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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.17 no.2 Lisboa July 2003

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v17i2.452 

O ensino da história em tempos pós-coloniais: Comentário às análises dos manuais de história portugueses e brasileiros

The teaching of history in post-colonial times

 

Pedro Cardim1

1Universidade Nova de Lisboa.

 


RESUMO

Os resultados da sondagem efectuada a manuais de história usados em escolas de Portugal e do Brasil são muito reveladores acerca da imagem do descobrimento do Brasil. No que respeita a Portugal, verifica-se que a representação do descobrimento continua a ser estruturada por uma série de crenças que entroncam no antigo imaginário colonial lusitano. Quanto aos manuais brasileiros, transmitem uma imagem mais ambígua do descobrimento, onde colonização se confunde com ocidentalização, e onde a avaliação positiva do "adiamento" do Brasil convive com severas críticas à destruição provocada pela chegada dos europeus à América do Sul. No seu conjunto, os manuais de ambos os lados do Atlântico tornam bem patente que continua a ser difícil olhar para o descobrimento fora das narrativas mestras sobre a história dos dois países. Tal dificuldade dever-se-á, em parte, à incapacidade dos historiadores para promoverem uma reflexão crítica sobre as condições de produção do saber acerca dos contactos entre europeus e sul-americanos. Sem essa reflexão, será difícil construir um conhecimento menos luso-centrado e mais sensível à diferença cultural.

Palavras-chave Descobrimento, colonização, pós-colonialismo, ocidentalização.


ABSTRACT

The results of the survey on textbooks used in Portuguese and Brazilian schools are very revealing about the representation of the discovery of Brazil. In what Portugal is concerned, it is clear that the nowadays understanding of the discovery is still closely connected to the old Portuguese colonial imaginary. As for the Brazilian textbooks, they provide a more ambiguous representation of the discovery: colonization is often taken as a synonym of westernization. In addition, in the Brazilian textbooks the positive evaluation coexists with severe critics about the negative impact of the European arrival to South America. On the whole, the textbooks from both sides of the Atlantic show that nowadays it is still difficult to achieve an understanding of the discovery of Brazil outside the master-narrative about both countries' history. This situation is, in part, the outcome of the incapacity of historians from both countries to promote a critical discussion of the European presence in South American lands during the early-modern period. Without such a discussion, it will be difficult to achieve a knowledge less focused on Portugal and more sensible to cultural difference.


 

Os resultados desta sondagem a manuais escolares de história produzidos em Portugal e no Brasil são merecedores de uma reflexão aprofundada e muito mais detalhada do que aquela que aqui propomos. De facto, nas linhas que se seguem limitamo-nos a comentar, de uma forma muito abreviada, o modo como a temática do descobrimento e da colonização do Brasil surge representada nos textos didácticos em uso nas escolas dos dois lados do Atlântico. Começamos por indicar os resultados que nos parecem mais salientes, e de seguida articulamos esses resultados com o que a historiografia, tanto de Portugal como do Brasil, transmite acerca do tema do descobrimento. Nesse percurso, lidamos, fundamentalmente, com a memória do descobrimento e da colonização lusitana em terras brasílicas, mas também com a imagem que portugueses e brasileiros têm do seu passado e da história das relações entre ambos.

Entre os interessantes resultados apresentados pelas duas equipas de investigação, existem alguns aspectos que se destacam. Antes de mais, e no que toca à selecção temática, refira-se desde já que os manuais brasileiros concedem uma considerável importância ao tema do descobrimento e da colonização, um evento representado como gerador de desenvolvimento económico e de avanço tecnológico. Os dados relativos aos "sujeitos históricos" presentes nos manuais brasileiros possuem igualmente um grande interesse, já que nesses manuais foi possível identificar, fundamentalmente, três principais personagens, a saber: os colonizadores, os índios e os europeus. Importa notar que a cada um deles é concedido um espaço sensivelmente idêntico, embora a questão indígena pareça ser um dos temas mais candentes. No tocante aos africanos, eles também comparecem, se bem que de um modo mais residual e quase sempre associados à temática da escravidão. Comparativamente, os indígenas ocupam um espaço muito maior, representando cerca de 35% das páginas dedicadas à temática geral. Quanto à escravatura, ela está presente, mas com um menor peso, facto que não deixa de ser significativo.

Em face dos dados apresentados, podemos também dizer que nos manuais brasileiros o colono aparece como o sujeito verdadeiramente actuante da história colonial, embora surjam igualmente referências à actuação dos indígenas. Aliás, é interessante verificar que até os indígenas são retratados de um modo muito mais participativo do que os escravos africanos, já que estes comparecem sempre de forma algo acessória. A par deste importante aspecto, os livros didácticos brasileiros distinguem-se também por dedicarem um espaço considerável à história sul-americana anterior à chegada dos europeus — ao contrário do que sucede nos manuais utilizados nas escolas portuguesas.

No que concerne especificamente ao descobrimento, vimos que esse evento começa por ser relatado de uma forma neutra. Os autores deste estudo afirmam que os manuais brasileiros, no seu conjunto, se caracterizam por uma narrativa factual e em geral pouco comentada dos eventos, privilegiando uma visão político-econômica em detrimento da dimensão sociocultural. Porém, aquilo que realmente distingue os manuais brasileiros é o facto de sublinharem o carácter negativo da colonização, surgindo, aqui e ali, críticas aos colonizadores pela sua conduta violenta face aos índios, criticando-se igualmente a exploração económica e a imposição de modelos culturais europeus em terras americanas.

A imagem do descobrimento do Brasil proporcionada pelos manuais escolares usados em Portugal é bem diferente daquela que acabou de ser evocada, e essa diferença é notória logo na escolha dos protagonistas desse evento. Na verdade, nesses livros didácticos os sujeitos mais visíveis são, sem dúvida, os reis e os nobres lusos, ou seja, as figuras europeias surgem claramente como o pólo activo e empreendedor de toda a trama colonizadora. Quanto aos indígenas e aos africanos, encontram-se muito mais ausentes da narrativa, e nas ocasiões em que comparecem são muitas vezes remetidos para um lugar subalterno. Os indígenas acabam por ser representados como um pólo passivo, ora como objecto da colonização europeia, ora como obstáculo impotente a uma colonização que se pretendia que fosse por diante.

A colonização é fundamentalmente representada como um processo pautado por iniciativas arrojadas por parte dos colonizadores e por um esforço de desenvolvimento socioeconómico. Em relação aos indígenas, as poucas páginas em que estes se tornam mais visíveis dizem respeito à acção dos padres da Companhia de Jesus. De facto, os índios são convocados sempre que se evoca a acção jesuítica em prol das condições de vida dos desfavorecidos. Um outro dado que chama a atenção nos resultados deste estudo é o facto de a história sul-americana anterior à chegada dos europeus ser apresentada de um modo abreviado e muito simplificado. Significativamente, os factos e os processos subsequentes ao descobrimento ocupam muito mais espaço nos manuais de Portugal, se bem que o Brasil, a partir do momento em que se torna independente, praticamente desapareça dos livros escolares portugueses.

No que toca à história luso-brasileira, o processo de colonização é a temática mais amplamente retratada pelos livros didácticos portugueses, em textos que, no seu conjunto — e segundo os autores deste estudo — concedem bastante destaque ao empreendimento colonial levado a cabo por Portugal em terras sul-americanas. Nas páginas dedicadas aos eventos subsequentes ao descobrimento, os diversos manuais portugueses colocam sobretudo em evidência o espírito empreendedor dos colonizadores, concedendo também um evidente destaque à acção jesuítica no plano evangelizador. De um modo geral, o retrato da colonização que é apresentado é inserido num contexto histórico mundial onde Portugal se afirma como um dos protagonistas, sendo o Brasil remetido para uma condição de figura de fundo, um ponto discreto dos acontecimentos ligados à história portuguesa.

Uma última nota sobre os resultados deste estudo respeitantes às principais personagens do processo colonizador do Brasil: como vimos, entre os vários colonizadores europeus são os portugueses quem surge em destaque, caracterizados como aqueles que melhor se adaptaram às condições naturais dos trópicos, demonstrando possuir um espírito fortemente empreendedor, plasmado numa acção que se pautou pela neutralidade e pela baixa conflitualidade com os povos colonizados. Quanto aos indígenas, eles são referidos pelos manuais portugueses, mas — como dissemos — sempre num lugar subalterno na economia do texto. Já os africanos marcam uma presença mais discreta, surgindo, fundamentalmente, nas páginas dedicadas ao tráfico de escravos, e também no capítulo alusivo ao sincretismo religioso em terras brasileiras.

Que significado devemos atribuir a este conjunto de imagens? Como explicar esta dissonância entre os livros didácticos portugueses e brasileiros? Em que medida é que os manuais escolares dos dois países reflectem um desacordo de fundo sobre o passado que é comum aos dois povos?

Afim de dar resposta a estas questões — sem dúvida merecedoras de uma reflexão muito mais detalhada do que aquela que é aqui apresentada —, comecemos por considerar os livros escolares produzidos em Portugal. À luz dos dados apresentados, parece evidente que os manuais portugueses possuem uma forte ligação àquela que é a "narrativa dominante" do descobrimento e da colonização do Brasil, narrativa essa que ainda hoje continua a marcar a historiografia portuguesa. Nos manuais escolares é possível surpreender uma série de pré-compreensões sobre o domínio colonial implementado pelos portugueses não só na América meridional, mas também no conjunto do império.

Em primeiro lugar, nota-se que o tema do descobrimento e da colonização constitui um evento avaliado como positivo. Esse carácter positivo da colonização parece ser um dado adquirido, e, salvo excepções pontuais, não se vislumbra uma preocupação vincada por levar os alunos a uma avaliação crítica da natureza, das implicações ou das consequências desse processo. Em vez disso, os manuais portugueses realçam a componente de aventura, de audácia e de pioneirismo inerente às viagens e à ocupação de novas terras, assim como todo o desenvolvimento económico e tecnológico trazido pela colonização.

Um outro aspecto que impressiona, e ao qual já fizemos alusão, é a omissão de quase toda a história americana prévia ao descobrimento. A paisagem física e humana do continente sul-americano surge grandemente simplificada, e a impressão com que ficamos é que, à chegada dos portugueses, o Brasil era um território simples e homogéneo. Quanto ao conjunto das populações colonizadas, ele é apresentado como um "povo", sem grandes distinções no seu seio e com uma história incipiente. Esquecendo-se de que a América era um território onde proliferavam as diferenças, onde imperavam os particularismos, e onde era flagrante a diversidade de identidades baseadas na cultura, nas tradições, na língua e na religião, alguns dos manuais chegam ao ponto de impor uma narrativa comum a comunidades que, na verdade, eram extremamente dissemelhantes.

Acresce que também não se problematiza o processo de construção territorial do Brasil. O seu desenho fronteiriço aparece como algo de a priori concebido pelos portugueses, um desenho fronteiriço que teve continuidade nas delimitações do Brasil pós-independência — o que confere aos portugueses uma certa condição de "autores", de "criadores" daquele país. Os manuais portugueses também denotam alguma insensibilidade aos fortes contrastes que, desde muito cedo, caracterizaram os territórios sul-americanos dominados pelos portugueses. Hoje sabemos que existiam diversas categorias de colonos: os de Pernambuco, os de São Paulo, os da Baía, os do Paraíba, os do Rio de Janeiro ou os do Maranhão. Cada um destes grupos criou as suas próprias formas de organização, desenvolvendo também identidades culturais muito específicas. Contudo, nos manuais portugueses esta diversidade mal se vislumbra.

Por outro lado, nos manuais usados em Portugal a prioridade dos portugueses na ocupação do solo brasileiro é criteriosamente sublinhada, sendo os indígenas americanos relegados para uma posição subalterna, passiva e quase sem história prévia ou posterior à chegada dos europeus. Aliás, a partir dos dados recolhidos no âmbito desta sondagem, fica-se com a impressão de que os manuais portugueses apresentam a presença lusa como algo de inevitável e de irreversível a partir do momento em que foram os primeiros europeus a desembarcar na costa americana. A prioridade do desembarque lusitano resolve as dúvidas sobre a legitimidade da ocupação daqueles territórios, e são poucos os momentos em que, nesses livros didácticos, se questiona até que ponto era legítima a apropriação das terras sul-americanas por parte dos portugueses. A escolha das palavras também está longe de ser inocente: fala-se, sobretudo, em presença portuguesa, e não em ocupação ou em dominação, uma opção que claramente matiza e eufemiza a componente dominadora e opressiva da actuação dos lusos naquelas paragens.

Um outro aspecto significativo diz respeito ao modo como a acção dos colonizadores é retratada nos manuais produzidos em Portugal. Como acabámos de referir, não são muitos os momentos em que se incita a um questionamento crítico do conjunto de eventos ligados ao descobrimento e à colonização, até porque o modo como essa actuação é apresentada acaba por reproduzir — de forma subtil, é certo — os lugares-comuns de alguma da historiografia dos séculos XIX e XX, como se sabe muito marcada por uma ideologia legitimadora do empreendimento colonial . Vejamos alguns exemplos: no relato dos acontecimentos emerge, aqui e ali, o registo heróico; os descobridores são frequentemente enaltecidos; os primeiros colonos são elogiados pela sua acção civilizadora; os bandeirantes são retratados como heróis da colonização do interior do continente. Quanto aos indígenas, a sua atitude é quase sempre representada como passiva, surgindo, por vezes, referências à oposição que moveram contra o avanço do empreendimento colonizador. A imposição do modelo europeu, na sua versão portuguesa, é frequentemente apresentada como uma inevitabilidade e como algo que, no fundo, acabou por ser positivo para os povos que habitavam aquelas regiões — aliás, a expressão "acção civilizadora" encontra-se presente em alguns desses livros didácticos.

É certo que em certos passos dos manuais surgem referências ao carácter destruidor e violento de todo este processo. Todavia, estas alusões à faceta menos positiva do descobrimento e da colonização são "compensadas" por duas estratégias argumentativas. Antes de mais, por uma linha discursiva que cultiva a retórica do chamado "encontro de culturas", no quadro do qual o contacto entre portugueses e sul-americanos é retratado como uma troca pacífica, igualitária e harmoniosa, onde os portugueses se destacaram pela sua adaptabilidade, pela sua essencial propensão para a miscigenação, e pela sua peculiar capacidade para se integrarem num ambiente tropical e para incorporarem características dos outros povos.

Um segundo recurso estilístico que "neutraliza" a face negativa do descobrimento: o capítulo dedicado à acção desenvolvida pela coroa portuguesa e pelos missionários a favor dos indígenas. A destruição das civilizações indígenas é contrabalançada por estas referências à alegada precocidade dos lusos na defesa dos direitos desses povos. O presumível carácter "humanista" da colonização portuguesa, epitomizado pela muito celebrada figura do jesuíta António Vieira, é uma constante desses textos, sendo também possível detectar uma preocupação por desculpabilizar, de um modo subtil, a acção da igreja católica no processo de destruição das civilizações sul-americanas. Se a isto juntarmos o reduzido peso apresentado pela escravatura de indígenas e de africanos nos manuais portugueses que foram analisados, podemos então concluir que estamos perante o prolongamento de alguns dos elementos mais marcantes do imaginário luso-tropicalista e do seu entendimento da história da colonização portuguesa.

Como se pode verificar, o modo como o descobrimento e a colonização do Brasil surgem retratados nos textos didácticos produzidos em Portugal remete para aquela que continua a ser a representação dominante, entre os portugueses, do seu passado imperial. Tal é notório nos eventos e nos temas que acabaram de ser mencionados, mas torna-se explícito, também, no tratamento concedido a outras questões, como é o caso da exploração do ouro no Brasil setecentista. Importa sublinhar que, nos manuais portugueses, essa exploração mineira jamais é retratada como uma expoliação de recursos naturais ao Brasil. Pelo contrário, esse empreendimento é visto como o comportamento normal de um país que exerce um domínio colonial, e jamais se questiona o facto de essa riqueza ter sido transferida para a Europa, em vez de ser integralmente investida naqueles territórios meridionais.

No fundo, nos manuais produzidos em Portugal a "narrativa dominante" insiste no carácter harmonioso e simbiótico da ligação entre os lusos e a sua colónia brasileira, ligação essa alegadamente caracterizada pela fraca conflitualidade entre colonizador e colonizado. Associado a este tema encontra-se o tópico da comparação entre a colonização portuguesa e a colonização espanhola, esta última sempre apresentada como muito mais intolerante e muito mais destruidora das civilizações não europeias. De acordo com os manuais escolares, Portugal sempre exerceu uma dominação mais humanista e descentralizada, concedendo muito mais espaço à autonomia das suas colónias, chegando mesmo a instaurar uma situação de "quase-paridade" entre a metrópole e a sua colónia sul-americana. Isso mesmo se torna visível no modo como é retratado o processo de independência do Brasil, uma "emancipação" por vezes apresentada como pacífica e consentida pelo país colonizador, uma espécie de emancipação do "filho" já adulto, depois de devidamente criado pelo seu "pai" colonizador.

A própria selecção dos eventos respeitantes à história do Brasil-colónia obedece à mesma preocupação por vincar o carácter não violento e não impositivo da relação entre a metrópole lusitana e a sua colónia. Os manuais portugueses dedicam pouco espaço aos fortes interesses brasílicos que se desenvolveram naquele território, não falando nem dos numerosos motins nem das revoltas que, desde muito cedo, contestaram os representantes da coroa portuguesa. Raras são as alusões à oposição ao domínio colonial, e as poucas referências à contestação da autoridade portuguesa relacionam-se com a resistência indígena contra o avanço da colónia para o interior do continente. Por último, estão também completamente ausentes as alusões aos muitos focos de resistência e de oposição por parte das populações africanas trazidas, em regime forçado, para a América — não há uma palavra sobre os quilombos, nem sequer sobre Palmares. Este silenciamento está sem dúvida relacionado com o enfoque eurocêntrico que, claramente, domina toda a narrativa. Parafraseando Boaventura de Sousa Santos (2001), o eurocentrismo produz um saber unidimensional, reduzindo culturas ao silêncio e produzindo um conhecimento monocultural, hegemónico e pouco sensível à diferença.

A imagem proporcionada pelos manuais brasileiros é, em certo sentido, oposta àquela que acabámos de analisar. Vimos atrás que, nesses livros, a colonização suscita alguns comentários positivos, sobretudo por ser apresentada como um processo gerador de um certo desenvolvimento económico e tecnológico em terras sul-americanas. Nessas páginas, a chegada do modelo "ocidental" de desenvolvimento não deixa de ser saudada, e as vantagens decorrentes desse modelo são até enumeradas de forma circunstanciada. Contudo, a par deste registo mais ou menos positivo, os manuais brasileiros caracterizam de forma claramente negativa a presença europeia nos trópicos, retratando-a como uma invasão, como dominação e como expoliação. O colonialismo é antes de mais associado à exploração dos recursos naturais americanos — com destaque para o açúcar e o ouro —, um processo retratado como uma espécie de saque, e do qual as populações da América meridional alegadamente pouco ou nada aproveitaram.

Como assinalámos, os manuais brasileiros concedem um espaço considerável à destruição dos povos indígenas, mas é muito significativo que, de um modo geral, a principal responsabilidade por essa destruição seja atribuída, quase em exclusivo, ao colonizador europeu. Algo de semelhante se passa com o tráfico de escravos africanos, em regra atribuído aos mercadores portugueses — omitindo-se, desde logo, a forte participação que as populações luso-brasileiras tiveram neste comércio, pelo menos a partir dos primeiros anos do século XVII. Hoje sabemos que, desde muito cedo, as elites locais do Rio de Janeiro, da Baía ou de Pernambuco, protagonizaram uma florescente actividade económica, acalentando interesses próprios e controlando, em situação de plena autonomia face a Lisboa, muitas das mais lucrativas rotas comerciais. Graças aos trabalhos recentes da historiografia brasileira, sabemos, também, que muitas das principais iniciativas repressivas contra índios e africanos foram levadas a cabo por esses descendentes dos primeiros colonizadores, ou seja, famílias estabelecidas há várias gerações em terras sul-americanas —¦ os muito celebrados bandeirantes são, decerto, um dos melhores exemplos do que acabámos de dizer. No entanto, os manuais brasileiros concedem pouco destaque ao papel desempenhado pelas elites da América meridional na face obscura da colonização. Silenciando, de uma forma subtil, os efeitos negativos da actuação desses grupos influentes, os livros escolares brasileiros atribuem a principal responsabilidade da destruição ao colonizador europeu.

Assim, pode dizer-se que os manuais usados em escolas brasileiras transmitem uma imagem algo ambígua da colonização, pois ao mesmo tempo que sublinham o desenvolvimento inerente à colonização europeia, criticam a acção dos colonos oriundos do Velho Continente. Na verdade, a avaliação negativa acaba por ter uma presença bastante forte, sobretudo quando se compara esses manuais com os seus congéneres portugueses. Porém, e como acabámos de referir, os visados por essa condenação são, sobretudo, os colonizadores europeus, responsabilizados pela sua conduta face aos índios e face aos africanos, mas também devido à exploração económica e à imposição cultural que levaram a cabo.

É bem sabido que esta visão negativa da colonização tem uma óbvia relação com a memória dos tempos coloniais acalentada por muitas gerações de brasileiros, praticamente desde o último quartel do século XIX. A este respeito, importa recordar o forte contraste que existe entre os estudiosos originários da América do Sul e os seus congéneres norte-americanos. Enquanto estes retratam o seu passado colonial com cores optimistas, vendo nele os elementos que deram origem às liberdades democráticas e ao sucesso económico, já a historiografia sul-americana, e brasileira em particular, encontra no tempo colonial as prefigurações da corrupção, da desigualdade social e da dependência económica que ainda hoje se vive naquela região do globo.

Uma vez mais estamos perante uma memória com um forte cunho ideológico, forjada por gerações de intelectuais brasileiros empenhados em afirmar sentimentos nacionalistas através da atribuição ao sistema colonial de todas as responsabilidades pelos problemas que têm afectado o Brasil desde a sua independência. Num texto recente, António Hespanha (2001) recordou que a projecção, para o período colonial, das patologias que afectam a sociedade actual, constitui uma forma hábil de as elites nacionalistas sul-americanas branquearem a sua actuação, transferindo para "estrangeiros" e para "interesses alheios" a responsabilidade da destruição, da exploração e da desigualdade que ainda hoje se faz sentir naquele continente, patologias para as quais nem a independência nem a modernização dos séculos XIX e XX conseguiram dar resposta, antes criando novos problemas.

Todas estas reflexões acabam por remeter para um outro dado que nos parece central: portugueses e brasileiros ainda não efectuaram uma reflexão séria, tolerante e multicultural, sobre o passado colonial que liga estes dois povos, e essa ausência de reflexão projecta-se nos manuais escolares dos dois países. Para os portugueses, continua a ser manifestamente difícil lidar com o trauma da perda das colónias, algo que se torna notório no modo como os seus livros didácticos abordam o tema do descobrimento do Brasil. A memória de um passado glorioso em que Portugal foi momentaneamente o centro de um grande império articula-se mal com um presente em que os portugueses se confrontam com a realidade de serem os mais pobres da Europa desenvolvida, e muito menos poderosos do que a sua antiga colónia sul-americana. Do lado brasileiro o incómodo não é menor. Em face do sui generis complexo de superioridade de Portugal — esse antigo colonizador semiperiférico, que, como lembrou Boaventura de Sousa Santos (1994), foi simultaneamente colonizador e colonizado, desprezando os povos por ele colonizados e sendo desprezado pelos norte-europeus —, muitos brasileiros revelam um notório mal-estar sempre que se confrontam com o seu passado lusitano, o qual, apesar de já ter sido motivo de orgulho, parece suscitar, cada vez mais, reacções de lamento e de crítica.

Os manuais que foram analisados espelham estas e outras tensões, pois, de uma maneira ou de outra, assumem o ponto de vista daqueles que lideraram o processo de "ocidentalização" do continente sul-americano. De resto, e como assinalámos, nos livros escolares de ambos os lados do Atlântico é ainda possível escutar alguns ecos da ideologia luso-tropicalista. Ainda hoje, nas duas margens do Atlântico, muitos são os que continuam a sustentar que os portugueses se caracterizam por uma singular capacidade de assimilação de outros povos e de outras culturas, e que os brasileiros herdaram esta característica. De resto, e no que toca ao Brasil, durante muito tempo este país foi imaginado como um lugar onde todos cabiam, dotado de uma cultura assimilacionista proveniente precisamente da matriz lusitana. Em pleno século XIX muitos eram aqueles que pensavam o Brasil como um lugar onde todos cabiam, mas onde cada um devia conhecer o seu lugar — integrados todos, mas hierarquicamente. Chegou mesmo a imaginar-se que as minorias étnicas, por aculturação, iriam perdendo os seus traços identitários até serem assimiladas — algo que, como é óbvio, não aconteceu, bem pelo contrário, já que os membros de muitos desses grupos, ao invés de se deixarem aculturar, acabaram mesmo por reforçar os seus traços identitários.

Como se pode verificar, nem a independência nem a descolonização conduziram, de forma imediata, à libertação do discurso colonial. De facto, este peso do colonialismo manteve-se, e durante o século XIX tanto os antigos colonizadores lusos como os recém emancipados brasileiros continuaram a olhar para o Ocidente como o berço exclusivo do conhecimento racional e das mais perfeitas formas de organização política, social, económica e cultural. Já no século XX, os regimes ditatoriais vigentes nos dois países tiraram partido — de um modo diverso, é certo — do imaginário luso-tropical; mais recentemente, as quase três décadas de democracia ainda não foram suficientes para anular esse imaginário colonial. Como recentemente notou Miguel Vale de Almeida (2000), nos nossos dias o luso-tropicalismo permanece como uma linha discursiva que emerge nas reflexões sobre a identidade, sobre a especificidade e a excepcionalidade da colonização portuguesa, subsistindo aquilo que o mesmo Vale de Almeida qualificou de 'luso-tropicalismo genérico", uma inclinação de senso comum que, por vezes, assume o estatuto de representação oficial. E tal sucede a despeito do esforço desenvolvido no quadro das comemorações dos descobrimentos portugueses. Em relação a Portugal, a comissão responsável pelas comemorações (CNCDP) deu um contributo decisivo para o relançamento dos contactos entre investigadores dos dois lados do Atlântico, instaurando um diálogo muito mais liberto dos preconceitos luso-tropicalistas. No Brasil, a comemoração dos 500 anos do descobrimento levou as minorias a encarar esse acontecimento como uma rara oportunidade para dar visibilidade à sua subalternidade. Para além de exigirem que índios e negros fizessem parte de uma história que quase sempre os esquecera, sublinharam a existência de vários "Brasis", afirmando diferenças e fissuras sociais.

Seria importante que esta revisão do passado colonial fosse plenamente assumida pelos autores dos livros didácticos usados em escolas portuguesas e brasileiras.

 

Referências

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