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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.20 no.2 Lisboa  2006

 

Apresentação do Número

 

Luísa Faria 1

 

 

 

A competência tem­‑se vindo a constituir em preocupação funda­men­tal da nossa sociedade, fazendo parte integrante do nosso quotidiano exis­tencial: preocupamo­‑nos com a nossa competência e com a dos outros, e mesmo leigos e cientistas parecem eleger a busca da competência como a motivação básica para agir (Faria & Lima Santos, 1999).

Na verdade, estudar a competência e os seus determinantes implica compreender que, quer a competência, quer a incompetência, são cons­truc­tos de etiologia psicossocial, dependentes dos contextos em que se mani­fés­tam, constituindo realidades sujeitas a mudança e a evolução, “tornando o pro­cesso de classificar alguém como competente ou, pelo contrário, como incompetente, uma tarefa complexa que exige a interacção entre quem per­cebe e quem é percebido (Langer & Park, 1990, in Faria, 2003, p. 28). Assim, a competência é frágil porque é transaccionada numa rede de rela­ções sociais, sendo ainda sensível à intervenção (Aronson & Steele, 2005).

A competência aplica­‑se, ainda, a um largo espectro de níveis, que vão desde as acções concretas, os resultados específicos e os padrões de habilidade, até às características abstractas e compósitas, como a inteligên­cia (Elliot & Dweck, 2005), sendo esta o protótipo de competência mais valorizado pela escola, em particular, e pela sociedade, em geral (Sternberg, 1990).

Apesar de a competência assumir múltiplas dimensões e manifesta­ções, no âmbito do número temático que aqui organizamos, intitulado Con­cep­ções pessoais de competência: perspectivas, avaliação e estudos inter­cultu­rais, definimos competência do ponto de vista das percepções, juízos e avaliações dos sujeitos acerca das capacidades pessoais, assumindo que as concepções pessoais acerca da competência parecem ser determi­nantes essenciais na prossecução de objectivos orientados para a mestria, de um auto­‑conceito positivo e de uma realização melhorada, de tal modo que sentir­‑se competente parece importar mais do que tornar­‑se competente. De igual modo, as percepções ajustadas de competência pessoal conduzem a uma melhor adaptação e ajustamento pessoais e a um maior bem­‑estar psi­cológico global (Faria, 2002).

Ora, uma análise motivacional da competência implica aceitar que esta constitui um motivo psicológico básico do ser humano. De facto, a motivação para a competência é fundamental na adaptação dos seres vivos ao meio, instigando e activando o comportamento, no sentido da mestria, através da procura activa de instrumentos, experiências e resultados optimi­zados (Elliot & Dweck, 2005). Mais ainda, o comportamento “competente” é movido não apenas pela procura positiva da competência, mas também pelo evitamento das consequências aversivas da incompetência.

Deste modo, as concepções pessoais de competência desempenham um papel fulcral no funcionamento humano, nos vários contextos de vida e ao longo das várias fases do ciclo vital. Estão presentes em todas as idades (desde a criança ao idoso) e culturas (individualistas e colectivistas), afec­tando o quotidiano de todos nós, pois, diariamente, lidamos com questões de competência e de incompetência, e as nossas concepções pessoais de com­petência são frequentemente postas à prova. Assim, quer seja no domínio privado (emocional, do bem­‑estar), quer seja no domínio público (escolar, laboral, desportivo, social), a competência percebida desempenha um papel fundamental, sendo fonte de emoções positivas, de orgulho e de ânimo ou, pelo contrário, de emoções negativas, de vergonha e de desânimo.

Em suma, as concepções pessoais de competência são aqui perspecti­vadas como elementos axiais do e no funcionamento psicológico, com im­pac­to no quotidiano de indivíduos de diferentes idades, culturas e con­textos de acção diversificados, abrangendo domínios diversos como o da com­pe­tên­cia intelectual, emocional, social, física e cultural, estando, ainda, na base de constructos fundamentais, como o auto­‑conceito, a auto­‑estima e a auto­‑eficácia.

É nesta senda que organizamos este número, que compreende seis artigos que abrangem constructos relacionados com as concepções pessoais de competência e que incidem, por um lado, nas diferentes manifestações da competência, como a cognitiva e a emocional, e, por outro lado, em cons­tructos ancorados nas concepções de competência, como a auto­‑eficácia, o auto­‑conceito e a auto­‑estima.

Assim, as questões do desenvolvimento intra e inter­‑individual e as relações com o sucesso académico são também desenvolvidas, bem como a construção e adaptação de novas formas de avaliação, particularmente das concepções pessoais de inteligência, da auto­‑eficácia académica e da com­petência emocional.

Abordam­‑se, ainda, a influência da dimensão cultural e as questões interculturais, na comparação das concepções pessoais de inteligência entre os contextos português e italiano, na análise comparativa da competência emo­cional, em sete países diferentes (de Portugal ao Japão), na relação entre as representações sociais da inteligência e as concepções pessoais de inteli­gência, no contexto português, e na influência do individualis­mo/colec­ti­vis­mo nas concepções pessoais de inteligência, em dois contextos culturais – português e romeno.

Saliente­‑se que, apesar de a maioria dos artigos se referir a estudos no contexto académico, estes abrangem alunos de diferentes níveis de ensino, desde o ensino básico ao ensino universitário. No caso particular da valida­ção de um instrumento de competência emocional (Emotional Skills and Competence Questionnaire – ESCQ), os estudos foram realizados em dife­rentes contextos, incluindo o profissional.

Concretizando, temos o artigo que abre este número, da autoria de Luísa Faria, intitulado “Personal conceptions of intelligence: definition, differentiation and emergence as an organizer and integrative model of other motivational constructs”, o qual se propõe definir e caracterizar o modelo das concepções pessoais de inteligência de Dweck, que compreende duas concepções implícitas qualitativamente diferentes (estática e dinâmi­ca), que promovem a prossecução de diferentes objectivos de realização, em contextos académicos. Pretende, também, demonstrar que a adopção de determinada concepção pessoal de inteligência é o resultado de um processo de desenvolvimento diferencial, provavelmente influenciado por certas ca­rac­te­rísticas dos contextos de existência, e propor este modelo como um mo­de­lo organizador e integrador, capaz de reunir num mesmo quadro con­cep­tual outros constructos afins da motivação, tais como os objectivos de rea­lização, o auto­‑conceito, a auto­‑estima, a auto­‑eficácia e as atribuições e respectivas dimensões causais. Finalmente, propõe­‑se alargar a outros con­textos culturais as conclusões teórico­‑práticas obtidas no contexto cultural português, acerca das concepções pessoais de inteligência, no pressuposto de que é importante adoptar uma perspectiva intercultural no estudo e diferen­ciação do impacto de dimensões do desenvolvimento psicológico, pois os mesmos factores de desenvolvimento e de diferenciação não têm sempre a mesma influência em todos os contextos.

Para cumprir tais objectivos apresenta as reflexões e os resultados de um conjunto de estudos, vários transversais e um longitudinal­‑sequencial, no contexto educativo português, conduzidos ao longo dos últimos 18 anos, que visaram não apenas apresentar, definir e delimitar o modelo das con­cepções pessoais de inteligência, mas também aplicá­‑lo, desenvolvê­‑lo e transformá­‑lo, quer pela construção de medidas de avaliação adequadas e do estudo das especificidades do contexto cultural português na manifestação de diferenças, quer pela aplicação desses resultados a outros contextos cul­turais, no quadro de estudos interculturais.

O segundo artigo, de Sílvia Pina Neves e Luísa Faria, intitulado “Construção, adaptação e validação da Escala de Auto­‑Eficácia Académi­ca (EAEA)”, parte do pressuposto de que as expectativas de auto­‑eficácia se referem a domínios de realização específicos, logo, que a sua avaliação deve ser microanalítica e deve implicar a construção de instrumentos de avaliação adaptados às respectivas especificidades, propondo uma nova escala para o contexto português, a EAEA, cujas fases de construção, adap­tação e validação incluem: (i) a definição do respectivo racional teórico­‑prático; (ii) a definição das suas dimensões e a redacção dos seus itens; (iii) o pré­‑teste, que inclui a revisão dos itens por especialistas, reflexões faladas com alunos e um estudo­‑piloto com 207 alunos; e (iv) o estudo de adapta­ção e validação com 1.302 alunos, com a utilização de análises factoriais confirmatórias.

O terceiro artigo, de Ângela Sá Azevedo e Luísa Faria, com o título “Motivação, sucesso e transição para o ensino superior”, problematiza a motivação (auto­‑conceito, auto­‑estima e atribuições e dimensões causais) e o sucesso académico, no quadro da transição do ensino secundário para o ensino superior, período caracterizado como desafiante e ameaçador para os indivíduos, procurando responder à questão de se saber se os alunos com níveis motivacionais superiores se adaptam melhor ao ensino superior e apresentam maior sucesso académico, através da realização de vários estu­dos, quer correlacionais, com uma amostra de 649 alunos do 12.º ano (ava­liação da relação entre motivação e sucesso académico), quer de teste­‑reteste, com uma amostra de 62 alunos do ensino superior (avaliação da mudança intra­‑individual na transição do ensino secundário para o ensino superior).

O quarto artigo, de Luísa Faria e colaboradores, intitulado “Cross­‑cultural validation of the Emotional Skills and Competence Questionnaire (ESCQ)”, apresenta o estudo de validação intercultural do ESCQ, instru­mento classificado como avaliando a “inteligência emocional de tipo traço” ou a “percepção de competência emocional”, que compreende as dimensões de percepção emocional,expressão emocional e capacidade para lidar com a emoção. Tendo sido originalmente desenvolvido no contexto croata, de acordo com a perspectiva teórica de Mayer e Salovey (1997), funda­‑se na aceitação da inteligência emocional como um dos constructos mais actuais e interessantes no domínio da Psicologia, pois combina emoção e inteligên­cia, aceitando o facto de a “emoção tornar o pensamento mais inteligente e de se poder pensar inteligentemente acerca das emoções” (Mayer e Salovey, 1997, p. 5).

Neste artigo, que reúne os resultados obtidos em sete países diferen­tes, são apresentadas as qualidades psicométricas e as relações do ESCQ com outros constructos relevantes, nos contextos croata (Vladimir Takšić), português (Luísa Faria & Nelson Lima Santos), finlandês (Hannu Räty), sueco (Bo Molander, Stefan Holmström & John Jansson), esloveno (Andreja Avsec), espanhol (Natalio Extremera & Pablo Fernández­‑Berrocal) e japonês (Hiroshi Toyota), utilizando amostras­‑alvo de estu­dantes do ensino secundário e universitário, bem como de sujeitos mais velhos (trabalhadores e supervisores de empresas). Assim, procura­‑se de­mons­trar que a inteligência/competência emocional está envolvida em vários contextos de vida, como a escola e o trabalho, podendo contribuir para a promoção de competências sociais e para a manifestação de com­portamentos mais adaptativos e mais eficazes, logo, para a melhoria do bem­‑estar psicológico global dos indivíduos (Lima Santos & Faria, 2005).

O quinto artigo, da autoria de Virgílio Amaral, intitulado “Regula­ções psicossociais na organização de crenças sobre a inteligência: relações entre representações sociais da inteligência e concepções pessoais de inteli­gência”, procura investigar o modo como variáveis de nível macro­social – as representações sociais – podem afectar variáveis de nível micro­social ou individual – as concepções pessoais de inteligência –, apresentando os pro­cessos que regulam a organização de crenças sobre a inteligência em ado­lescentes, nomeadamente a influência da “familiaridade” com o objecto de representação de tais crenças, bem como as relações entre o princípio da “familiaridade” com a inteligência, as representações sociais da inteligência e as concepções pessoais de inteligência.

Finalmente, o sexto e último artigo deste número, da autoria de Laura Ciochină e Luísa Faria, intitulado “Individualismo e colectivismo: funda­mentos conceptuais para o estudo intercultural das concepções pessoais de inteligência de estudantes portugueses e romenos”, procura evidenciar o modo como a dimensão de individualismo­‑colectivismo (IND/COL) se rela­ciona com aspectos psicológicos do comportamento dos indivíduos, parti­cularmente no que se refere às concepções pessoais de inteligência (CPI), analisando a influência do IND/COL nas CPI de estudantes portugueses e romenos, partindo do pressuposto que o contexto cultural em que os indiví­duos vivem e agem modela tais concepções e, implicitamente, influencia os respectivos padrões de realização e de desempenho escolar.

Concluímos esta apresentação, reforçando quer a convicção de que a competência e a incompetência são dependentes do contexto social em que se manifestam, logo, são dinâmicas, flexíveis e mutáveis, quer a convicção de que sentir­‑se competente é sentir­‑se autónomo, válido, relacionado com os outros e capaz de estabelecer e concretizar objectivos, pois, parafraseando Postman (1996), “aquele que tem um ‘porquê’ para aprender, [para evoluir e tornar­‑se mais competente] pode suportar quase tudo”.

 

 

 

Referências

Aronson, J., & Steele, C. M. (2005). Stereotypes and the fragility of academic com­petence, motivation and self­‑concept. In A. J. Elliot & C. S. Dweck (Eds.), Handbook of competence and motivation (pp. 436­‑456). New York: The Guilford Press.        [ Links ]

Elliot, A. J., & Dweck, C. S. (2005). Competence and motivation: Competence as the core of achievement motivation. In A. J. Elliot & C. S. Dweck (Eds.), Handbook of competence and motivation (pp. 3­‑12). New York: The Guilford Press.

Faria, L. (2002). Competência percebida: Desafios e sugestões para lidar com a exce­lência. Sobredotação,3 (2), 55­‑70.

Faria, L. (2003). Algumas reflexões sobre a competência e a incompetência: Desa­fios para a intervenção psicopedagógica. Sobredotação, 4 (2), 25­‑36.

Faria, L., & Lima Santos, N. (1999). Auto­‑conceito de competência: Diferenças em fun­ção do agrupamento de estudos no contexto escolar português. Mente So­cial, 5 (1 e 2), 75­‑88.

Lima Santos, N., & Faria, L. (2005). Inteligência emocional: Adaptação do “Emo­tional Skills and Competence Questionnaire” (ESCQ) ao contexto por­tu­guês. Revista da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UFP, 2, 275­‑289.

Mayer, J. D., & Salovey, P. (1997). What is emotional intelligence? In P. Salovey & D. J. Sluyter (Eds.), Emotional development and emotional intelligence. Edu­cational implications. New York, N.Y.: Basic Books.

Postman, N. (1996). The end of education. Redefining the value of school. New York: Vintage Books.

Sternberg, R. J. (1990). Prototypes of competence and incompetence. In R. J. Sternberg & J. Kolligian, Jr. (Eds.), Competence considered (pp. 117­‑145). New Haven: Yale University Press.

 

1 Professora Associada com Agregação da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.