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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.18 no.1 Lisboa jan. 2004

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v18i1.408 

Dinâmicas posicionais e dinâmicas representacionais reflexões e interrogações

Positional dynamics and representational dynamics: thoughts and interrogations

 

Gàbrielle Poeschl1

1Professora na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

 


RESUMO

A teoria das representações sociais debruça-se sobre o modo como é construído o conhecimento no decurso das interacções sociais, e analisa a lógica subjacente ao modo como conceptualisamos os objectos sociais e nos exprimimos acerca deles. Uma das conclusões da teoria é que a forma como pensamos e falamos acerca desses objectos traduz a nossa posição no campo social, contribuindo, assim, para a manutenção da ordem social. Esta conclusão parece, np entanto, entrar em contradição com a perspectiva de Moscovici (1961), quanto à natureza dinâmica das representações sociais. Assim, a questão de saber se, como, e porquê as representações sociais variam toma-se um objecto de análise pertinente. Este número de Psicologia incide sobre a relação entre as dinâmicas posicionais e as dinâmicas representacionais, salientando a sua complexidade. Os artigos propostos revelam que, em alguns casos, as posições assimétricas dos indivíduos na hierarquia social, se reflectem em oposições nos discursos expressos, e, noutros casos, não. As variações representacionais traduzem, por vezes, mudanças individuais de posição na estrutura social, sendo, outras vezes, induzidas pelos contextos em que são evocados os objectos sociais. Estes últimos ajustamentos de opinião poderiam não permanecer para além das situações de comunicação, o que sugere que a plasticidade do pensamento social pode colidir com a notável resistência à mudança das representações sociais.

Palavras-chave Representações sociais; homologia estrutural; mudança social; reprodução social; mobilidade social.


ABSTRACT

Social representations theory focuses itself on how knowledge is constructed in the course of social interaction, and analyses the logic that underlies the way individuals conceptualise social objects and express themselves about them. One of the theory's main conclusions is that individuals' position in the social field translates into their way of thinking and speaking about these objects, thus contributing to the maintenance of social order. However, this conclusion seems inconsistent with Moscovici's (1961) contention that social representations have a dynamic nature. This seeming contradiction thus raises the relevant question of whether, how, and why do social representations evolve in time and vary across groups. The present issue of Psicologia focuses on the relationship between positional dynamics and representational dynamics, while emphasizing its complexity. The present papers suggest that, whereas in some cases, individuals' divergent discourses mirror their asymmetrical positions in the social hierarchy, in other cases, they do not. Sometimes, individual changes of position in the social structure translate into representational variations, whereas, other times, these variations ensue from the particular contexts in which social objects are evoked. Ultimately, these adjustments of opinion would not last beyond the specific situations of communication, suggesting that the plasticity of social thinking may collide with social representations' notable resistance to change.


 

De forma muito sucinta, a teoria das representações sociais estuda uma forma particular de conhecimento, o conhecimento do senso comum (Herzlich, 1972). Relativamente a outras correntes teóricas que estudam os processos através dos quais as pessoas adquirem, organizam e utilizam o seu conhecimento (para uma revisão, cf. Markus & Zajonc, 1985), a teoria das representações sociais distingue-se pela sua ênfase na forma como são estruturados os objectos de conhecimento no decurso das interacções sociais, salientando o impacto das pertenças sociais nesta estruturação (para uma apresentação da teoria, ver Vala, 1993; 2002).

Na obra em que introduziu a noção de representação social, Moscovici (1961, 1976) descreveu alguns dos conceitos básicos da teoria, como os de meta-sistema, de objectivação e de ancoragem (ver Doise, 1990). Fundamental para compreender a diferença entre pensamento individual e pensamento social, a noção de meta-sistema refere-se à regulação das opiniões que formamos em situação de comunicação. Assim, o meta-sistema funciona como um filtro cognitivo normativo que controla o que ouvimos e o que dizemos, no intuito de mantermos a coerência do sistema de pensamento do nosso grupo. Por outras palavras, o modo como conceptualizamos os objectos sociais e como nos exprimimos acerca deles nas interacções sociais obedece a uma lógica particular que preenche várias funções, como as de justificar e orientar os nossos comportamentos e as relações que temos com outras pessoas e outros grupos, e de defender o valor positivo que atribuímos à nossa identidade social.

Este modo de funcionamento do pensamento social tem uma dupla consequência: a nossa forma de pensar e de falar acerca de determinados objectos sociais não só traduz a nossa posição no campo social mas também contribui para a manutenção da estrutura social (Doise, 1990). À primeira vista, esta última afirmação pode parecer contraditória com a posição de Moscovici (1961,1976), que insiste sobre a natureza dinâmica das representações sociais, propriedade que, aliás, incitou o autor a diferenciar as representações sociais das representações colectivas descritas por Durkheim (1898,1996). A questão de saber se, como e porquê variam as representações sociais tornou-se assim rapidamente um objecto de análise privilegiado para os investigadores no domínio. Este número de Psicologia apresenta uma parte da reflexão produzida sobre as funções e variações representacionais, procurando, nomeadamente, oferecer um panorama actualizado da investigação acerca da relação entre dinâmicas posicionais e dinâmicas representacionais.

De facto, as relações entre funções e variações representacionais podem ser examinadas a partir de várias posições teóricas. Assim, uma primeira perspectiva focaliza-se sobre a estrutura interna da representação de um determinado grupo acerca de um objecto particular, procurando identificar os elementos fundamentais e consensuais da representação, que formam o chamado "núcleo central", e os factores susceptíveis de gerar a modificação desse núcleo. Os trabalhos, hoje em dia clássicos, que foram realizados nesta perspectiva (como o estudo de Guimelli, 1989, sobre a representação da caça e da natureza) indicam que uma mudança das práticas sociais é o que mais eficazmente leva a uma transformação de representação (cf. Abric, 2001-2, para uma apresentação desta abordagem).

Uma segunda perspectiva focaliza-se já não sobre o que é consensual na representação de um determinado grupo, mas sim sobre o que diferencia o pensamento de diferentes grupos sociais, partindo do princípio de que as representações sociais organizam as relações (reais ou simbólicas) entre os grupos (Doise, 1990). Nesta abordagem, diferentes representações traduzem, de acordo com o modelo da homologia estrutural (Bourdieu, 1979; Doise, 1985), diferentes posições no campo social e/ou diferentes maneiras de representar as relações entre grupos sociais. Esta posição teórica é ilustrada no primeiro artigo, onde Clémence analisa as concepções da violência no contexto escolar. Examinando alguns factores susceptíveis de facilitar a emergência de conflitos entre pares ou entre docentes e alunos, Clémence discute, ainda, diversas propostas de intervenção destinadas a reduzir o sentimento de insegurança no meio escolar, salientando a importância de ter em conta a evolução das dinâmicas relacionais entre pares e entre gerações para compreender o fenómeno da violência escolar.

Parece óbvio que o facto de os grupos relacionados num campo social ocuparem posições hierarquizadas que se reflectem no seu modo de pensar possa suscitar oposições e reivindicações. Todavia, isso nem sempre acontece. Em particular, as oposições e reivindicações são pouco visíveis quando as posições dos grupos na sociedade estabelecem normas de relações entre indivíduos cuja identidade é ostensivamente definida com base na sua pertença social. Este facto é saliente, nomeadamente no que respeita aos grupos sexuais, e reflecte-se em representações notavelmente estáveis e consensuais da masculinidade e da feminilidade. Neste contexto, Poeschl, Silva e Clémence relatam algumas etapas da estruturação dessas representações e analisam alguns dos factores que, na actualidade, podem explicar a sua resistência à mudança, além dos leves ajustamentos que permitem dar conta da evolução das práticas e das posições das mulheres na nossa sociedade. Os autores sugerem que as mulheres ainda não encontraram uma forma de construir uma identidade positiva e distinta da identidade masculina que lhes permita redefinir as suas aspirações e, portanto, as relações entre os sexos.

Às dificuldades que surgem para levar a cabo uma mudança da ordem social pode-se opor a relativa facilidade com que os indivíduos parecem ser capazes de, individualmente, progredir na estrutura social, mudando (quando os grupos são permeáveis) de grupo de pertença. Assim, uma terceira perspectiva analisa as variações representacionais resultantes das mudanças de posição dos indivíduos na estrutura social, assumindo, de acordo com o modelo da homologia estrutural, que os indivíduos que mudam de posição social mudam de representações, adoptando as representações veiculadas pelo novo grupo de pertença (Viaud, 1999). O estudo de Maia e Poeschl, que analisa as representações sociais dos futuros quadros e dos quadros das empresas privadas e da administração pública, apresenta uma ilustração deste fenómeno. Os autores defendem a ideia de que a adopção das representações do grupo de pertença responde à necessidade dos indivíduos de protegerem a sua identidade social, distinguindo (positivamente) o grupo de pertença dum grupo de comparação relevante, de acordo com os princípios enunciados pela teoria da identidade social (Tajfel & Tumer, 1986).

Aprofundando a ideia da homologia entre grupos e representações, a contribuição de Viaud interroga a dinâmica subjacente às mudanças de posições num espaço social. Viaud mostra que as posições dos grupos são muitas vezes arbitrárias, mas instituídas pelos discursos, e que, portanto, a passagem de uma posição à outra só deveria ser possível se for de acordo com regras socialmente definidas. Estas regras podem ser concebidas como formando representações sociais normativas da mobilidade social, mas não impedem que haja alguma incerteza relativamente ao resultado da passagem de uma posição à outra.

Uma quarta perspectiva interessa-se pela análise das variações representacionais nos contextos de evocação dum objecto. Com efeito, as características destes contextos modulam o que dizemos (e o que escolhemos não dizer, como o salientam os trabalhos sobre as "zonas mudas" das representações sociais, cf. Abric, 2001-2), porque dizemos e como dizemos as coisas. O artigo de Gaffié descreve de forma extensa e crítica vários trabalhos realizados (sobretudo por autores de língua francesa) acerca desta problemática. O autor mostra que uma focalização sobre os contextos em que é actualizado um objecto social permite estudar os processos e os factores susceptíveis de produzir variações nas representações (por exemplo, processos de influência social, grau de implicação com o objecto), assim como as causas e as funções de tais variações (por exemplo, momentos históricos específicos, estratégias de diferenciação social). O autor conclui que o impacto dos factores moderadores das representações em contextos de evocação particulares poderia não permanecer para além destes contextos. O carácter ad hoc destes ajustamentos de opiniões às situações de comunicação sugere que a plasticidade do pensamento sodal não deixa de colidir com a notável resistência à mudança das representações sociais.

Em suma, é a análise da tensão entre processos de reprodução e processos de mudança social que constitui o fio condutor que liga as diversas contribuições reunidas neste número especial de Psicologia, contribuições que adoptam contudo ângulos diferentes para observar a relação entre dinâmicas posicionais e dinâmicas representacionais.

 

Referências

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