carros caros como “Mercedes” ou “BMW” após compararem o preço médio de um carro alemão com uma âncora alta (40.000€) do que após a comparação com a âncora baixa (20.000€), mas que reconheciam mais depressa, palavras associadas a carros baratos como “Volkswagen” após a comparação com a âncora baixa (Mussweiler & Strack, 2000a). Ou seja, a informação congruente com a âncora parece ficar efectivamente mais acessível para o julgamento, evidenciando, o paralelismo entre os fenómenos de primação semântica e o efeito de ancoragem.

A Consistência do Efeito de Ancoragem

Esta conceptualização do efeito de ancoragem enquanto um processo essencialmente semântico, implicando um grande nível de automatismo1 subjacente, permite explicar e prever uma grande consistência e facilidade em obter o efeito. Por outras palavras, enquanto processo de natureza semântica e automática, será fácil observar um efeito de ancoragem nos julgamentos e decisões. Tão fácil, que em determinadas condições de exposição, o difícil será mesmo evitar que este ocorra, o que explicará a existência de manifestações empíricas de ancoragem nos mais variados contextos de decisão “reais”, como veremos mais à frente. De facto, vários estudos têm evidenciado a consistência e robustez do efeito, uma vez que a utilização de diferentes manipulações do tipo de instruções, âncoras ou tarefas têm sido incapazes de evitar a ancoragem dos julgamentos.

Por exemplo, mesmo quando os sujeitos são avisados do enviesamento (e.g. Wilson et al., 1996), quando as âncoras são valores desprovidos de qualquer significado (e.g. Critcher & Gilovich, 2008) quando as âncoras são geradas de forma completamente aleatória (e.g. Englich, Mussweiler, & Strack, 2006), ou quando as âncoras são valores completamente implausíveis (e.g. Strack & Mussweiler, 1997) o efeito de ancoragem não é afectado.

Noutros estudos, procurou­‑se manipular a motivação dos sujeitos com a atribuição de incentivos para bons desempenhos na tarefa (incentivos monetários ou publicação dos resultados na tarefa) (e.g. Wright & Anderson, 1989; Tversky & Kahneman, 1974; Wilson et al., 1996), mas sem sucesso na eliminação do efeito. Da mesma forma, nem o recurso a sujeitos especialistas nos temas utilizados nas tarefas de ancoragem, permitiu eliminar o efeito (e.g. Kaustia, Alho, & Puttonen, 2008; Northcraft & Neale, 1987). O que, como veremos mais à frente, poderá ter grandes implicações sociais e económicas.

A robustez do efeito é ainda demonstrada em estudos que mostram um efeito de ancoragem na ausência da pergunta comparativa. As pessoas podem, assim, ser ancoradas a valores relevantes para o julgamento absoluto (Northcraft & Neale, 1987), ou podem, na ausência de valores de referência, gerar valores aproximados aos quais são ancoradas para responder às perguntas absolutas (e.g. Epley & Gilovich, 2001). Por exemplo, para estimar a temperatura de congelação da vodka, as pessoas tendem a gerar o valor de congelação da água (0ºC) como âncora, e a ajustar até uma resposta a partir dessa âncora (Epley & Gilovich, 2001). Aliás, mesmo a mera exposição extensiva a determinado valor pode influenciar os julgamentos. Por exemplo, a exposição repetida a números elevados (vs. baixos) numa tarefa não relacionada (ex., escrever números numa folha de papel), levou a que as estimativas do número de estudantes que iriam contrair cancro fossem mais elevadas (Wilson et al., 1996). Da mesma forma, mas levado ao extremo, um estudo demonstrou que o efeito de ancoragem ocorre mesmo com a apresentação subliminar das âncoras (Mussweiler & Englich, 2005), deixando clara a natureza automática do fenómeno.

Esta consistência de natureza semântica reflecte­‑se, ainda, na resistência temporal que o efeito apresenta. Mesmo quando a distância temporal entre a pergunta comparativa e a pergunta absoluta é de uma semana, o efeito continua a ocorrer, e as respostas à pergunta absoluta a ser enviesadas no sentido da âncora (Mussweiler, 2001).

Como vimos, existe um grande suporte empírico para a teorização do efeito de ancoragem enquanto um processo de natureza semântica e largamente automático. Estes dados experimentais, suportam a natureza semântica do efeito de ancoragem de forma consistente, evidenciando a acessibilidade da informação sobre o alvo consistente com a âncora no momento em que os sujeitos têm de fazer o julgamento sobre o alvo. Demonstram, ainda, um elevado nível de automaticidade subjacente ao processo, uma vez que a informação por mais irrelevante que seja para o julgamento poderá influencia­‑lo, além de que parece ser muito difícil controlar os seus efeitos, mesmo que nos encontremos motivados para isso.

Note­‑se que estas evidências suportam modelos teóricos, pelo que a partir da conceptualização validada do efeito de ancoragem enquanto um fenómeno de natureza essencialmente semântica, pode­‑se inferir e compreender a grande consistência e facilidade que existe em obter o efeito, pensar em estratégias de correcção que protejam as nossas decisões de enviesamentos por ancoragem, assim como derivar contextos em que este possa ocorrer. Como já vimos e continuaremos a ver de seguida, a partir da teoria foram possíveis observar­‑se extensões do efeito de ancoragem em muitos contextos de decisão diferentes. Ou seja, as extensões empíricas que iremos apresentar, sendo mais ou menos intuitivas, foram encontradas por haver teorias e contribuem para o processo de validação das mesmas. Por exemplo, embora em negociação seja intuitivo e de senso comum que se queremos vender devemos pedir um preço elevado (e depois baixar) e não começar logo pelo preço que queremos, demonstrando (“boa”) vontade de negociar. Não é nada intuitivo ou evidente que copiar números para um papel ou ser expostos a números irrelevantes terá o mesmo efeito, e que esses efeitos sejam esperados na atribuição de penas nos tribunais ou de preços dos mercados, como iremos ver. Assim, demonstrar que este fenómeno existe além laboratório e que tem impacto em situações “reais” é uma derivação teórica, ou seja, a extensibilidade empírica e as semelhanças subjacentes são função da teoria, pelo que a aplicabilidade dos estudos experimentais decorre da validação teórica. Passamos então a apresentar essas extensões empíricas do efeito de ancoragem enquanto fenómeno de natureza semântica, nos mais diversos contextos de decisão aplicada, ou seja, em decisões com impacto prático na vida quotidiana.

Contextos de Aplicação

Como temos vindo a referir, a partir da teoria foi possível observar­‑se extensões empíricas do efeito de ancoragem, demonstrando a importância aplicada dos estudos experimentais. Começamos por demonstrar que, muitas vezes, valores numéricos presentes no contexto de decisão, por mais irrelevantes e arbitrários que sejam, podem influenciar as nossas percepções e decisões quotidianas por ancoragem (1). Em seguida serão explorados contextos específicos especialmente susceptíveis ao efeito de ancoragem que podem implicar grandes e graves consequências, como nos contextos de consumo em processos de avaliação (2) ou negociação (3), em contextos de estimação de probabilidades e percepção de risco (4), ou em contextos de importância social como a economia (5) ou as decisões judiciais (6).

1. Âncoras Por Acaso

Em muitos contextos aplicados em que ocorre o efeito de ancoragem, pode­‑se pôr a hipótese de que as pessoas consideram que a informação utilizada como âncora apresenta alguma utilidade e validade ecológica para tomar a decisão (e.g., Grice, 1975). Contudo, a partir da teorização do efeito enquanto um fenómeno de natureza semântica largamente automático, foram encontradas evidências de que informação completamente arbitrária e irrelevante, presente em contextos “reais” de decisão, pode influenciar e ancorar as decisões quotidianas a esses valores completamente aleatórios e acidentais. Neste sentido, Critcher e Gilovich (2008) realizaram uma série de estudos onde exploraram a ideia de que qualquer valor presente no ambiente de decisão se pode tornar uma âncora por acaso.

Num dos estudos os experimentadores deram uma descrição fictícia sobre um atleta (um jogador de futebol americano) e apresentaram­‑no utilizando o número 54 ou com o número 94 na camisola. De seguida pediram aos sujeitos que fizessem uma estimativa sobre qual a probabilidade desse atleta ter uma boa prestação no campeonato. Por inacreditável que pareça os sujeitos estimaram desempenhos significativamente melhores quando o número da camisola era mais elevado (Critcher & Gilovich, 2008, estudo 1). Isto demonstrou que um valor completamente irrelevante para inferir o desempenho do atleta ancorou as estimativas de desempenho dos sujeitos.

Pensando agora na compra de um smartphone ou outro gadget qualquer, normalmente esse tipo de produtos de consumo tecnológico tem associado um número de modelo como o Nokia N97 ou o Nokia 5800 acontece que estes números que aparentemente só indicam a versão do modelo podem alterar as percepções em relação ao produto. Critcher e Gilovich (2008, estudo 2) apresentaram então a mesma descrição de um telemóvel aos sujeitos, variando o nome do modelo, P17 ou P97. Pediram então aos sujeitos que fizessem prognósticos de venda desse modelo de telemóvel, uma vez que o seu sucesso iria depender da sua qualidade. Mais uma vez, os sujeitos foram ancorados a um valor completamente acidental prevendo maior sucesso e inferindo maior qualidade no modelo P97 do que no modelo P17. Noutro exemplo, Critcher e Gilovich (2008, estudo 3) demonstraram também que os participantes estavam dispostos a pagar mais para comer num restaurante chamado Studio 97 (âncora alta) do que no Studio 17 (âncora baixa), especialmente se não se recordassem do nome do restaurante.

Estes exemplos ilustram claramente a influência que valores completamente acidentais, podem ter nas nossas decisões. A exposição a valores completamente arbitrários levou, ainda assim, à activação de informação sobre o alvo congruente com essa informação irrelevante, influenciando os julgamentos posteriores. Posto isto, é natural que alguns contextos que lidam frequentemente com números estejam especialmente susceptíveis a fenómenos de ancoragem. Os contextos de consumo, que implicam negociação ou avaliação e manipulação de valores numéricos, são um bom exemplo desta ideia, como veremos de seguida.

2. Avaliação

Pensando nas situações em que se tem de pedir a um especialista para avaliar o preço de algo que se quer vender, como um carro ou obras de arte desenterradas no sótão da avó, ou, por outro lado, nas situações em que queremos comprar determinado artigo em segunda mão. Qual é a melhor solução para não ser enganado nestes negócios? Pedir a opinião a um especialista sobre o valor e preço desse produto dirá a maior parte das pessoas. Concordamos plenamente, no entanto, advertiríamos para o risco dos especialistas se enganarem…ou serem ancorados.

Por exemplo, num estudo, o experimentador levou um carro a um especialista que lhe pudesse dizer se um problema que ele tinha no carro valeria a pena arranjar, uma vez que o carro já era velho. Para ajudar o expert a decidir, o experimentador apresentou­‑lhe alguns factos sobre o carro, os quilómetros percorridos, o ano e, deu­‑lhe a sua estimativa de quanto valia o carro. Neste último ponto, o experimentador poderia dar uma âncora alta 5,000 euros ou uma âncora baixa 2,800 euros, depois perguntava ao expert se ele achava que esse valor era maior ou menor que o preço do carro, pedindo depois uma estimativa absoluta ao expert. Como esperado, o valor atribuído pelo expert era consistentemente superior para a âncora alta, mostrando um efeito de ancoragem, que teria repercussões na decisão de arranjar ou não o carro e em decisões sobre o preço de venda do carro (Mussweiler, Strack & Pfeifer, 2000).

Noutro estudo semelhante, pediu­‑se a agentes imobiliários que fizessem uma avaliação sobre o valor de uma casa, sendo­‑lhes antes apresentada informação sobre a casa, inclusive o preço da mesma. Naturalmente as estimativas avaliativas da casa foram tão maiores quanto maior fosse o preço apresentado na lista, revelando, mais uma vez, um efeito de ancoragem (Northcraft & Neale, 1987).

Parece então que não se pode confiar nos agentes imobiliários, embora, mesmo quando é o próprio comprador a avaliar o imóvel, esse processo está também sujeito ao efeito de ancoragem Num estudo de Chapman e Johnson (1999), após observarem os atributos de um apartamento­‑âncora considerado atractivo, os sujeitos mostraram­‑se dispostos a dar mais dinheiro por um apartamento­‑alvo, e demoraram mais tempo a olhar para os atributos positivos desse apartamento­‑alvo. Por outro lado, quando o apartamento­‑âncora era considerado indesejável, o apartamento­‑alvo não era considerado tão valioso, e os sujeitos demoravam mais tempo a olhar para os seus atributos negativos (Chapman & Johnson, 1999, estudo 1). Da mesma forma, o efeito de ancoragem também se manifesta na avaliação de produtos de consumo menos importantes que a compra de casas ou carros, como em produtos alimentares ou electrodomésticos (Janiszewski & Uy, 2008). É importante notar que a maior parte destes estudos decorrem directamente da conceptualização do efeito de ancoragem enquanto um fenómeno de primação semântica e reforçam essa mesma natureza. Por exemplo, a acessibilidade de diferentes tipos de informação favorável (e.g., olhar para os atributos positivos, estimar um maior valor, etc.) em relação a um produto após a exposição a uma âncora alta, dificilmente poderia ser explicado por outro processo que não implicasse um fenómeno de natureza semântica.

Assim, quando o contexto de avaliação nos expõe a determinado tipo de informação pode favorecer uma avaliação mais alta ou baixa do produto em causa. Portanto, se quisermos saber qual é o valor real daquele apartamento ou daquele quadro tipo impressionista encontrado na feira da ladra e pedirmos a opinião a um especialista em arte do séc. XIX, o melhor é não saber o preço do quadro, nem dizer que o quadro é lindíssimo e que aquelas cores fazem lembrar Monet, Degas ou Renoir, pois, por muito bom que o especialista seja a julgar preços de obras perdidas, os nossos processos cognitivos são bem melhores a incluir valores e atributos irrelevantes nas nossas decisões, é caso para dizer, que o segredo é a alma do negócio!

3. Negociação

E por falar em feiras, um aspecto central da compra e venda nestes contextos é a negociação, que também é afectada pelo efeito de ancoragem. De facto, devido ao fenómeno de ancoragem, as situações de negociação podem ser comparadas a um duelo de cowboys, o primeiro a sacar ganha. Numa série de estudos, Critcher e Gilovich (2001) demonstraram que o primeiro dos intervenientes da negociação a lançar um valor faz um melhor negócio. Ou seja, quando o vendedor era o primeiro a fazer uma oferta o valor do acordo final era mais próximo da proposta inicial do vendedor do que quando a primeira oferta era feita pelo comprador e isto verificou­‑se mesmo em negociações on­‑line (Critcher & Gilovich, 2008). Estes dados estão, também, em linha com os estudos que mostraram que âncoras aleatórias afectam a disponibilidade para pagar (o valor máximo que se dispõem a pagar) e a disponibilidade para aceitar (o valor mínimo para aceitar uma oferta) (Simonson & Dorlet, 2003). No entanto, a principal conclusão que se pode tirar é que o segredo de um bom negócio, é ser o primeiro a sacar de um valor, ou seja, a arte de regatear é acessória pois o vencedor foi definido à partida.

4. Probabilidades

Outra área de julgamentos que cedo se percebeu poder ser afectada por este processo heurístico de ancoragem foram os julgamentos e estimativas de probabilidade. A possibilidade de informação irrelevante influenciar os julgamentos de probabilidade pode trazer grandes consequências para as decisões e comportamentos quotidianos, desde questões sobre o tempo a ava­liações de risco.

Uma das primeiras aplicações do fenómeno de ancoragem foi na explicação da falácia do planeamento enquanto sobrestimação da ocorrência de eventos conjuntivos (a probabilidade de vários acontecimentos independentes ocorrerem em conjunto) ou subestimação de eventos disjuntivos (i.e., a probabilidade de pelo menos um evento, em vários, ocorrer) (Sherman & Corty, 1984). Por exemplo, na estimativa de probabilidades de eventos conjun­tivos, como a probabilidade de sucesso de um novo restaurante, é necessário considerar a probabilidade de vários acontecimentos, por exemplo, a pro­babilidade de ter boa localização, a probabilidade de ter bons produtos, a probabilidade de ter bons empregados, a probabilidade de ter concorrência, entre outros. As pessoas podem, então, ancorar­‑se à probabilidade de ocorrência de apenas uma parcela desse evento (e.g. boa localização), que se for elevada deverá levar a uma elevada estimativa de ocorrência do evento conjuntivo (neste caso o sucesso do restaurante), desconsiderando outras parcelas dessa conjunção (e.g. existência de concorrência, qualidade do produto, etc.).

Os jogos e apostas que dependem naturalmente das estimativas de probabilidade de ganhar, são também susceptíveis a este fenómeno. Por exemplo, após a exposição a valores elevados, as pessoas passam a atribuir maior valor a lotarias do que quando expostas a valores baixos (e.g. Chapman & Johnson, 1994). Além disso o fenómeno de ancoragem pode também contribuir para a explicação da falácia do jogador: a crença de que a probabilidade fixa de um acontecimento, varia (aumenta ou diminui) de acordo com os acontecimentos mais recentes. Por exemplo, no lançamento de moedas existe uma probabilidade fixa de 50% de sair uma cara ou uma coroa. No entanto, após uma série de ocorrências consecutivas de um resultado, por exemplo, cara, a probabilidade percebida da série continuar diminui e o resultado coroa torna­‑se mais provável para os jogadores, embora cada lançamento seja um acontecimento independente. Deste modo, os jogadores, parecem ser ancorados às propriedades probabilísticas estimadas inicialmente, esperando que essas propriedades se mantenham no conjunto de acontecimentos, independentemente do tamanho da amostra e da relação de dependência ou independência dos acontecimentos. Ou seja, se a probabilidade de calhar cara e coroa é 50%, no total de lançamentos da moeda deve observar­‑se o mesmo número de caras e de coroas, independentemente do tamanho da amostra e de se tratarem de acontecimentos independentes. Assim, ancorados às probabilidades de partida, os jogadores julgam que após 4 caras a probabilidade esperada de sair uma coroa é maior (Sherman & Corty, 1984).

Também a percepção de risco, que depende da probabilidade percebida de determinado evento negativo ocorrer é susceptível à ancoragem. Por exemplo, Plous (1989) demonstrou que a comparação com uma âncora alta (e.g. 90%) levou a estimativas de probabilidade de ocorrência de uma guerra nuclear muito maiores do que a comparação com uma âncora baixa (e.g. 1%). Da mesma forma, na política surge outro exemplo de estimativas de risco afectadas pelo efeito de ancoragem. Por exemplo, quando os sujeitos eram questionados sobre se a probabilidade de determinado candidato ser eleito era maior ou menor que 20%, as suas estimativas de probabilidade desse candidato ganhar eram muito inferiores quando comparadas com as estimativas de probabilidade realizadas por sujeitos aos quais se perguntou se a probabilidade do candidato ser eleito era maior ou menor que 80% (Mussweiler, Strack & Pfeifer, 2000), mesmo avisando os sujeitos que esses valores âncora haviam sido gerados aleatoriamente.

Concluindo, as estimativas de probabilidade e decisões dependentes desses julgamentos, tão frequentes na vida quotidiana, podem ser influenciadas por valores completamente irrelevantes às probabilidades de ocorrência, evidenciando, mais uma vez a presença do efeito de ancoragem nos mais variados contextos. Continuamos, agora, com a apresentação de mais alguns estudos que ilustram as implicações do efeito de ancoragem em decisões de grande impacto social, como as decisões associadas a contextos económicos e judiciais.

5. Economia

Estudos do Banco Mundial sugerem que o mercado bolsista é extremamente importante para o desenvolvimento da economia de um país, o mercado de valores não só segue o crescimento económico, como proporciona os meios para o prognóstico das taxas futuras de crescimento do capital, da produtividade e da renda per capita. Posto isto, é essencial compreender as movimentações do mercado de valores e o que determina as decisões dos investidores. Esta questão é especialmente interessante se considerarmos que, embora os valores de mercado e o comportamento dos investidores apresentem uma aparente coerência e sensibilidade às notícias e eventos económicos significativos, esperando­‑se que reflictam o valor fundamental de uma empresa, a natureza inerentemente ambígua dos preços das acções (Summers, 1986), sugere que a origem desses valores possa ter sido determinada por factores completamente aleatórios (Ariely, Loewenstein, & Prelec, 2003; 2006). De facto, existem evidências de que os processos de avaliação têm uma grande componente arbitrária, estando sujeitos a fenómenos de ancoragem a informação irrelevante (Ariely et al., 2003; 2006; Mussweiler & Schneller, 2003; Kaustia et al., 2008).

Por exemplo, Ariely e colaboradores pediram para os sujeitos decidirem se estavam, ou não, dispostos a pagar/receber o valor dos 3 últimos dígitos do seu número de segurança social (SS) (uma âncora completamente arbitrária) por determinado estímulo positivo/aversivo que experimentavam antes do julgamento (e.g. garrafa de vinho ou um som aversivo). Foi, então, observado que quanto maior fosse o valor dos 3 últimos dígitos do número de SS, mais os sujeitos estavam dispostos a pagar por um estímulo positivo, ou mais exigiam para serem expostos a um estímulo aversivo embora revelassem grande coerência nas avaliações quanto às diferenças escalares desses estímulos (e.g., mostraram­‑se dispostos a pagar mais por um vinho bom do que por um vinho médio).

Estes dados sugerem que, os processos de avaliação estão inicialmente sujeitos a fenómenos de ancoragem a informação irrelevante, e que as avaliações posteriores serão coerentes com essa avaliação inicial e com as especificidades escalares dos novos estímulos, num processo que parece aplicar­‑se e verificar­‑se nas flutuações do mercado de valores (Ariely et al., 2003, 2006).

Mussweiler e Schneller (2003) demonstraram também a influência de valores economicamente irrelevantes, nas decisões de investimento. Embora do ponto de vista da teoria económica dos mercados, o desempenho passado do preço das acções seja irrelevante para o seu futuro desenvolvimento (Fama, 1998), tanto os investidores privados como os profissionais da bolsa são influenciados pelos valores extremos dos gráficos de desempenho dos preços das acções (Mussweiler & Schneller, 2003). Por exemplo, quando os gráficos do desenvolvimento do preço das acções durante 12 meses tinham um valor extremo positivo os investidores estimavam um preço futuro mais elevado, investiam mais do triplo do dinheiro e vendiam duas vezes menos do que quando o valor extremo nesse gráfico era negativo. Embora ambos os gráficos terminassem com o mesmo lucro de 20%, e os sujeitos tivessem acesso a toda a informação sobre a companhia (Mussweiler & Schneller, 2003). Ou seja, informação teoricamente irrelevante para as decisões de investimento parece ancorar os investidores e determinar as suas decisões.

Concluindo, estes estudos demonstram que as avaliações inerentes aos mercados de valores estão na sua essência e nos consequentes comportamentos de investimento sujeitas a influências arbitrárias e fenómenos de ancoragem. Dessa forma, um fenómeno de natureza cognitiva como a ancoragem parece poder influenciar algo tão importante como o desenvolvimento dos mercados financeiros.

6. Justiça e contexto legal

A atribuição de uma sentença judicial deve ser guiada por factos relevantes e imparcialidade, e, embora se trate de uma decisão com alguma incerteza, o sistema penal, os anos de estudo e de experiência dos responsáveis pelas decisões legais, e a importância da decisão para a vida de outras pessoas, devem proteger essas decisões de influências indesejadas. No entanto, o efeito de ancoragem parece estar acima da lei!

De facto, existem evidências de manifestações do efeito de ancoragem em contextos judiciais, sugerindo que quanto maior for a exigência feita ao tribunal, maior será a compensação atribuída pelo juiz (e.g., Hastie, Schkade, & Payne, 1999; Marti & Wissler, 2000). Por exemplo, Chapman e Bornstein (1996) mostraram que em casos de danos pessoais, a compensação exigida influencia sistematicamente a compensação atribuída pelos júris, assim como a probabilidade percebida do acusado ter sido responsável pelos danos. Ou seja, quanto mais se pedir pelo dano/ofensa, mais se recebe e mais vítima se parece, uma vez que as decisões são ancoradas ao pedido do lesado.

Resultados semelhantes foram, também obtidos em contextos criminais. Especificamente, tem sido demonstrado que profissionais judiciais que assumem o papel de juiz no julgamento de, por exemplo, um caso de violação, são altamente influenciados pelas sentenças exigidas pela acusação (Englich & Mussweiler, 2001; Englich, Mussweiler, & Strack, 2005) independentemente de já terem até mais de 15 anos de experiência (Englich & Mussweiler, 2001), o que está de acordo com estudos correlacionais a partir de registos legais que concluíram que a sentença final tende a ser próxima da sentença recomendada ou sugerida durante o julgamento (e.g. Martin & Alonso, 1997).

Englich e colaboradores (Englich, et al., 2005) demonstraram ainda, que as alegações e exigências feitas pela acusação vão influenciar as próprias alegações e contra­‑propostas da defesa. De facto, após manipular a sentença sugerida pela acusação (alta ou baixa), pediu­‑se a especialistas e profissionais com experiência que fizessem o papel de advogado de defesa em relação a esse caso. Os resultados mostraram um efeito de ancoragem, sendo que, quanto mais pesada fosse a sentença pedida pela acusação, mais pesada seria também a sentença sugerida pela defesa. Da mesma forma, quando se pediu a experts que fizessem o papel de juiz num caso em que eram apresentadas as alegações manipuladas da acusação e as respostas enviesadas da defesa, as penas atribuídas foram, tão maiores quanto mais elevadas fossem as penas exigidas pela acusação. Assim, foi possível demonstrar que devido ao efeito de ancoragem, as alegações da defesa em vez de contrabalançarem as alegações da acusação, simplesmente mediaram a influência dessas alegações na decisão do juiz (Englich et al., 2005).

No entanto, pode­‑se sempre argumentar que os sujeitos foram influenciados pelas alegações da acusação porque as consideraram válidas. Por isso mesmo, Englich e colaboradores (Englich et al., 2006), foram mais longe e demonstraram que especialistas em lei criminal foram igualmente afectados por valores claramente irrelevantes, como os gerados a partir de um dado. Ou seja, após o lançamento de dois dados quando o valor fosse elevado os argumentos incriminatórios tornavam­‑se mais acessíveis e as sentenças eram também mais pesadas do que quando o valor dos dados era baixo, o que resultava em sentenças mais leves, revelando uma ancoragem das decisões penais ao valor dos dados (Englich et al., 2006).

Mais uma vez se demonstrou que o fenómeno de ancoragem tem implicações na vida real e em contextos de extrema importância e responsabilidade social, e onde se procura ter o máximo de controlo sobre as decisões, como o contexto de justiça. Assim, mesmo que os juízes não atirem dados para tomar as decisões legais, eles estão constantemente a ser expostos a potenciais âncoras durante as decisões, quer seja através dos advogados, dos media (Englich et al., 2006), da audiência do tribunal, das opiniões pessoais do companheiro, amigos, vizinhos, ou mesmo através de qualquer valor que esteja acessível na mente do juiz no momento de definir a sentença.

Este conjunto de evidências da ocorrência do efeito de ancoragem em contextos judiciais, assim como nos outros contextos exemplificados, demonstra, mais uma vez, toda a consistência do efeito e revela a sua aplicabilidade e peso em decisões “reais”, das mais irrelevantes e quotidianas às mais importantes do ponto de vista social ou económico. No entanto, é importante não esquecer que muitas das manifestações “aplicadas” do efeito aqui apresentadas partiram directamente da teoria testada e validada no laboratório. Ou seja, a conceptualização semântica do efeito de ancoragem sugere que informação irrelevante, como lançamentos de dados, poderá afectar decisões posteriores em diversos contextos (como atribuição de penas) o que contribuiu para as demonstrações “aplicadas” do efeito. Ao mesmo tempo, estas evidências servem de suporte à própria teoria, uma vez que hipóteses concorrentes dificilmente poderiam prever resultados transcontextuais e de natureza semântica, como um aumento da acessibilidade de informação incriminatória após tirar um valor alto no lançamento de um dado.

Ancoragem aplicada: Conclusão

Esperamos que com esta secção se tenha tornado evidente a aplicabilidade do efeito de ancoragem. Como vimos o efeito de ancoragem pode ocorrer em quase todos os contextos de decisão que envolvam valores numéricos, mesmo em contextos, que dada a sua importância social e pessoal, parecem depender, apenas, de raciocínios deliberados e motivados. Estas evidentes manifestações do efeito de ancoragem em contextos de decisão “reais”, reforçam também a conceptualização do mesmo enquanto um fenómeno semântico largamente automático. No entanto, muitas destas evidências têm a sua origem precisamente na teoria, na compreensão profunda do fenómeno, só possível a partir de estudos laboratoriais extremamente controlados. Ou seja, a compreensão, delimitação e capacidade de previsão deste fenómeno no laboratório, desde a sua descoberta nas experiências seminais de Tversky e Kahneman até à compreensão profunda dos processos cognitivos que lhe estão subjacentes, permitiu construir um corpo teórico e empírico capaz de prever e desenvolver extensões empíricas impressionantes e que dotam o efeito de ancoragem de uma aplicabilidade considerável. Reforça­‑se, assim, a ideia de que o estudo em ambientes controlados, não carece de aplicabilidade, uma vez que a validação teórica permite compreender para depois prever e aplicar fenómenos de natureza cognitiva a contextos “reais”. Como argumentámos, a partir da teoria e sua validação torna­‑se possível prever e compreender outras manifestações do fenómeno, assim como toda a sua consistência e robustez. O corpo empírico apresentado até agora, tem evidenciado que o efeito de ancoragem é extremamente difícil de evitar, apresentando uma grande consistência e resistência às mais variadas manipulações, o que é previsto e reforça a sua conceptualização semântica largamente automática. Assim, será, também, a partir destes princípios semânticos teorizados que poderão ser pensadas estratégias que permitam evitar ou reduzir as manifestações do efeito de ancoragem nas decisões, como veremos de seguida.

Içar a Âncora!

A grande consistência e resistência transcontextual do efeito de ancoragem implica que a influência que a informação irrelevante pode exercer nas nossas decisões seja difícil de contrariar. Contudo, partindo da compreensão dos processos subjacentes à ancoragem, foi possível explorar algumas condições favoráveis à redução do efeito.

A questão que se coloca, é a de como evitar ou corrigir este tipo de enviesamentos cognitivos, ou seja, que condições potenciam o controlo mental, um processo cognitivamente exigente e dependente de vários factores e crenças dos indivíduos (Wilson & Brekke, 1994).

Especificamente, nos contextos de ancoragem, a falta de consciência dos processos mentais que estão a decorrer e a dificuldade em detectar os enviesamentos (Wilson, Houton, Etling & Brekke, 1993) serão factores que dificultam a sua correcção. Além disso, mesmo que os sujeitos reconheçam que o seu julgamento está enviesado, é necessário que estejam motivados para a correcção e que conheçam a direcção e magnitude do enviesamento (Wilson & Brekke, 1994). Naturalmente estas condições nunca foram reunidas nos estudos de ancoragem pelo que a dificuldade em reduzir o efeito pode ter que ver com estas condicionantes do controlo mental. Existem, contudo, algumas evidências de manipulações experimentais que, a partir da conceptualização do efeito de ancoragem enquanto um caso semelhante à primação semântica, reduziram o impacto da âncora nos julgamentos das pessoas.

Embora as manipulações de expertise nunca tenham eliminado o efeito, existem algumas evidências de redução da influência da âncora nas decisões de especialistas (e.g. Kaustia, et al., 2008). Essa redução deve­‑se ao maior nível de conhecimento sobre determinado alvo que irá reduzir o efeito de ancoragem se a âncora for um valor que se encontra fora do intervalo subjectivo de valores plausíveis que o expert tem para o alvo (Mussweiler & Strack, 2000b). Quando a âncora é um valor que se encontra fora desse intervalo, como por exemplo as âncoras implausíveis, os sujeitos ajustam até ao valor mais extremo da sua distribuição subjectiva de valores plausíveis e são ancorados a esse valor limite (Epley e Gilovich, 2006; Mussweiler & Strack, 2000b; Mussweiler & Strack, 2001; Quattrone, Lawrence, Finkel, & Andrus, 1981). Desta forma, quanto maior for o conhecimento sobre o alvo, menor deverá ser a distribuição de valores aceitáveis, e maior será a probabilidade da âncora se encontrar fora desse intervalo. Assim, o efeito obtido dever­‑se­‑á à utilização de um valor extremo do intervalo de valores plausíveis, o limite superior para âncoras altas e o valor limite inferior para âncoras baixas (Mussweiler & Strack, 2000b).

Resumindo, o conhecimento sobre o alvo pode reduzir a influência de âncoras externas, ao reduzir o intervalo de valores aceitáveis para o alvo, embora, mesmo nesses casos, como vimos, o fenómeno continue a ocorrer a partir dos valores limite da distribuição subjectiva de valores plausíveis para o alvo que são auto­‑gerados pelo indivíduo (Mussweiler & Strack, 2000b), a não ser, claro, que esse intervalo se resuma a apenas um valor.

Outras situações onde se encontram reduções do efeito de assimilação das âncoras surgem quando o conhecimento activado pela âncora é desadequado para responder à pergunta sobre o alvo. Por exemplo, quando no paradigma clássico de ancoragem se pede aos sujeitos para comparar o comprimento do rio Mississípi com determinada âncora e depois lhes é pedida uma estimativa absoluta sobre a largura do rio observa­‑se um menor efeito de ancoragem do que quando os sujeitos respondem a uma pergunta absoluta sobre o comprimento do rio (Strack & Mussweiler, 1997; Simonson & Drolet, 2003). Noutro estudo, obteve­‑se mesmo um efeito de contraste, isto é, uma correcção exagerada da resposta, em que as âncoras altas levaram a respostas mais baixas e vice­‑versa, quando, por exemplo as perguntas fossem sobre a mesma dimensão, mas sobre alvos diferentes (Strack & Mussweiler, 1997, estudo 2). Ou seja, dada a natureza semântica do efeito, quando o conhecimento activado pela âncora não se aplica ao julgamento sobre o alvo, a sua influência é claramente reduzida, podendo mesmo ser revertida.

Como vimos, o efeito de ancoragem deve­‑se à activação de informação sobre o alvo congruente com a âncora, que se torna acessível e é recuperada durante a estimativa absoluta sobre o alvo. Posto isto, uma forma de reduzir o enviesamento é activar informação sobre o alvo que seja incongruente com a âncora, anulando, por assim dizer, a influência assimilativa que a âncora iria exercer no julgamento. Por exemplo, num contexto de venda de carros apresentou­‑se toda a informação sobre o carro e pediu­‑se uma avaliação a um especialista. Neste caso, a sugestão de que o carro tem um preço elevado ao especialista, seguida de um pedido de evidências de que esse valor é um preço inadequado para o carro, leva a que as estimativas de preço desse especialista sejam mais baixas, ou menos ancoradas ao valor sugerido inicialmente, do que quando não é pedido para gerar essa informação contraditória (Mussweiler, Strack, & Pfeifer, 2000). Assim, gerar evidências que contrariem a âncora irá resultar num menor efeito de ancoragem uma vez que além de informação sobre o alvo congruente com a âncora será gerada informação sobre o alvo incongruente com a âncora, pelo que na estimativa absoluta sobre o alvo a informação recuperada será menos enviesada no sentido da âncora (Mussweiler et al., 2000).

Embora existam estratégias que permitem reduzir a magnitude dos enviesamentos por ancoragem, estas não são normalmente utilizadas, uma vez que em ambientes naturais, as pessoas não costumam estar conscientes de que os seus julgamentos estão a ser afectados por estímulos irrelevantes. Além de que, mesmo que haja consciência do enviesamento ou dessa susceptibilidade, os processos de correcção serão sempre incertos e de qualidade duvidosa, uma vez que são feitos em incerteza quanto à magnitude do efeito e exigem alguns recursos motivacionais e cognitivos, que podem, ou não estar disponíveis. Deste modo, pode­‑se concluir que o efeito de ancoragem é, de facto, extremamente difícil de evitar, e que a influência que valores irrelevantes podem ter nos nossos julgamentos é uma consequência real do nosso aparelho cognitivo.

Deve, no entanto, destacar­‑se que embora o efeito de ancoragem seja difícil de evitar, dada a sua natureza semântica e largamente automática, as suas consequências na maioria das decisões não são necessariamente negativas. Neste sentido, alguns autores têm sugerido que os processos de decisão heurísticos, são mecanismos de considerável validade ecológica (e.g. Gigerenzer, 2007), pelo que, ancoragem, enquanto assimilação de valores presentes no contexto de decisão, pode revelar­‑se uma estratégia útil à decisão quando nos encontramos em incerteza. De facto, em condições naturais, a informação presente no ambiente de decisão deverá ser mais relevante para a decisão que a informação (irrelevante) apresentada nos estudos sobre ancoragem, pelo que, em incerteza, ser influenciado por essa informação relevante, presente no ambiente, deverá ser útil e contribuir para uma melhor resposta. Reforçando esta ideia de validade ecológica da ancoragem, as supracitadas evidências de sensibilidade do efeito de ancoragem ao conhecimento do decisor, sugerem que quanto maior o conhecimento sobre o alvo, menor será a probabilidade da decisão se basear em informação irrelevante (isto é, valores implausíveis), pelo que o efeito de ancoragem não é um produto cognitivo necessariamente enviesado, podendo, mesmo, ser uma boa estratégia de decisão em determinados contextos de incerteza.

Para os objectivos do presente artigo, é, importante, destacar que independentemente da sua facilidade de utilização, estes processos de correcção, a partir da geração de conhecimento que invalide a âncora ou que é inapropriado ao julgamento sobre o alvo, decorrem da teoria e são, ao mesmo tempo fortes evidências da natureza semântica do efeito. O que acaba por enfatizar, mais uma vez, a relação entre a teoria, a prática e o teste empírico das teorias, que defendemos neste artigo.

Conclusão

Como referimos no início deste artigo, um problema frequentemente apontado à investigação social, e à psicologia experimental laboratorial, como a cognição social, é a falta de relevância aplicada ou falta de validade externa desses estudos. Estas críticas baseiam­‑se na dificuldade que este tipo de investigação tem na generalização de resultados a contextos aplicados. De facto, é inegável que imensas variáveis contextuais, emocionais, motivacionais e cognitivas com influência no comportamento são sistematicamente ignoradas nos estudos experimentais que procuram, antes, controlar variáveis isoladas, resultando numa grande artificialidade e dificuldade de generalização dos resultados.

Este trabalho procurou, contudo, demonstrar que esta artificialidade experimental é por vezes necessária à validação teórica e não implica que esses estudos tenham uma baixa aplicabilidade, antes pelo contrário. Neste artigo, defendemos que só o teste controlado de modelos explicativos e de hipóteses teóricas permite compreender os fenómenos psicológicos e os processos subjacentes, podendo esta compreensão ser posteriormente aplicada aos contextos “reais”. Não são os resultados dos estudos laboratoriais que procuram a generalização, mas sim as teorias devidamente validadas.

O efeito de ancoragem, enquanto um “fenómeno dos laboratórios” mas também, enquanto um fenómeno transversal a muitos contextos de decisão que lidam com julgamentos numéricos, foi utilizado enquanto exemplo desta tese. Foram revistos vários estudos ilustrativos do poder aplicado do efeito de ancoragem. No entanto, reforçámos que grande parte do conjunto de evidências aplicadas aqui apresentadas, só foi possível obter a partir de teorias validadas em estudos “artificiais” de laboratório pois partem da conceptualização validada da ancoragem enquanto um fenómeno de natureza semântica. Ou seja, várias das demonstrações aplicadas do efeito de ancoragem, aqui apresentadas, são extensões empíricas da teoria e como tal resultam da generalização de processos e fenómenos postulados por teorias causais validadas conceptualmente em estudos de laboratório altamente controlados.

No caso do efeito de ancoragem, estudos de laboratório deixaram­‑nos com fortes evidências de que este efeito se deve a um processo semelhante à primação semântica, em que a partir da âncora há uma activação de informação sobre o alvo congruente com a mesma, resultando em respostas enviesadas no sentido da âncora. A partir da validação empírica desta conceptualização teórica, foi possível a sua generalização a contextos aplicados. Neste processo de generalização teórica, como exemplificámos nos mais variados contextos, foram demonstradas aplicações e implicações “reais” e significativas do efeito de ancoragem nas decisões e vida das pessoas. Note­‑se, também, que ao partirem da teoria, as evidências aplicadas acabam por contribuir para a validação da própria teoria, criando um interessante e promissor circuito científico de teoria­‑prática­‑teoria. Note­‑se contudo que não é a existência de evidências aplicadas a contextos “reais” que legitima os estudos de laboratório, pois a sua contribuição para a compreensão dos processos psicológicos vai além da necessidade de generalizar e reunir evidências “aplicadas” de teorias e modelos.

Esperamos, assim, ter contribuído para a compreensão do processo teórico­‑prático da psicologia experimental e em particular da cognição social, psicologia cognitiva e social, ao explorarmos, a partir do efeito de ancoragem, o problema da aplicabilidade da investigação social experimental a contextos “reais”. Assim, também esperamos ter contribuído para a compreensão do efeito de ancoragem do ponto de vista da sua conceptualização de natureza semântica e da sua omnipresença em contextos de decisão que envolvam informação numérica. O que não implica que os nossos julgamentos sejam necessariamente enviesados, pois em situação de incerteza, a assimilação de valores que estejam presentes no contexto de decisão pode ser mesmo o melhor a fazer, dotando esta heurística de considerável validade ecológica (e.g. Gigerenzer, 2007).

Concluindo, a cognição social aplicada não é um peixe fora de água, nem o pretende ser. Heurísticas e fenómenos socio­‑cognitivos são, então, âncoras, que partindo do mar teórico e experimental, nos permitem manter em terreno aplicado.

 

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Autor para correspondência

*Correio eletrónico: joaonizabraga@gmail.com (João Niza Braga)

**Correio eletrónico: lgarcia­marques@fp.ul.pt (Leonel Garcia­Marques)

***Correio eletrónico: mferreira@fp.ul.pt (Mário Boto Ferreira)

 

Notas

1Entenda­‑se processos automáticos enquanto processos sem acesso consciente (i.e., o processo pode ocorrer e afectar o comportamento sem que haja consciência da sua ocorrência), sem intencionalidade (i.e., o processo é iniciado sem controlo consciente), sem controlo (i.e., não é possível evitá­‑lo ou controlar o seu efeito no comportamento), altamente eficientes (i.e., capazes de ocorrer em condições de poucos recursos cognitivos e atencionais) (e.g. Bargh, 1994).