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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.17 no.2 Lisboa July 2003

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v17i2.451 

Memória social e representações sobre o descobrimento do brasil análise dos manuais portugueses de história

Social memory and representations of the dicovery of Brasil: Portuguese history textbooks

 

Célia Soares1; Jorge Correia Jesuíno2

1-2Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa.

 


RESUMO

As representações das memórias da sociedade portuguesa, e da própria história, circulam e são transmitidas no campo das comunicações sociais, mas também são difundidas, e (re)legitimadas, através das temáticas que compõem os curricula escolares. O objectivo deste estudo foi analisar os conteúdos dos manuais de história do ensino básico e complementar, enquanto instrumentos privilegiados na construção e actualização das representações sobre a história da descoberta do Brasil, nos grupos sociais mais jovens. Foram seleccionados dois manuais, em três níveis escolares, e o material recolhido foi submetido a duas metodologias de análise. Os resultados obtidos permitiram verificar diferenças quanto à estrutura e aos conteúdos temáticos dos manuais, o que revela alguma heterogeneidade entre eles, e entre os níveis escolares analisados. Esta heterogeneidade sugere a existência duma diferenciação qualitativa ao nível das representações sociais que são difundidas aos grupos mais jovens, através dos manuais escolares.

Palavras-chave Descoberta do Brasil, memória social, representações sociais, manuais escolares de história.


ABSTRACT

The representations of the memories of the Portuguese society, and of its history, circulate and are transmitted through the media, but are also spread and (re)legitimated through the themes that compose school curricula. The aim of this study was to analyse the contents of history textbooks used in grammar and high schools. For the younger groups of our society, these textbooks are a privileged mean in the construction and actualization of the social representations of the history of the discovery of Brasil. Two textbooks were selected from three different educational levels, and they were analysed via two different methodologies. The results show differences concerning the structure and the thematic content of the textbooks, revealing some heterogeneity between them, as well as between the three educational levels. This heterogeneity suggests the existence of a qualitative differentiation at the level of social representations that are spread through young people by means of the textbooks.


 

Introdução e objectivos do estudo

O presente estudo foi circunscrito à temática das descobertas portuguesas, e remete-nos para memórias sobre as viagens dos nossos antepassados. O avistamento do Monte Pascoal a 22 de Abril de 1500 pelos navegadores portugueses e a conquista das terras de Vera Cruz são imagens que nos chegam quinhentos anos depois, e facilmente imaginamos o marinheiro português a entoar "terra à vista" aos seus companheiros de viagem.

Passados cinco séculos de experiências e vivências nacionais, comemorou-se a chegada ao Brasil e exaltaram-se histórias antigas que fazem parte da nossa própria história. As celebrações relembraram memórias, por vezes esquecidas, que regressaram do passado e passaram a estar mais disponíveis para os actores sociais do presente.

As memórias sociais dão-nos a consciência duma partilha de factores e elementos comuns e recordam-nos um passado colectivo. Transformam-nos num grupo que se relaciona entre si, e que se aproxima, pelo sentimento e pelo conhecimento da sua identidade social/nacional. Como Fentress e Wickham (1994) referem, a memória social é uma fonte de conhecimento: mais do que fornecer um conjunto de categorias implícitas de identidade colectiva, constitui também uma oportunidade de reflexão consciente. E por isso importante conhecer e reconhecer as formas como os grupos interpretam e utilizam essas fontes de conhecimento.

Será que a forma de ler e compreender esta fase da história provoca o mesmo entusiasmo nos descendentes brasileiros e portugueses? Tudo dependerá da forma como são representadas as narrativas históricas, bem como dos significados que daí emergem para as mulheres e homens de sociedades onde tais representações nasceram e evoluíram. Introduzimos aqui o conceito de representações sociais (Moscovici, 1969/1976), de modo a melhor enquadrarmos a diferenciação e a diversidade social das crenças e atitudes compartilhadas, que vêm coexistindo e subsistindo ao longo dos tempos.

Existem variadas versões, formas e tipos de representações sociais. As representações são alimentadas a partir de inúmeras fontes, mas a transformação dos conhecimentos e dos saberes comuns que são fornecidos por tais fontes é uma característica recorrente nas representações sociais. As transformações operadas em torno destes conteúdos variam de acordo com os grupos sociais, e com o contexto (Flick, 1998, p. 50). Neste sentido, considera-se que as representações sociais são construídas por indivíduos e grupos segundo um processo que permite codificar e orientar a interpretação e a organização de significados entre os indivíduos e os grupos sociais. As representações emergem dos contextos sociais, mas estes contextos também são regulados pelas representações.

A natureza das representações é social na medida em que a sua génese é em grande parte resultante das comunicações quotidianas dos indivíduos e dos grupos onde estão inseridos. Moscovici clarifica-nos esta última ideia, "A palavra social indica que as representações são o resultado dum linguajar (babble) ininterrupto e dum diálogo permanente entre indivíduos, um diálogo que é simultaneamente interno e externo, durante o qual as representações individuais são ecoadas e complementadas. As representações adaptam-se à corrente de interacções entre grupos sociais. " (1984, p. 951, tradução nossa)

Os significados partilhados por uns, diferentes para outros, viajam no tempo e chegam até nós sob a forma de memórias diferenciadas que remetem para pessoas, grupos e mesmo sociedades. Através da memória colectiva estabelece-se uma continuidade temporal, onde passado e futuro, mas também individual e social, se misturam. A ordem social legitima aquilo que é nosso, aquilo a que pertencemos e aquilo que defendemos. No reverso temos aquilo em que não cremos, que não queremos e que não defendemos. Os pontos de vista dos indivíduos e dos grupos são representados tanto nas suas formas de comunicação como nas suas formas de expressão. As imagens e as opiniões especificam normalmente uma posição, uma escala de valores dum indivíduo ou duma colectividade (Moscovici, 1976).

A história dum país é construída pelas relações que são estabelecidas entre diversos grupos sociais e traduz os diferentes posicionamentos que são adoptados pelos grupos sociais actores e seus descendentes. A diversidade dos grupos sociais relaciona-se com a diversidade das representações sociais, e vice-versa.

As representações sociais não são um simples espelho duma realidade objectiva. A realidade é, pelo contrário, socialmente construída através do próprio processo de representação (Flick, 1998, p. 52). Para um melhor entendimento da ideia proposta basta recordar os acontecimentos tumultuosos que foram vividos no Brasil por altura das comemorações dos quinhentos anos, o que não se verificou nas comemorações no nosso país. Pelo contrário, a data de 22 de Abril de 1500 evoca na memória portuguesa a presença de navegadores que representam a glória, o orgulho e a unificação nacional.

As representações que cristalizam as memórias da sociedade portuguesa, e a própria história, circulam e são transmitidas no campo das comunicações e das experiências sociais, mas também são difundidas, e (re)legitimadas, no processo de escolarização que está inerente à formação curricular e à educação das crianças e jovens do nosso país. Este aspecto reflecte-se nos conteúdos que integram os currícula escolares, o que em muitos casos traduz o primeiro contacto dos actores descendentes com determinadas temáticas e significados sociais do passado. Neste contexto, as formas como as histórias de outros tempos são relatadas transformam-se num interessante objecto de reflexão e análise, se considerarmos que a aprendizagem da história influencia a construção e a actualização de representações sociais nos grupos mais jovens. Por esse motivo, os manuais escolares são instrumentos importantes que permitem a difusão de memórias (sociais) em novas colectividades.

O presente estudo está enquadrado num projecto mais vasto sobre a memória social e as representações sociais sobre o descobrimento do Brasil, e tem o objectivo de analisar os conteúdos dos manuais escolares de história do ensino básico e complementar, enquanto instrumentos privilegiados na construção e actualização de representações sociais, nas crianças e jovens portugueses.

Questões metodológicas

De acordo com os curricula de história vigentes no sistema de ensino público português, foram considerados para este estudo apenas os níveis de escolaridade onde a temática do descobrimento do Brasil é abordada. Estes níveis correspondem ao 5.° ano, 8.° ano e 10.° ano de escolaridade. Seleccionaram-se dois manuais para cada um destes níveis de escolaridade.

A escolha dos manuais resultou duma pesquisa feita entre um conjunto de editoras escolares. Foram escolhidas duas editoras, tendo em conta a sua representatividade e antiguidade no mercado. No total, seleccionaram-se seis manuais escolares de história que, segundo os dados editoriais, apresentaram um número de vendas significativo. Deste modo, procurou-se salvaguardar a representatividade destes manuais nas salas de aula portuguesas.

A selecção do material textual nos manuais escolares foi determinada pela delimitação duma época histórica que contextualizasse os acontecimentos que antecederam, e viabilizaram, a descoberta do Brasil, e aqueles que, consequentemente, se sucederam. Este período corresponde a uma fase pré-descobrimento, que tem início na segunda metade do séc. XV, com a descoberta do caminho marítimo para a índia pelas armadas portuguesas; e estende-se até à fase pós-descobrimento, com o processo de colonização do Brasil, até ao final do ciclo da cana-de-açúcar, no séc. XVII.

Foram seleccionados os capítulos ou subcapítulos completos que abordassem o período histórico considerado.

A análise dos dados textuais foi realizada a partir de duas metodologias complementares; uma de natureza quantitativa e outra qualitativa. A integração dos resultados destas duas perspectivas permitiu uma melhor compreensão sobre as categorias de significado, a estrutura e os conteúdos característicos que organizam as representações deste período histórico.

Procedimentos

Numa primeira fase, os textos seleccionados nos seis manuais foram classificados em relação a duas dimensões: uma sobre as esferas privilegiadas, e outra sobre os actores-chave.

As esferas privilegiadas dizem respeito à especificidade temática dos textos e incluem oito categorias: economia, política, ciência, cultura/arte, educação/religião, território, natureza e outras. Pode verificar-se a presença de diferentes esferas ao longo de um só texto.

Os actores-chave referem-se às principais personagens que participaram nos acontecimentos que decorreram ao longo deste período, e incluem: reis/nobres, colonizadores, colonos, religiosos, índios, negros, portugueses, europeus e outros.

Os dados textuais foram ainda submetidos a uma análise estatística do discurso, de modo a explorar as suas propriedades qualitativas. Este procedimento foi realizado com o software Alceste, versão 4.5 (Image, 2000), que recorre à análise lexical de segmentos de texto, de forma a identificar a organização interna do discurso que é apresentado ao longo dos textos (Reinert, 1998). A emergência da organização interna do discurso torna-se possível graças à quantificação e à extracção das estruturas que revelam ser mais significantes e mais relevantes na sua constituição. O apuramento destas estruturas permite identificar categorias de vocabulário que remetem para as representações que lhe estão subjacentes, e que se tornam assim possíveis de explicitar (Reinert, 1998). A especificidade do vocabulário que integra cada uma das categorias revela as dimensões de significado que são pertinentes para a interpretação do discurso histórico dos manuais e das representações que conduzem o processo organizador que está implicado na sua produção.

A metodologia Alceste requer a preparação de um ficheiro de análise, o corpus de análise, que foi constituído pelo conjunto dos seis manuais escolares.

Resultados

Seguidamente apresentam-se os resultados obtidos através das duas metodologias de análise utilizadas.

Análise das esferas privilegiadas e dos actores-chave

Os resultados da classificação das esferas privilegiadas nos seis manuais são apresentados no quadro 1.

A classificação dos textos seleccionados, relativamente às esferas temáticas privilegiadas, permitiu verificar uma maior representatividade das dimensões de natureza económica e política nos manuais dos três níveis escolares; e dos conteúdos de ordem científica e técnica, mas apenas ao nível do 5.° e 8.° anos.

As representações da esfera da religião/educação também adquirem alguma saliência, mas só são abordadas a partir do 8.° ano, e é neste nível que são mais destacadas. A esfera "outras" também apresenta alguma representatividade, sobretudo ao nível do 10.° ano, e inclui conteúdos associados à miscigenação dos europeus com os povos da América do Sul, e à sociedade da época.

As restantes dimensões temáticas são contempladas de forma relativamente discreta, e não são uniformes pelos três níveis de escolaridade: a esfera da natureza surge no 5.° e 10.° anos, com maior relevo neste último nível; os conteúdos associados ao território são pouco representados ao longo dos três níveis; e, finalmente, a esfera da cultura/arte, que é a menos representada, e só é explorada no 5.° ano.

Uma análise comparativa entre os vários manuais permite verificar uma certa heterogeneidade entre eles, relativamente ao número de esferas representadas, e à sua distribuição. Os manuais do 10.° ano, 5 e 6, são os que evidenciam maior homogeneidade relativamente ao número de temáticas abordadas, mas a sua distribuição não é uniforme entre os dois.

Os manuais 2 (5.° ano) e 5 (10.° ano) apresentam algumas particularidades face aos restantes, já que não seguem a tendência geral relativamente a algumas das categorias que revelaram maior centralidade e importância nos programas curriculares dos três níveis escolares. No primeiro, manual 2, as questões de ordem política são as menos exploradas; no manual 5, os conteúdos de natureza económica perdem o lugar de destaque, e salientam-se outras questões, a par com a esfera da política. Este último manual é aquele que apresenta uma distribuição mais equitativa das diferentes esferas temáticas.

O material textual também foi classificado relativamente aos principais personagens, os actores-chave, do período histórico em análise. Os resultados são apresentados no quadro 2.

Esta segunda dimensão de análise permitiu verificar que as personagens históricas mais salientadas pelos manuais dos três níveis escolares são os reis/nobres, os portugueses e os índios. O primeiro grupo de actores é o mais destacado, principalmente ao nível do 8.° ano, e inclui reis e nobres portugueses que estiveram associados às viagens marítimas e aos contactos com terras estrangeiras, verificados durante este período. Os portugueses, enquanto categoria genérica de actores-chave, têm mais visibilidade nos manuais do 5.° ano, e os índios são mais destacados nos manuais do 10.° ano.

Os colonizadores, os negros, e os europeus são grupos que também aparecem representados ao longo dos três níveis de escolaridade, mas são personagens secundárias nos relatos deste período da história portuguesa. A intervenção dos colonizadores é mais salientada a partir do 8.° ano; os outros dois grupos, negros e europeus, são mais pertinentes nos conteúdos do 10.° ano.

Os colonos e os religiosos são os grupos de actores menos representados nestes manuais, estando este último mais referenciado ao nível do 8.° ano.

Tal como na análise das esferas privilegiadas, a comparação entre manuais também revela uma certa heterogeneidade, quanto à presença e à distribuição dos actores-chave, por cada um deles. O manual mais uniforme, relativamente a estes dois aspectos, é o n.° 5, do 10.° ano, já que contempla todas as categorias em análise, com valores absolutos menos discrepantes, e destaca os índios como figuras principais. Todos os outros manuais salientam essencialmente os reis/nobres, com a excepção do manual 2, do 5.° ano, onde os portugueses assumem um papel de igual relevo.

Em resumo

A análise quantitativa que foi realizada aos manuais escolares do 5.°, 8.° e 10.° anos permitiu verificar que as representações que emergem dos relatos históricos sobre este período, integram principalmente as questões e os acontecimentos ligados ao domínio da economia, da política; e da ciência, mas só até ao 8.° ano. Os temas da religião e da educação só surgem nos currícula a partir do 8.° ano, e são principalmente explorados neste nível de escolaridade. As esferas da natureza e do território são pouco referenciadas ao longo dos três níveis escolares; o domínio cultural e artístico é o menos representado, e é explorado apenas ao nível do 5.° ano de escolaridade. Outras dimensões, como a miscigenação dos povos, e questões ligadas à sociedade da época, são particularmente abordados no último nível de escolaridade, 10.° ano.

Os sujeitos e personagens históricas mais referenciados ao longo destes relatos são os reis/nobres, os portugueses, enquanto categoria genérica, e os índios. As figuras históricas menos referenciadas são os religiosos e os colonos.

Os manuais revelam alguma heterogeneidade quanto à presença e à distribuição, das esferas privilegiadas, e dos actores-chaves, e os manuais n.° 2 e n.° 5 evidenciam algumas diferenças particulares face aos restantes. Este último, o manual n.° 5, é o mais uniforme, quer em relação ao campo das esferas temáticas, quer em termos dos diferentes actores-chave identificados.

Os primeiros resultados obtidos permitiram identificar e quantificar diferentes categorias temáticas das representações (sociais) das narrativas históricas em análise. Torna-se, por isso, importante explorar e analisar detalhadamente as suas propriedades qualitativas, através da sua caracterização estrutural e dos seus significados mais característicos. Por este motivo, submetemos o conjunto de dados textuais a uma análise realizada pelo software Alceste.

Análise estatística do discurso

O material textual analisado foi organizado e associado em estruturas de vocabulário específico, que objectivam as dimensões de significado mais relevantes das representações dos manuais escolares. Os resultados que aqui se apresentam decorrem dos dois principais procedimentos da análise Alceste: a classificação descendente hierárquica e a análise factorial de correspondências.

Da classificação descendente hierárquica resultou a seguinte distribuição de classes ou contextos temáticos apresentada na figura 1.

Os resultados obtidos mostram sete categorias temáticas principais, ou classes, que foram nomeadas de acordo com o vocabulário que melhor as caracteriza.

As classes temáticas são as seguintes: 1) primeiras explorações agrícolas; 2) a concorrência ao domínio português; 3) o oriente; 4) navegadores e viagens; 5) a descoberta do brasil; 6) a questão indígena e os jesuítas; e 7) a áfrica.

A classe 1—primeiras explorações agrícolas — é constituída por 17,49% das UCE que foram seleccionadas do conjunto de dados textuais analisados.1 As dimensões e os conteúdos que emergem desta classe remetem para a implementação e desenvolvimento das primeiras explorações agrícolas e pecuárias ultramarinas, nas ilhas da Madeira e dos Açores. Estas ilhas, e as actividades económicas desenvolvidas, agricultura e pecuária, o seu clima e recursos naturais são os elementos centrais desta classe. Observa-se uma associação entre os arquipélagos da Madeira e Açores e o território Brasileiro, pelo formato da organização administrativa, as capitanias-donatárias, pelas infra-estruturas agrícolas (engenhos) e pelas explorações desenvolvidas durante a implantação portuguesa nestas colónias.

A classe 2 — a concorrência ao domínio português — é representada por 19,19% das UCE analisadas. Os seus conteúdos reflectem o panorama político, económico e social português e de outros países europeus, em finais do séc. XVI e na primeira metade do séc. XVII Os confrontos e as disputas com outros países da Europa pelos produtos e riquezas das colónias ultramarinas, a crise na sucessão da coroa e o domínio dos Filipes salientam uma dimensão de instabilidade e conflitualidade nas dimensões de significado que objectivam esta classe.

A classe 3 —o Oriente— é composta por 17,49% das UCE analisadas e está claramente associada às conquistas e à expansão portuguesa no continente asiático. O vocabulário específico desta classe representa a implantação e desenvolvimento do império português no Oriente. Os elementos temáticos mais salientes referem-se aos territórios conquistados, ao estabelecimento de fortalezas e ao controlo e domínio das rotas comerciais do Oceano índico. Estas dimensões reflectem a prosperidade económica e política portuguesa no Oriente, que a expansão marítima concretizou.

A classe 4 é representada por 16,93% das UCE analisadas e foi designada por navegadores e viagens. Está associada ao desenvolvimento da política da expansão marítima adoptada por D. João II, que veio dar lugar às várias viagens e descobertas portuguesas. Os conteúdos centrais desta classe referem-se à descoberta do caminho marítimo para a índia, à assinatura do tratado de Tordesilhas e aos vários personagens históricos que participaram no desenvolvimento destes acontecimentos.

A classe 5 agrega 10,72% das UCE analisadas e foi designada por descoberta do brasil. O tema principal desta classe, como o próprio nome indica, refere-se ao momento histórico da descoberta do Brasil, e está circunscrito aos primeiros contactos estabelecidos entre os navegadores portugueses e os nativos brasileiros. É representada pelos conteúdos da clássica carta de Pêro Vaz de Caminha, e traduz o relato da chegada dos portugueses à Terra de Vera Cruz, os contactos iniciais e as primeiras impressões dos navegadores sobre os índios brasileiros.

A classe 6 é representada por 10, 05% das UCE analisadas e foi denominada por a questão indígena e os jesuítas. Os seus conteúdos específicos remetem para as diferenças culturais e civilizacionais existentes entre os índios tupi e seus colonizadores, e para a acção missionária dos jesuítas junto deste povo. Destaca-se a influência deste grupo religioso e da doutrina cristã na aculturação e na transmissão de conhecimentos aos indígenas. Uma segunda dimensão desta classe, menos saliente, aponta para os contactos e o intercâmbio desenvolvido entre a Europa e o continente sul-americano, que a expansão concretizou.

A última classe, 7, é aquela que menos expressividade tem, uma vez que concentra apenas 8,13% das UCE analisadas, e foi designada por a áfrica. O vocabulário específico desta classe representa a presença portuguesa nas terras e costa africanas, onde foram estabelecidas relações comerciais fundamentais para a prosperidade económica portuguesa desta época. A importância dos produtos outrora recolhidos em África, como o ouro, o marfim, a malagueta, os escravos, e as feitorias estabelecidas, clarificam o significado económico e comercial desta classe.

A distribuição das sete classes na figura 1. permite distinguir uma estruturação global do discurso histórico dos manuais, que apresenta três agrupamentos principais de classes temáticas. O primeiro agrupamento traduz a associação entre as classes 3 — o Oriente —,7 — a África —, e 4 — navegadores e viagens e remete para a fase pré-descobrimento do Brasil.

A segunda estrutura temática, que se associa à anterior, é composta pelas classes 2 — a concorrência ao domínio português —, e 6 — a questão indígena e os jesuítas e representa a fase pós-descobrimento. Por último, associam-se as classes 1 — primeiras explorações agrícolas —, e 5 — descoberta do Brasil —, que materializam o momento histórico em si, a descoberta e os cenários das ilhas atlânticas, na primeira fase.

Este desenho estrutural traduz as relações de dissociação e de proximidade temática das dimensões de ancoragem deste período da história. Estas informações são importantes para uma melhor compreensão sobre a organização das representações académicas do período das descobertas.

Seguidamente apresenta-se um plano factorial, que respeita à segunda fase principal da análise Alceste, AFC, e que mostra a projecção do vocabulário específico das sete classes apuradas, a partir dos dois primeiros factores explicativos. Deste modo será possível analisar com maior precisão o posicionamento e a figura 2 Projecção dos conteúdos mais significativos das classes temáticas dinâmica das relações que são estabelecidas entre as dimensões de ancoragem e de objectivação das representações académicas.

O plano factorial gerado é constituído pelos primeiros dois factores organizadores das representações que emergiram dos manuais escolares. O primeiro refere-se ao eixo horizontal, tem associada 22, 61% de inércia (variância explicada), e foi designado por "do Ocidente ao Oriente"; o segundo factor diz respeito ao eixo vertical, explica 19, 83% da inércia, e designou-se por "as civilizações e as consequências da hegemonização".

Os conteúdos associados ao primeiro factor — do Ocidente ao Oriente — remetem-nos para uma dimensão de espaço, onde são identificados os vários momentos das viagens e conquistas portuguesas. É possível verificar a progressão das descobertas, que é assinalada pelas várias colónias e territórios estrangeiros por onde os portugueses passaram e pelos seus recursos e produtos naturais.

Este eixo revela uma oposição entre as ilhas atlânticas da Madeira e Açores e as terras do Oriente. O Brasil associa-se ligeiramente às ilhas Atlânticas por alguma proximidade de recursos naturais, e pelas semelhanças entre algumas actividades económicas desenvolvidas durante a primeira fase de colonização. Existe ainda um outro contexto relativo à descoberta do território brasileiro, que está claramente associado ao segundo eixo, mas que se posiciona no quadrante relacionado com o Oceano Atlântico, se o considerarmos no plano de análise referente ao primeiro eixo. No lado do Atlântico encontram-se ainda temas associados às questões indígenas e aos jesuítas, durante a colonização do Brasil, e às disputas europeias pelas colónias ultramarinas. Os conteúdos associados à exploração das terras e costa africanas situam-se no centro do eixo. E no extremo oposto encontra-se o Oriente, as viagens e alguns dos actores principais do cenário expansionista português.

O factor "do Ocidente ao Oriente" aponta uma evolução geográfica das viagens portuguesas, e representa a ligação entre o Oceano Atlântico e o Oceano Indico. A possibilidade de ligar o Ocidente ao Oriente, foi conseguida pelas políticas de expansão marítima, pelas viagens que conduziram à passagem do Cabo da Boa Esperança, e à descoberta do caminho marítimo para a índia. Este tema é objectivado pelo contexto dos "navegadores e viagens".

O segundo factor — as civilizações e as consequências da hegemonização —, corresponde ao eixo vertical, e representa as várias civilizações envolvidas no cenário das descobertas e das conquistas, e os resultados das movimentações hegemónicas portuguesas.

Este eixo apresenta a oposição entre uma fase que antecede, mas que abre caminho para a presença dos portugueses nos vários territórios estrangeiros por onde passaram, e outra, onde se encontram os vários cenários pós-descoberta e pós-conquista, que se foram constituindo com a implantação das colónias ultramarinas e com o domínio das importantes rotas comerciais da época. A primeira fase é objectivada pelo contexto dos "navegadores e viagens", e por "a descoberta do Brasil": o primeiro cenário refere-se aos momentos e datas históricas da conquista dos mares e das viagens, sem que haja referência aos nativos dos locais encontrados; o contexto brasileiro apresenta unicamente o momento da chegada dos navegadores a este território, e as primeiras descrições sobre o local e os seus habitantes.

Observa-se uma clara dissociação entre o cenário que designa os índios brasileiros no momento da chegada portuguesa, e o contexto brasileiro pós-colonização, que integra a acção jesuíta junto deste povo. Esta relação de oposição revela não só diferenças de nível civilizacional entre o momento do descobrimento e a fase pós-descobrimento, mas também salienta uma dimensão de conflito entre colonizados e colonizadores. Os conteúdos que evidenciam as disputas e os confrontos europeus do século XVII, resultantes do crescente interesse económico e estratégico de vários países, face às riquezas existentes nas colónias ultramarinas e às importantes rotas comerciais, também estão aqui associados.

O segundo factor, "as civilizações e as consequências da hegemonização" reflecte a construção e a evolução do império português entre os séculos XV e XVII, através das variadas conquistas e das colónias que viabilizaram o desenvolvimento económico e um domínio territorial bastante alargado. Evidencia diferenças de nível civilizacional, particularmente no Brasil, e a integração de algumas culturas intervenientes, que foi conseguida pela imposição europeia. A dimensão conflitual deste eixo é manifestada não só pelas relações estabelecidas com os índios Brasileiros durante o período de colonização, mas também pelos conflitos económicos e políticos de Portugal com outros países europeus.

A estrutura das classes temáticas permitiu distinguir e relacionar os vários cenários, e as esferas mais significativas, das representações que emergiram dos manuais escolares. Estes resultados vieram confirmar as principais dimensões identificadas na análise anterior, mas também possibilitaram conhecer as suas relações e a natureza dos seus conteúdos. .

Seguidamente, apresenta-se a distribuição e a associação destas categorias de significado com os diferentes manuais (ver figura 3). Deste modo, será possível explorar os resultados que foram verificados na primeira análise efectuada.

A análise do plano de projecção permite verificar a existência de associações privilegiadas entre determinados manuais, e níveis de escolaridade, e classes temáticas particulares.

Os manuais designados para o 5.° ano de escolaridade (1 e 2) apresentam uma maior proximidade com as temáticas relativas à "descoberta do Brasil" (classe 5) e às "primeiras explorações agrícolas" (classe 1), embora a primeira seja mais significativa em ambos os manuais. Este resultado sugere que, a este nível, são privilegiados conteúdos relativos à fase da descoberta, que se resume à carta de Pêro Vaz de Caminha, e a um período bastante anterior, em que se implantaram as primeiras colónias, nas ilhas da Madeira e dos Açores. A distribuição das classes temáticas e das palavras significativas permitiu verificar uma associação entre estes dois temas, através da organização administrativa dos territórios, dos recursos naturais e das explorações, o que indica uma primeira forma abordagem, relativamente naífe naturalista, das descobertas e dos processos de colonização.

Os manuais do 8.° ano (3 e 4) destacam a natureza conflitual e de disputa, que está associada às classes 2 (concorrência ao domínio português) e 6 (a questão indígena e os jesuítas). São exploradas noções de cariz económico, político e social, onde os conflitos de interesses são representados. Estes resultados, particularmente a classe 6, também confirmam os que foram obtidos na análise das esferas privilegiadas, que salientava a temática da religião e da educação neste nível escolar.

Os manuais do 10.° ano (5 e 6) aproximam-se mais das classes 3 (Oriente) e 7 (África), o que sugere uma perspectiva de abordagem que está principalmente orientada para as questões económicas e políticas que emergem das relações estabelecidas entre portugueses-africanos e portugueses-asiáticos. No entanto, o manual 5 também se associa às classes 6 e 2, o que vem clarificar as especificidades verificadas anteriormente. Este resultado explica a superioridade dos conteúdos de ordem política e da miscigenação dos povos neste manual, que estão patentes nas classes 6 e 2.

Conclusões

Os resultados obtidos através das duas perspectivas analíticas que foram adoptadas neste estudo contribuíram para uma compreensão mais precisa sobre a natureza das representações académicas e sociais associadas à história do descobrimento do Brasil. Os manuais escolares de história portuguesa analisados apresentam o cenário histórico mundial, entre o séc. XV e o séc. XVII, onde os portugueses são representados como um dos povos pioneiros do panorama expansionista. O Brasil surge como uma figura discreta, já que o momento da descoberta e a fase de colonização constituem estruturas temáticas pouco significativas. Os temas mais expressivos das representações dos manuais são a concorrência ao domínio português, o Oriente, as primeiras explorações agrícolas, e os navegadores e as viagens.

Estas representações são estruturadas a partir de dois vectores principais. O primeiro designa a progressão das viagens portuguesas e representa a unificação do mundo, que é estabelecida pela ligação entre Ocidente e Oriente. Os lugares, os produtos e as relações comerciais são os elementos que melhor o caracterizam. O segundo vector organizador das representações refere-se às diferentes civilizações implicadas neste percurso, e aos resultados da hegemonia portuguesa. Os conflitos económicos, políticos e sociais que surgiram entre os europeus, e entre europeus e sul-americanos, e as diferenças de nível civilizacional dos povos colonizados, são as suas dimensões dominantes.

A fase de pré-descoberta associa-se a temas que remetem para questões relacionadas com as políticas de expansão portuguesa, destacando-se questões económicas e políticas relativas às ilhas da Madeira e Açores, a África e ao Oriente. O momento da descoberta é objectivado pela carta de Pêro Vaz de Caminha, onde se relata a chegada das naus portuguesas ao Brasil e os primeiros contactos com os indígenas que ali habitavam. As representações do período pós-descobrimento descrevem o contexto colonial no Brasil e a concorrência europeia pelo império português.

Tal como se pode confirmar em ambas as perspectivas de análise, as relações e os interesses económicos e políticos portugueses em terras estrangeiras, quer se trate dos países africanos, asiáticos ou sul-americanos, são elementos centrais das narrativas analisadas.

As personagens históricas mais referenciadas durante este período estão relacionadas com o grupo social da nobreza portuguesa, onde se destacam os reis e nobres implicados na expansão marítima e nos processos de colonização. Os portugueses, enquanto grupo-chave na evolução das descobertas e conquistas, e os povos indígenas sul-americanos, nomeadamente os índios tupi, são igualmente figuras centrais destes relatos.

As diferenças verificadas quanto à apresentação e à distribuição das várias temáticas apuradas vieram confirmar a heterogeneidade entre os vários manuais, e entre os níveis escolares analisados. Os manuais do 5.° ano são aqueles que maior destaque atribuem à descoberta do Brasil.

ã memória social que emerge da história académica apresentada nos manuais escolares, integra conteúdos que destacam o protagonismo expansionista português. As representações que evocam as viagens e as conquistas portuguesas integram o Brasil numa espécie de figura/fundo (Zavalloni & Louis-Guérin, 1984), e esta descoberta surge como um ponto discreto no contínuo dos diferentes acontecimentos e contextos históricos do nosso país. As representações ligadas aos portugueses da época expressam-nos a presença dum espírito aventureiro, o que aliás também se verificou nos outros quadrantes da pesquisa, sendo a sua acção representada e recordada num ponto de vista de neutralidade e de baixa conflitualidade com os nativos que foram alvo da acção expansionista e dos processos de colonização. As representações dos manuais portugueses, ao contrário do que se verificou nos manuais brasileiros, não salientam conteúdos associados ao domínio pela força. A estrutura temática que designa as questões indígenas e a acção dos jesuítas, apesar de evidenciar dimensões de natureza conflitual, não remete para posições de confronto directo e de domínio, mas para situações que acentuam as diferenças culturais, civilizacionais e religiosas. Este resultado vem suportar a dimensão teórica da diferenciação e da diversidade das representações sociais, e relembra a perspectiva de Lévy-Bruhl, na medida em que se as representações são racionais para os membros de uma cultura, elas não têm que exprimir a mesma lógica aos olhos de outra cultura diferente {Moscovici, 1998, p. 417). As representações sociais, enquanto realidades simbólicas e mentais, funcionam como guias para a acção (Moscovici, 1976), e traduzem formas de expressão que são pertinentes para os grupos descendentes que continuam a identificar-se com elas.

A heterogeneidade verificada entre os diferentes manuais e níveis escolares também nos sugere diferenciação e diversidade ao nível das representações que são transmitidas no contexto curricular da disciplina de história. Esta heterogeneidade aponta para a difusão e manutenção de diferenças qualitativas entre as representações dos jovens que frequentem apenas a escolaridade mínima obrigatória e aqueles que completem o ensino secundário.

Este aspecto reflecte a importância da selecção e organização temática dos curricula e dos manuais escolares, uma vez que os seus conteúdos têm um impacto importante sobre a actualização da memória colectiva das sociedades, e consequentemente sobre as orientações e práticas sociais dos actores sociais descendentes.

As implicações educativas e sociais destes resultados remetem para novas hipóteses de investigação, nomeadamente no que se refere à cristalização de diferenças representacionais entre as crianças e jovens portugueses, em função dos manuais escolares que utilizam. Neste sentido, colocamos as seguintes questões:

Será que os manuais adoptados nas escolas condicionam a diferenciação das representações sociais dos grupos sociais mais jovens? Ou, pelo contrário, será que estas diferenças são minimizadas por outros meios de informação e pelos diferentes contextos sociais onde as crianças e os jovens estão inseridos?

 

Referências

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Moscovici, S. (1976). La Psychanalyse, son image et son public (2.a ed.). Paris: PUE        [ Links ]

Moscovici, S. (1984). The myth of the lonely paradigm: A rejoinder. Social Research, 51, 939-68.         [ Links ]

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Reinert, M. (1998). Quel objet pour une analyse statistique de discours? Quelques réflexions à propos de la réponse Alceste. In S. Mellet (Ed.), JADT 1998 (pp. 557-569). 4emes journées internationales d'analyse statistique des donneés textuelles. Nice, Université de Nice-Sophia-Antipolis.         [ Links ]

Zavalloni, M., & Louis-Guérin, C. (1984). Identité sociale et conscience: Introduction à Végo-écologie. Montréal: Les Presses de l'Université de Montréal.         [ Links ]

 

Notas

1As UCE são unidades de contexto elementar e correspondem aos segmentos de texto que são submetidos à classificação descendente hierárquica.

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