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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.17 no.2 Lisboa July 2003

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v17i2.453 

O descobrimento do brasil na imprensa diária brasileira: A actualização gradativa da memória sodal1

The discovery of Brazil seen by brazilian newspapers: The gradual actualisation of social memory

 

Denis Giovani Monteiro Naiff*; Celso Pereira de Sá**; Renato Cesar Mõller***

*Doutorando, programa de pós-graduação em psicologia social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

**Professor titular de psicologia social, instituto de psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

***Coordenador geral de pesquisas de demandas sociais, PRODEMAN, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

 


RESUMO

O presente artigo busca descrever a participação gradativa de, pelo menos, uma parte dos media brasileiros no processo de actualização da memória social do descobrimento do Brasil, através da análise das matérias veiculadas pela imprensa escrita diária a respeito do descobrimento, do início da colonização e da comemoração do quinto centenário. A recolha das matérias, realizada durante três anos consecutivos, de 1 de Janeiro de 1998 a 31 de Dezembro de 2000, incidiu sobre quatro jornais de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, O Globo (representantes cariocas do que se convencionou chamar de "grande imprensa"), a Folha de São Paulo (veículo incorporado aos hábitos de leitura das classes média e média-alta do Rio de Janeiro) e O Dia (jornal de grande penetração popular). Os instrumentos de registo das matérias englobaram os seguintes itens: (1) aspectos formais, como a forma discursiva, autoria e suas fontes de informação, procedência da informação (nacional, portuguesa ou doutro país) e instituições citadas; (2) conteúdo substantivo, focalizando as esferas privilegiadas (política / económica, religiosa, cultural / artística, historiográfica, educativa / científica), as categorias de sujeitos históricos envolvidos, o tratamento descritivo ou analítico; (3) pertinência da matéria, ou seja, se a mesma possuía referência directa ou somente alusiva ao tema; (4) orientação comunicativa subjacente, em termos de valorização e tomada de posição frente ao descobrimento do Brasil, com a utilização da distinção feita por S. Moscovici entre difusão, propagação e propaganda. A análise global mostra que, durante todo o período analisado, as transformações são lentas, incidindo principalmente sobre aspectos formais, como o aumento gradativo do número de artigos e reportagens, e quanto à pertinência das matérias, com a diminuição daquelas apenas alusivas. Somente no primeiro semestre do 2000, com a aproximação da data do quinto centenário (22 de Abril), observam-se inflexões significativas nas curvas de desenvolvimento, que indicam a introdução de novos saberes e juízos polémicos no processo de actualização da memória social do descobrimento. Os principais resultados nesse sentido mostram que: (1) os conteúdos substantivos predominantes deixam de ser a comemoração do facto e o facto histórico em si, enquanto as temáticas contemporâneas relacionadas passam a adquirir maior importância nos media; (2) os navegadores portugueses cedem o lugar de principais sujeitos históricos focalizados pelos média aos índios, em função da repercussão das manifestações populares contra as comemorações oficiais; (3) há um aumento na quantidade de análises e juízos críticos a respeito do descobrimento do Brasil, que caracterizam uma orientação subjacente de propaganda, associado a uma diminuição das matérias de difusão, ou seja, que não possuem tomadas explícitas de posição. A memória social actualizada do descobrimento toma-se, assim, ao final do período, mais complexa e politicamente polarizada.

Palavras-chave Descobrimento do Brasil, memória social, imprensa brasileira.


ABSTRACT

The present paper looks for the description of the gradual participation of part of the Brazilian media in the process of update of social memory of the discovery of Brazil, through the analysis of the matters transmitted by the daily written press regarding the discovery, concerning the beginning of the colonization process and the commemoration of the fifth centennial. Data collection of matters, run during three consecutive years (January 1,1998, until December 31, 2000), was undertaken in four newspapers of great circulation in the city of Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, O Globo (representative newspapers of Rio de Janeiro), Folha de São Paulo (representative of the middle classes and average-high class of Rio de Janeiro readers) and O Dia (a popular newspaper). The coding instruments of the matters included the following items: (1) formal aspects, discursive form, authorship and their sources of information, origin of the information (national, Portuguese or other country) and mentioned institutions; (2) substantive content, focusing the privileged spheres (political / economical, religious, cultural / artistic, historical, educational / scientific), the categories of involved historical subjects, the descriptive or analytical treatment; (3) pertinence of the matter, i. e., if it possesses direct or allusive reference to the theme; (4) underlying communicative orientation, in terms of valorization or opinion relatively to the discovery of Brazil, with the use of the distinction done by S. Moscovici among diffusion, propagation and propaganda. The global analysis shows that, during the whole analyzed period, the transformations are slow, happening mainly on formal aspects, as the gradual increase of the number of articles and reports, and as for the pertinence of the matters with the decrease of those just allusive. Only in the first semester of the 2000, with the approach of the date of the fifth centennial (April 22), significant inflections are observed in the development curves, that indicate the introduction of new knowledge and polemical judgements in the process of updating of the social memory of the discovery. The main results show that: (1) the predominant substantive contents stop being the commemoration of the facts and of the historical facts in itself, while the related contemporary themes start to acquired larger importance in average; (2) the Portuguese navigators give up the place of main historical subjects focused by the media and are substituted by the Indians, in function of the repercussion of the popular manifestations against the official commemorations; (3) there is an increase in the amount of analyses and critical judgements regarding the discovery of Brazil, that characterize an underlying orientation of propaganda, associated to a decrease of the diffusion matters, i. e., don't possess explicit position standings. The updated social memory of the discovery becomes, at the end of the period, more complex and politically polarized.

 


Introdução

Desde há algum tempo, tem-se observado nas ciências humanas e sociais um retorno do interesse pelo estudo das dimensões sociais e culturais da memória humana, inicialmente no âmbito da sociologia e da história e, mais recentemente, na psicologia social. Segundo Garzón (1998), "o contexto social da memória vem sendo reivindicado pelos psicólogos há pouco mais de uma década" (p. 17). Contribuindo para superar as limitações que o carácter estritamente sociológico presente nas proposições seminais de M. Halbwachs (1925/1994; 1950/1990) apresentavam ao desenvolvimento do campo, o sociólogo italiano P. Jedlowski (2000) propôs conceituar-se a memória colectiva como "um conjunto de representações sociais do passado que um grupo produz, conserva, elabora e transmite através da interacção entre seus membros" (p. 125).

Explorando-se tal possibilidade de articulação teórico-conceptual entre a noção de memória social ou colectiva e a perspectiva das representações sociais, já pioneiramente esboçada por D. Jodelet (1992), e na esteira da participação em uma investigação anterior sobre as comemorações do quinto centenário dos acontecimentos de 1492 (Sá, Vala & Mõller, 1996), foi possível a construção dos quinhentos anos do descobrimento do Brasil como objecto de pesquisa em termos de uma actualização da memória social/colectiva de acontecimentos remotos" (Sá, 2000; Sá & Vala, 2000). Para completar a fórmula, cabia ainda caracterizar tais acontecimentos como "de abrangência nacional", para assinalar sua distintividade no âmbito dos estudos de memória social, bem como indicar a variável de ordem sociocultural da qual a actualização seria função, qual seja, sua comemoração.

Como indica P Nora (1992), a comemoração dos centenários de datas nacionais — e de seus múltiplos e submúltiplos — é um fenómeno relativamente recente, inaugurado no século XIX com os centenários da independência dos Estados Unidos, em 1876, e da Revolução Francesa, em 1889, aos quais se teria seguido a comemoração pleonástica do centenário do próprio século, em 1900. O desenvolvimento dessa prática sociocultural coincide amplamente com o da comunicação de massa, fazendo com que hoje em dia o fenómeno das comemorações não tenha uma existência independente dos processos de comunicação social que as sustentam.

Na medida em que os processos comunicacionais se tornaram um dos principais instrumentos pelos quais os grupos humanos engendram uma memória colectiva actualizada em substituição àquela que foi inexoravelmente perdida, eles não poderiam deixar de integrar o objecto de pesquisa construído a propósito do quinto centenário do descobrimento do Brasil, juntamente com a "memória primordial" proporcionada pelos livros didácticos (ver, no caso brasileiro, o texto de Oliveira et al, neste volume) e com as "representações sociais vivas" das populações brasileira e portuguesa (exploradas, também neste volume, por Sá et al. e por Mõller et al.).

Neste artigo são, pois, relatados os procedimentos metodológicos e discutidos os resultados obtidos através da análise das matérias referentes ao descobrimento do Brasil e à comemoração publicadas na imprensa escrita brasileira entre os anos de 1998 e 2000.

Metodologia

A pesquisa focalizou quatro jornais diários de grande circulação na cidade do Rio de Janeiro: O Globo e o Jornal do Brasil, principais representantes cariocas do que se convencionou chamar de grande imprensa; a Folha de São Paulo, como um veículo já amplamente incorporado aos hábitos de leitura jornalística das classes média e média-alta do Rio de Janeiro; e O Dia, jornal de ampla penetração popular. A recolha sistemática iniciou-se em 1 de Janeiro de 1998 e encerrou-se em 31 de Dezembro de 2000. A extracção dos dados foi feita com auxílio de uma "ficha de registo e análise das matérias" e de um "manual do analista", ambos especialmente elaborados com vistas à orientação e padronização dos procedimentos de selecção, codificação e análise por parte dos pesquisadores.

Esses instrumentos de recolha de dados comportavam, além de dados de identificação da matéria e do analista, uma parte descritiva e uma parte analítica. Na descrição da matéria incluíam-se o nome do jornal analisado, a forma discursiva de apresentação, as fontes de informação do autor e as instituições citadas. A parte analítica era composta, entre outras dimensões, pelo conteúdo substantivo predominante da matéria, pelas esferas sociais privilegiadas e pelos principais sujeitos históricos citados. Analisou-se ainda a orientação comunicacional subjacente ao conteúdo da matéria, em termos de valoração e tomada de posição frente ao descobrimento do Brasil, tendo sido adaptada para isso a distinção feita por S. Moscovici (1976) entre três sistemas de comunicação: a difusão, caracterizada basicamente por uma ausência de diferenciação entre a fonte e o receptor da comunicação e como uma forma de comunicação que concerne não a um grupo definido, mas ao que normalmente se chama de massa; a propagação, que tem por objectivo expandir e consolidar uma visão organizada de mundo, acomodando selectivamente os conteúdos de outras doutrinas ao seu próprio sistema; e a propaganda, que estabelece as diferenças existentes entre uma visão de mundo considerada correcta e outras perspectivas, consideradas falsas.

Resultados

O total de matérias publicadas pelos jornais seleccionados com relação ao descobrimento do Brasil, à colonização que se seguiu e ao quinto centenário que então se comemorava foi de 1111. Este total apresentou a seguinte divisão: 43,74% (486 matérias) foram oriundas do jornal O Globo, 24,03% (267 matérias) do jornal Folha de São Paulo; 20,97% (233 matérias) do Jornal do Brasil; e 11,26% (125 matérias) do jornal O Dia.

A figura 1 apresenta o número de matérias referente ao descobrimento do Brasil publicadas a cada semestre. Observa-se aí que os períodos compreendidos pelos primeiros seis meses de cada ano apresentaram sempre um incremento na quantidade da informação publicada. Esta explosão mediática sazonal pode ser entendida enquanto reflexo da localização da data do descobrimento neste período. Ao se analisar os resultados ano a ano, também se observa um aumento no volume das matérias, o que confirma a expectativa natural de um crescimento contínuo das matérias veiculadas até o auge das comemorações.

Uma análise mais detalhada dos dados, através da distribuição pelos diferentes veículos de comunicação, é apresentada na figura 2. Os resultados mostram inicialmente uma predominância do jornal O Globo (responsável por 64,32% das matérias veiculadas sobre o tema, no período compreendido entre Janeiro e Junho de 1999). Essa supremacia inicial encontra justificativa no facto de que a poderosa organização a que o jornal era afecta possuía um ambicioso projecto para as comemorações, denominado "Brasil 500 anos", que, dentre outras iniciativas — como o patrocínio de actividades culturais e educativas diversas — fazia sistematicamente, desde 1 de Janeiro de 1998, uma inserção diária na programação de sua rede de televisão, no "horário nobre" das oito horas da noite, da informação de quantos dias faltavam para a data do quinto centenário. A partir do segundo semestre de 1999, a cobertura dos quatro veículos de comunicação estudados torna-se mais equânime, não só em função da proximidade dos festejos oficiais mas também de um desgaste do projecto mediático hegemónico.

Muitas das matérias seleccionadas apenas aludem ao tema do descobrimento para, em seguida, estender-se sobre outros assuntos, enquanto outras o abordam como a questão central do texto. Na figura 3, os resultados quanto à pertinência das matérias mostram que, a partir do segundo semestre de 1999, as comunicações classificadas como alusivas suplantam aquelas que fazem referência directa ao quinto centenário, chegando a perfazer dois terços do total publicado em Abril de 2000. É possível que esta distribuição, ao invés de corresponder a uma apropriação mais leviana do assunto, apenas reflicta a oportunidade encontrada pelos media para, aproveitando-se da actualidade das comemorações, introduzir outros tipos de conteúdos. As campanhas promovidas pelas agências de publicidade, associando seus produtos às comemorações do quinto centenário, são excelentes ilustrações desse fenómeno.

A figura 4, que apresenta as principais formas discursivas utilizadas, ao evidenciar um aumento no número de reportagens (ou seja, notícias acompanhadas de documentos ou testemunhos e que dependem de cobertura, apuramento, selecção, interpretação e tratamento dos dados) e de notícias (relatos de factos ou acontecimentos actuais), em relação ao de notas (pequenas notícias breves e concisas), demonstra a evolução da imprensa escrita para um tratamento menos ligeiro ou leviano das questões relativas ao surgimento da nacionalidade brasileira, ao longo dos três anos examinados. Além disso, o acentuado número de resenhas verificado no período compreendido entre Julho de 1998 e Junho de 1999 correspondeu aos numerosos lançamentos de livros de análises e de ensaios sobre o descobrimento e a colonização do Brasil, que se orientavam para uma socialização do saber produzido nas instâncias académicas a respeito desse facto histórico. Um destaque especial nesse sentido deve ser dado ao fenómeno editorial representado pelas obras do jornalista Eduardo Bueno (1998a, 1998b), bastante raro numa sociedade tão pouco acostumada a consumir livros.

A figura 5 analisa as principais instituições mencionadas nas matérias sobre o descobrimento e sua comemoração. Os resultados demonstram que os discursos construídos transitam predominantemente entre quatro instituições principais: o poder público, presente principalmente através dos preparativos e das comemorações oficiais; as editoras, em resultado dos sucessos comerciais obtidos pelos livros lançados no mercado brasileiro; os museus, através da imensa repercussão obtida com a mega-exposição de arte denominada "Mostra do Redescobrimento", inaugurada em São Paulo e posteriormente tornada itinerante a outras capitais brasileiras; e, finalmente, as universidades, que, com a proximidade de 2000, deixam o papel de coadjuvantes nesta actualização memorial e assumem perante a imprensa a condição de instituições fundamentais para avalizar o exame dos factos e processos relacionados ao descobrimento, tanto antecedentes quanto consequentes, que constituem objectos privilegiados da análise académica.

Os primeiros resultados analíticos (em contraste com aqueles formais examinados até agora) se referem aos conteúdos substantivos predominantes no discurso da imprensa escrita. Na figura 6, a "comemoração do facto" aparece como o principal conteúdo abordado, seguido pelo "facto histórico em si" da chegada dos navegadores portugueses ao Brasil. Por outro lado, o interesse jornalístico natural pelas questões actuais parece bastante evidente durante o primeiro semestre de 2000, reflectindo-se nas frequências então alcançadas pelas "temáticas contemporâneas relacionadas". E importante notar ainda que, no mês do centenário do descobrimento (Abril de 2000), o conjunto das matérias publicadas praticamente se divide entre as comemorações (46,2%) e as temáticas contemporâneas (40%), estas últimas extremamente influenciadas pela questão indígena.

O conjunto seguinte de resultados se refere aos principais sujeitos históricos citados pela imprensa e está representado na figura 7. A predominância concedida aos portugueses (aqui simbolizados pelos navegadores e pela grande maioria dos colonizadores) e aos índios correspondeu à expectativa inicial. Entretanto, merece destaque o facto de que, durante todo o período de 1998 e 1999, os navegadores constituíram o foco privilegiado das matérias jornalísticas, mas houve um aumento progressivo da exploração da figura indígena à medida que se aproximava a data do quinto centenário, levando-a a suplantar em muito a dos navegadores no ano de 2000, em especial no mês de Abril, por conta certamente dos protestos que a envolveram no auge das comemorações. Os negros, sujeitos históricos presentes nos manuais escolares de história desde o início da colonização (ver artigo de Oliveira et al neste volume), são citados em percentuais menos significativos nos jornais analisados, mas apresentam um crescimento contínuo de 1999 para 2000, o que coincide com a trajectória de sua presença nas representações sociais da população brasileira no mesmo período (Sá & Oliveira, 2002).

Os principais resultados encontrados na análise das esferas privilegiadas pela imprensa, apresentados na figura 8, destacam a história como constituindo o âmbito por excelência de desenvolvimento das matérias jornalísticas. A preferência seguinte pelas dimensões da cultura e das artes foi, por certo, grandemente influenciada pela "Mostra do Redescobrimento" e pelos eventos culturais organizados e/ou patrocinados pelo sistema Globo de comunicações. A esfera política, pouco significativa na maior parte do período analisado, ganha relevância com a proximidade das comemorações, em parte pelo próprio fracasso político da organização dos festejos e em parte pelas vigorosas manifestações de protesto por parte daqueles que a história relegou ao papel de vencidos, como as organizadas em Abril de 2000 pelas entidades indígenas na "costa do descobrimento".

A figura 9 apresenta a evolução dos dados quando analisados sob a óptica das orientações subjacentes aos discursos produzidos pela imprensa a respeito do quinto centenário. A predominância de conteúdos classificados como "difusão" reflecte a própria escolha dos veículos de comunicação estudados, ou seja, jornais com características mais generalistas, ao invés de veículos representativos de grupos sociais específicos. Entretanto, isto não significa que as outras estratégias comunicacionais não tenham estado presentes. Por exemplo, o aumento no número de análises e juízos críticos a respeito do descobrimento e da comemoração na imprensa, conforme se aproximava a data do quinto centenário, tem na "propaganda" sua orientação comunicacional predominante. Esta — a serviço basicamente dos propositores de uma "história dos vencidos", que se opõem às comemorações oficiais — alcança um ápice no mês de Abril de 2000, quando se torna responsável por metade (50,8%) de tudo o que foi então publicado sobre o assunto nos jornais estudados. Por outro lado, a propagação", que caracterizaria os esforços de preservação da "história oficial", mantém uma presença modesta — em queda mesmo durante parte do período —, só experimentando algum aumento no primeiro semestre de 2000, o que reflecte a ineficiência e a inadequação, para não dizer o fracasso, das iniciativas de comemoração do governo è das organizações Globo.

Conclusão

Trabalhou-se neste artigo com a ideia de que, ao analisar as notícias veiculadas pelos media, não se estaria apreendendo as representações sociais e a memória social acerca de um determinado fenómeno, mas sim acessando uma das dimensões de sua produção, no sentido adoptado por Ordaz e Vala (1998), segundo o qual, as informações veiculadas pelos media, "constituem apenas um dos ingredientes de que se alimentam os pensamentos individuais, grupais e colectivos" (p. 110).

Nesse sentido, a presença da troica formada por navegadores, colonizadores e índios, como personagens principais do descobrimento do Brasil, constitui uma contribuição da imprensa à manutenção de um núcleo central da representação social desse facto histórico no âmbito da população brasileira (Sá & Oliveira, 2002). Se aparentemente não traz surpresa o predomínio destes actores como principais protagonistas da cena histórica em questão, a dinâmica da presença/ausência dos índios na cobertura jornalística, entretanto, merece uma análise um pouco mais cuidadosa.

A população indígena jamais foi um actor presente na sociedade brasileira. Sua rara presença nos media, frequentemente restrita ao "dia do índio", muitas vezes é reduzida a uma caricatura idílica formada de cocares, penas, ingenuidade e "boa índole", extremamente afastada da realidade constituída de miséria, aculturação, exploração, entre outras mazelas sociais que lhes acometem em maior ou menor grau. Entretanto, a partir de 1999, a chamada "questão indígena" passa a receber progressivamente uma atenção maior da imprensa, a ponto de em Abril de 2000 quase metade do conteúdo sobre o descobrimento do Brasil ter os índios como seus sujeitos históricos predominantes. A reconstrução das relações entre os grupos contemporâneos e seus ancestrais, protagonistas directos da história, associada às iniciativas de defesa dos direitos actuais dos índios, possibilitou este resgate da figura indígena enquanto actor social presente nas comemorações do quinto centenário.

Os meios de comunicação de massa, enquanto agências de difusão de um conhecimento sobre o passado, parecem actuar como uma espécie de "memória pública" (Jedlowski, 1997), porém as informações, que variam tanto em quantidade quanto em qualidade de acesso pelos diferentes grupos ou indivíduos, ocupam um papel importante quando se tenta responder à questão levantada por Jodelet (1989, p. 45) sobre "quem sabe e de onde sabe?", ao se referir às condições de produção e circulação das representações sociais.

Nessa perspectiva, investigar o descobrimento do Brasil na imprensa escrita brasileira correspondeu a um esforço de identificação dos subsídios para a actualização da sua memória, através das representações que a consubstanciam, proporcionados a partir desta fonte institucional privilegiada de influência social. A análise dos media como resposta ao "quem sabe e de onde sabe", em que, pese a concentração de poder e saber em indivíduos e grupos específicos no seu âmbito, aponta, pela reflexividade que lhe é característica, para um sujeito e um lugar colectivos e genéricos. É por esse sujeito e nesse lugar que se tecem as lembranças daquilo que não se chegou a viver, mas não se quer esquecer que aconteceu.

 

Referências

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Notas

1Os estudos apresentados neste artigo foram financiados pelo FAPERJ, CNPQ, FAP/UERJ.

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