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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.17 no.1 Lisboa Jan. 2003

https://doi.org/:10.17575/rpsicol.v17i1.438 

Interacção mãe-filho e qualidade da vinculação em crianças com alterações neuromotoras

Parental interactions and quality of attachment in cerebral palsied children

 

Marina Fuertes*; Pedro Lopes dos Santos**

*Mestre em psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

**Professor associado da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

 


RESUMO

O presente trabalho investiga a organização dos processos de vinculação em crianças com alterações neuromotoras. A amostra incluía 11 rapazes e 8 raparigas portadores de paralisia cerebral, cuja idade variava entre os 18 e os 32 meses. Estes participantes foram avaliados através de uma versão adaptada da Situação Estranha. Ignorando os sinais D associados aos quadros de alteração neuromotora, verificou-se que 18 das 19 crianças exibiam padrões de vinculação coerentes; 9 pertenciam à categoria dos seguros, 5 à dos evitantes e 4 à dos ambivalentes. A adequação destas classificações foi plenamente confirmada pela análise da função discriminante. Contrariamente ao esperado, não se detectaram quaisquer relações entre os padrões de vinculação e as características das interacções parentais examinadas mediante a parent/caregiver ilnvolvement scale. A discussão realça as implicações teóricas dos resultados e os possíveis contributos da teoria da vinculação para as práticas no domínio da Intervenção Precoce.1

Palavras-chave Vinculação, criança, paralesia cerebral, risco de desenvolvimento.


ABSTRACT

The purpose of this study was to examine quality of attachment in a group of cerebral palsied children. Eleven boys and eight girls with ages ranging from 18 to 32 months were observed in the context of an adapted version of the Ainsworth's Strange Situation procedure. Ignoring indices of disorganization associated to the neurological condition of our participants it was found that 18 out of the 19 observed cases showed coherent attachment patterns. In fact, we were able to identify nine secure, five avoidant and four ambivalent children. The adequacy of this classification was tested by discriminant function analysis which indicated that all cases were correctly classified. No relations were found between children's patterns of attachment and parental interactive behaviors assessed by the Parent/Caregiver Involvement Scale. Theoretical implications of the results and potential contributions of attachment theory for early intervention are discussed.


 

O conceito de vinculação designa o processo pelo qual o indivíduo estabelece uma ligação afectiva privilegiada e duradoura com a figura que habitualmente lhe dispensa os cuidados matemos (Ainsworth, 1989). Traduzindo, segundo Bowlby (1969/1982), uma disposição de carácter instintivo, esta ligação exprime-se, em termos comportamentais, através de uma variedade de respostas cuja consequência previsível será a de criar ou manter situações de proximidade espacial com a mãe.2 Tais respostas englobam reacções como o aproximar-se, o seguir, o tocar, o subir para o colo, o sorriso, o chamar e o choro.

Os comportamentos de vinculação integram um sistema de acção altamente reactivo às variáveis de tipo contextuai. Seleccionado ao longo da filogénese, este sistema tende a responder de forma particularmente intensa quando o indivíduo experimenta alarme ou outras situações de mal-estar físico e psicológico. No caso da criança pequena, eventos como (1) a entrada em ambientes estranhos, (2) a ausência ou afastamento da mãe, (3) a aproximação de desconhecidos, (4) o alarme materno, (5) a experiência da dor, da fadiga e da fome tendem a activar, especificamente, o sistema comportamental da vinculação (Cassidy, 1999). Em tais circunstâncias, a instauração do contacto ou a mera obtenção de proximidade com a figura materna permitirá à criança recuperar um equilíbrio homeostático que se configura, sob o ponto de vista psíquico, pelo predomínio de sentimentos de conforto e de segurança (Bowlby, 1988).

Os fenómenos da vinculação parecem ter um papel importante na regulação da experiência interpessoal dos indivíduos. Operando desde as fases iniciais da existência, estes fenómenos começam a marcar os processos de construção da personalidade numa altura em que a criança não dispõe, ainda, da aptidão para representar claramente os objectos, os sentimentos ou as emoções. Assim, muito antes de conseguir utilizar os recursos da mediação simbólica para estruturar os sentidos do vivenciado, o bebé terá já estabelecido uma poderosa organização de afectos, de condutas e de significados em torno da tarefa de obter segurança, conforto ou protecção por parte das suas figuras de vinculação (Soares, Lopes dos Santos et al.,1996).

A estabilização do sistema comportamental da vinculação representa um marco crítico do processo de evolução ontogénica. Alcançada por volta dos doze meses (Marvin & Britner, 1999), ela culmina uma dinâmica de transformações desenvolvimentais que possuem grande labilidade relativamente às influências do meio. Para Bowlby (1969/1982), a maneira como o indivíduo irá construir e regular as ligações de tipo vinculativo é, em grande parte, pontuada por componentes idiossincráticas que reflectem a qualidade das experiências vividas no quadro das interacções com os outros significativos. Tal ideia encontra suportes sólidos nos dados de vários estudos longitudinais, que relevaram a importância da qualidade da relação mãe-filho na constituição dos chamados padrões seguros e inseguros da vinculação (e.g., Ainsworth, Blehar, Waters & Wall, 1978; Grossmann, Grossmann, Spangler, Suess & Unzner, 1985; Isabella, 1993; Leyendecker, Lamb & Scholmerich, 1997; Martins, 1996).

Aceita-se, hoje, que o modelo da relação segura é um factor crucial para a elaboração da competência da criança. Na verdade, um número apreciável de pesquisas sugere que a segurança da vinculação fornece o terreno mais favorável à negociação das tarefas de desenvolvimento ligadas a dimensões como as da diferenciação do self (e.g., Cassidy, 1990), da regulação emocional (e.g., Carlson, Jacobvitz & Sroufe, 1995; Schneider-Rosen, 1990), da adaptação social (Thompson, 1998) e até do funcionamento cognitivo (e.g., Meins, 1997; Ruitter & van Ijzendoom, 1993; Silva, 1998).

A ideia de que o percurso ontogénico se constrói na base da instituição de estreitas sinergias entre os vários sistemas da personalidade (e.g., Greenspan, 1996; Lopes dos Santos, 2000) possui inegáveis repercussões a nível da definição das estratégias interventivas. Neste contexto, vários trabalhos têm-se proposto investigar a organização dos processos de vinculação em amostras de bebés pertencentes a populações elegíveis para os programas de intervenção precoce (e.g. Capps, Sigman & Mundy, 1994; Cicchetti & Ganiban, 1990; Egeland & Sroufe, 1981; Frodi & Thompson, 1985; Hadadian, 1996; Lederberg & Mobley, 1990; Mira-Coelho, 1998; Osório, 2002).

Inscrevendo-se numa linha de pesquisa que visa apreciar a coerência das adaptações ontogénicas em circunstâncias de crescimento adversas, o presente estudo tem como objectivo central examinar a expressão dos comportamentos de vinculação em crianças diagnosticadas com alterações neuromotoras severas {paralisia cerebral). De facto as graves limitações que estes indivíduos revelam {muitas vezes associadas a dificuldades de índole cognitiva) poderão ter eventuais reflexos no modo como eles estruturam, ao longo dos primeiros anos de vida, os processos do desenvolvimento socioemocional. Tendo em conta a singularidade da sua condição (que proporciona, sob vários aspectos, uma experiência social dotada de especificidades próprias), torna-se relevante saber de que maneira organizam as respostas de vinculação. Que estratégias utilizam para negociar, em ambiente estranho, a proximidade com a figura materna? Será que - à semelhança das outras crianças - exibem padrões consistentes de vinculação referendáveis aos modelos de organização segura ou insegura? Até que ponto tais modelos se relacionam com os factores da interacção mãe-filho? Que ilações poderão ser retiradas para efeitos de intervenção?

A fim de respondermos a estas questões avaliámos os membros da amostra através do procedimento da situação estranha (Ainsworth et al, 1978), introduzindo-lhe algumas ligeiras modificações de modo a adaptarmos o método à especificidade dos indivíduos testados. Observámos, paralelamente, as mães e as respectivas crianças num contexto de jogo livre, com o propósito de obtermos indicadores directos da qualidade interactiva do comportamento materno.

Método

Participantes

A amostra incluiu 19 pares adulto-criança, dos quais 16 eram díades mãe-filho e 3 díades pai-filho. De acordo com as indicações recolhidas, os pais observados desempenhavam um papel muito significativo na prestação de cuidados às suas crianças. Os participantes foram recrutados no Centro de Reabilitação de Paralisia Cerebral do Porto, que lhes assegurava serviços de intervenção precoce. Oito destas crianças pertenciam ao sexo feminino e onze ao sexo masculino.

A sua inclusão ira amostra baseou-se nos seguintes critérios: (a) possuírem diagnóstico de alteração motora congénita de origem neurológica, (b) não serem ainda capazes de locomoção autónoma, (c) viverem com pelo menos um dos pais, (d) não apresentarem suspeita ou comprovação de atraso mental severo, (e) não haver referência a psicopatologia materna ou paterna nem suspeita de abuso de álcool ou drogas.

A média etária das crianças era de 25,26 meses (d.p,= 4,28), com dispersão de idades compreendidas entre os 18 e os 32 meses. Os quadros de alteração motora de que eram portadores tinham expressão variada: dez tetraplegias, uma diplegia, duas hemiplegias, três ataxias, uma hipotonia e duas hemiparésias.

Quanto às características do agregado familiar, 18 das crianças residiam com ambos os pais, à excepção de uma que vivia só com a mãe. No total da amostra, seis crianças tinham pelo menos um irmão, sendo as restantes filhos/as únicos/as.

Tendo como referência a Classificação Nacional das Profissões, os pais distribuíam-se pela primeira (n=l), terceira (n=l), quarta (n=l), quinta (n=5), sétima (n=6) e oitava (n=4) categorias. As mães, por sua vez, incluíam-se na quarta (n=2), quinta (n=4), sétima (n=2), oitava (n=l) e nona (n=l) categorias. De entre as dezanove, dez eram donas de casa, não exercendo qualquer profissão remunerada. Assim, sob o ponto de vista socioeconómico, podemos caracterizar a nossa amostra, em linhas gerais, como sendo predominantemente constituída por agregados familiares pertencentes ao nível médio baixo.

Procedimento

No sentido de averiguarmos a presença de estruturas de organização comportamental susceptíveis de serem descritas em termos de padrões de vinculação, observámos as crianças no contexto da situação estranha (Ainsworth et al, 1978). Conforme é sabido, este procedimento laboratorial decorre numa pequena sala repleta de brinquedos e consta de oito episódios. O primeiro corresponde a uma fase preambular, na qual a mãe e a criança são introduzidas na sala de observação. Os restantes sete, com duração de três minutos cada um, manipulam, experimentalmente, a presença e a ausência da figura de vinculação. Assim, no segundo episódio, mãe e filho permanecem sós, esperando-se que a criança explore os espaços e brinquedos. O terceiro inicia-se com a entrada de um adulto desconhecido [estranha) que após algum tempo procura interagir com a criança. No quarto episódio a mãe ausenta-se discretamente (primeira separação), permanecendo, apenas, na sala a criança e a estranha. O quinto episódio começa com a reentrada da mãe (primeira reunião) que, após a saída da estranha, fica novamente na sala com o filho. Tem, depois, início o sexto episódio, no qual a mãe volta a sair (segunda separação), deixando a criança sozinha. No sétimo episódio, a estranha reentra. O procedimento termina no oitavo episódio com a saída da estranha e o retomo à sala da mãe, que permanece com a criança até ao final da sessão.

Uma vez que estudávamos um grupo com dificuldades motoras acentuadas, introduzimos algumas pequenas modificações no procedimento habitual da situação estranha. Assim, pedimos a uma educadora especializada que sentasse a criança numa cadeira própria, tendo em conta as suas características físico-funcionais. Esta passava todo o período de observação sentada, excepto no último episódio, em que era dada opção à mãe para a retirar da cadeira e segurá-la ao colo. Por outro lado, quando presentes, a mãe e a estranha permaneciam ao lado da criança, que tinha à sua frente um tabuleiro de brinquedos. Este arranjo, que não corresponde ao originalmente proposto, explica-se pelo facto de as suas dificuldades motoras as impedirem de se deslocarem autonomamente e de necessitarem do tabuleiro como base de apoio para a manipulação dos brinquedos. Admitimos, também, um grau de participação dos adultos superior ao usualmente recomendado, já que muitas das crianças tinham dificuldade em chegar por si aos brinquedos, precisando frequentemente de ajuda. Os materiais utilizados foram previamente seleccionados em colaboração com a educadora, tendo em conta as características desenvolvimentais de cada criança. Houve sempre a preocupação de que os materiais escolhidos fossem suficientemente atractivos para favorecerem as actividades de exploração manipulatória.

Efectuámos o registo videográfico de todo o procedimento, que foi depois cotado de acordo com os critérios definidos por Ainsworth (Ainsworth et al, 1978). Seguindo esses critérios avaliámos sete variáveis. As quatro primeiras—procura da proximidade, manutenção do contacto, resistência ao contacto e evitamento da proximidade — são quantificáveis segundo escalas pormenorizadamente operacionalizadas, cujos valores se distribuem entre um e sete pontos. As restantes três — exploração manipulatória, exploração visual e choro —, com definição bem explícita no sistema de observação, são contabilizáveis segundo o método das frequências modificadas. Nesse sentido, cada episódio (à excepção do primeiro) é subdividido em intervalos de tempo de 15 segundos, nos quais o observador se limita a assinalar, independentemente do número de vezes, se o comportamento crítico ocorre ou não. Assim, num total de 3 minutos poderemos obter, potencialmente, um máximo de 12 ocorrências para estes comportamentos. Acontece, porém, que nem sempre os episódios têm a duração prevista. Nessas circunstâncias, os valores observados são transformados em valores relativos mediante a aplicação de uma fórmula que multiplica por doze a razão entre o número dos registos efectuados e a quantidade de intervalos de tempo que o episódio realmente teve.

No presente trabalho a organização comportamental da vinculação foi, apenas, classificada em termos dos padrões A (inseguro evitante), B (seguro) ou C (inseguro ambivalente/resistente) e respectivos subgrupos (Al, A2, B1, B2, B3, B4, Cl, e C2). Decidimos não recorrer à categoria D (desorganizados/desorientados), originalmente descrita em Main e Solomon (1990), pelas seguintes razões:

1 reconhece-se, de uma forma geral, que os critérios de classificação D só são, inequivocamente, aplicáveis a crianças sem alterações neurológicas;

2 alguns dos critérios D concernem respostas típicas nos indivíduos com alterações neuromotoras (e.g., maneirismos, estereotipias...) que, como tal, não indiciam desorganização hipotética dos processos de vinculação (Pipp-Siegel, Siegel & Dean, 1999).

Assim, a atribuição do estatuto de desorganizado/desorientado só poderia ser feita na base de critérios ambíguos e imprecisos. Não obstante, em ordem a precavermo-nos contra possíveis factores de enviezamento, procurámos não forçar as classificações. Por isso considerámos, só, como validamente classificados os casos em que eram exteriorizadas estratégias de vinculação claramente identificáveis com os três padrões acima mencionados. Sempre que tal não sucedesse, os casos seriam tidos como inclassificáveis.

Relativamente a cada uma das crianças, dispúnhamos de uma avaliação informal do seu equilíbrio emocional, efectuada pela educadora especializada que a seguia. Essa avaliação situava-as numa das seguintes três categorias: normal, instável ou imatura. Pesem, embora, os critérios fluidos e pouco objectivos inerentes a tais classificações, achámos interessante considerá-las em ordem a detectar possíveis relações com os padrões de vinculação que viéssemos a identificar.

Com o propósito de examinarmos o comportamento interactivo dos adultos, filmámos uma situação de jogo livre pais-criança (com duração média de 15 minutos). Os filmes foram depois analisados através dos itens da PCIS—parent caregiver involvement scales (Farran, Kasari, Comfort & Jay, 1986). A escolha deste instrumento foi feita por três razões principais:

1 enquanto instrumento de avaliação, a PCIS define procedimentos e critérios de cotação adaptados ao estudo de populações com as características da amostra que examinámos;

2 ofereda-se-nos a possibilidade de ter alguma supervisão por parte da autora principal do instrumento (Dale Farran) na administração e cotação dos itens da PCIS;

3 o conteúdo das escalas, reflectindo embora um construto próprio, contempla diversos aspectos sobreponíveis ao universo conceptual das escalas de sensibilidade materna utilizadas por Ainsworth e a outras dimensões do comportamento parental que décadas de investigação mostraram estar associadas ao desenvolvimento diferencial das estratégias de vinculação infantil (De Wollf & van IJzendoom, 1997).

Os comportamentos interactivos dos adultos eram avaliados no que respeita ao (1) envolvimento físico, (2) envolvimento verbal, (3) capacidade de resposta, (4) Interacção de jogo, (5) comportamento de ensino, (6) controlo sobre as actividades da criança, (7) directivas, (8) relacionamento entre actividades, (9) demonstrações positivas, (10) demonstrações negativas e (11) definição de objectivos. Cada um destes aspectos é pontuado em termos de quantidade, qualidade e adequação, de acordo com uma escala de um a cinco pontos. Relativamente às três dimensões mencionadas, a PCIS prevê a possibilidade de cotações sumárias determinadas pelo cálculo das médias das notas obtidas em cada um dos 11 itens. Poder-se-ão, assim, extrair scores globais para a quantidade, qualidade e adequação do envolvimento parental.

Em ordem a aferir a fidedignidade das cotações, calculámos, sobre um total de dez registos videográficos, medidas de acordo intra-observador (teste-reteste), obtendo níveis de concordância que se situaram nos 90,3%.

Resultados

Os resultados serão apresentados em duas secções distintas. Na primeira, indicaremos até que ponto foi possível identificar padrões de vinculação, avaliando a consistência das classificações efectuadas. Na segunda, examinaremos as eventuais relações entre os padrões do comportamento infantil e as variáveis da interacção pais-filhos.

Antes de avançarmos na nossa exposição, importa salientar que as análises não revelaram efeitos significativos associados ao sexo ou à idade das crianças. Tampouco se detectaram diferenças sistemáticas relacionadas com a severidade dos sintomas de alteração neuromotora. Por essa razão dispensarmo-nos-emos de considerar, aqui, estas variáveis.

Padrões de vinculação

Conforme tivemos oportunidade de referir, um dos nossos objectivos era o de ver se, à semelhança do que se passa com a população em geral, podíamos identificar com clareza padrões de vinculação na amostra das crianças observadas. Ora o Quadro 1 ilustra que nove das crianças revelaram ao longo da situação estranha uma organização comportamental de tipo seguro (grupo B). Em cinco casos foi possível observar o predomínio do estilo evitante (grupo A) e em quatro a prevalência da estratégia ambivalente/resistente (grupo C). Apenas não foi possível classificar um dos 19 participantes.

A análise deste mesmo quadro indica que tivemos de recorrer a todos os subgrupos para classificarmos as crianças. Os mais usados foram o Al, o BI e o Cl. Inversamente os subgrupos A2 e C2 correspondem aos que incluem menos casos.

Com o propósito de averiguarmos até que ponto os padrões de vinculação estavam relacionados com a expressão diferencial das respostas das crianças, examinámos os valores das variáveis de comportamento em função dos grupos A, B e C. No que diz respeito à procura da proximidade, manutenção do contacto e resistência ao contacto, calculámos, para cada um dos três grupos, as médias obtidas no conjunto dos episódios de pré-separação (episódios 2 e 3) e de reunião (episódios 5 e 8). Conforme o Quadro 2 indica, antes da primeira separação (ocorrida durante o quarto episódio) as crianças evitantes, seguras e ambivalentes/resistentes não se distinguiram entre si no modo como procuraram o adulto familiar, tentaram o contacto físico ou lhe ofereceram resistência. De facto, os resultados da análise estatística estiveram longe de encontrar discrepâncias significativas em qualquer uma das variáveis examinadas.

Os resultados apresentaram configuração diferente quando as análises consideraram, globalmente, os episódios de reunião (figura 1). Nesse contexto, os ambivalentes/resistentes evidenciaram os índices maiores de procura de proximidade, diferindo significativamente das crianças seguras (U de Mann-Whitney= 4; p<0,02) e evitantes (U de Mann-Whitney= 0,50; p<0,008). Por sua vez, os membros deste último grupo não procuraram tão activamente a proximidade da mãe como os seguros (U de Mann-Whitney= 7,00; p<0,02).

Relativamente à manutenção do contacto, os ambivalentes/resistentes diferiram significativamente dos evitantes (U de Mann-Whitney= 2,50; p<0,02), não se distinguindo de forma sensível dos seguros (U de Mann-Whitney= 8,50; n.s.). Da mesma forma, os resultados das crianças seguras estiveram longe de divergir significativamente dos registados junto das evitantes (U de Mann-Whitney= 12,50; n.s.).

A resistência ao contacto durante as fases de reunião foi mais marcada no grupo dos ambivalentes/resistentes do que no dos seguros (U de Mann-Whitney= 0,00; p<0,008) e nos evitantes (U de Mann-Whitney- 0,00; p=0,014), que se mostraram, por sua vez, mais resistentes do que os seguros (U de Mann-Whitney= 6,00; p<0,022).

Dada a sua interpretação teórica (e.g.; Isabella, 1993; Soares, Lopes dos Santos et al, 1996) e critérios de operacionalização (Ainsworth et al, 1978), as respostas de evitamento só deverão ser cotadas ao longo dos momentos de reunião. A figura 2 ilustra que o evitamento à mãe, considerado no conjunto dos episódios 5 e 8, variou de acordo com a classificação das crianças. Na verdade, as crianças classificadas no grupo A evitaram mais intensamente a figura materna do que as seguras (U de Mann-Whitney= 0,50; p<0,001) e as ambivalentes/resistentes (U de Mann-Whitney= 1,00; p<0,02). Todavia, entre seguros e ambivalentes não foram detectadas diferenças significativas (U de Mann-Whitney= 13,00; n.s.).

Durante os episódios que antecederam a primeira separação, os três grupos voltaram a não se distinguir no que respeita à manifestação dos comportamentos de exploração manipulatõria, de exploração visual e de choro (cf. quadro 3).

Afim de examinarmos as alterações destes comportamentos ao longo da situação estranha, considerámos os valores nos episódios de pré-separação como linha de base e avaliámos as diferenças entre eles e os observados nos momentos de separação (episódios 4,6 e 7) e alturas de reunião (episódios 5 e 8).

A figura 3 ilustra que, durante os períodos de separação, os ambivalentes diminuíram de forma notória as actividades de exploração manipulatória. Esse decréscimo foi substancialmente menos acentuado nos seguros, registando-se um ligeiro incremento junto das crianças evitantes. As análises mostraram que esta evolução diferiu significativamente de acordo com os grupos (H de Kruskal-Wallis= 9,29; p-0,01). Os episódios de reunião estiveram longe de modificar a tendência observada junto dos ambivalentes. No entanto, comparativamente ao registado antes da primeira separação, o reencontro com a mãe trouxe, para os seguros, um ligeiro aumento da actividade de exploração manipulatória e uma ténue diminuição nos evitantes, Genericamente, os padrões de alteração verificados entre os episódios de pré-separação e de reunião contrastam significativamente os três grupos de crianças (H de Kruskal-Wallis= 9,69; p-0,008). A configuração dos resultados não apresentou grandes modificações quando as análises focalizaram as actividades de exploração visual. Efectivamente, à semelhança do que sucedeu no caso anterior, os ambivalentes evidenciaram um decréscimo muito sensível dos comportamentos exploratórios, Ao longo dos episódios de separação, observou-se uma diminuição bastante menos acentuada junto dos évitantes, que durante as reuniões retomaram a valores praticamente idênticos aos da linha de base. Os seguros não evidenciaram, aqui, flutuações de resposta sensível. A comparação entre os grupos revelou que, em termos gerais, diferiram significativa mente no modo como as suas respostas evoluíram dos episódios de pré-separação para os de separação (H de lõrus-kal-Wallis= 7,17; p=0,028) e de reunião (H de Kruskal-Wallis= 6,62; p=0,036), Finalmente, no que diz respeito ao choro, as nossas observações indicam que a saída da mãe induziu perturbação nos três grupos, que foi bastante mais patente nos ambivalentes e menos evidente junto dos évitantes {H de Kruskal-WalHs= 7,85; p=ü,02). Em relação aos episódios de reunião regista-se em todos os grupos um ligeiro apaziguamento, mas o padrão das diferenças entre eles mantém-se significativamente similar (H de Kruskal-Wallis= 10,66; p=0,005).

Importa enfatizar que o nosso estudo tentou, pela primeira vez, diferenciar estratégias de vinculação numa amostra de crianças com alterações neuromotoras, adaptando os procedimentos metodológicos habitualmente utilizados na avaliação de populações com desenvolvimento típico, Nessa perspectiva, as condições inusitadas do trabalho poderiam introduzir factores de enviezamento na identificação dos padrões de vinculação. Decidimos, por conseguinte, indagar até que ponto alguns elementos objectivos apoiavam ou não a consistência das nossas classificações. Assim, recorremos à análise da função discriminante (DISCRÍM), com o objectivo de examinarmos as relações entre os padrões de vinculação e as variáveis procura da proximidade, manutenção ao contacto, resistência ao contacto e evitamento da proximidade, nos dois episódios de reunião tomados conjuntamente.

Conforme o quadro 4 destaca, a DISCRIM calculou duas funções discriminantes e os centróides para os três grupos, A primeira função maximiza a separação entre os seguros e os restantes grupos (évitantes e ambivalentes). Pelo seu lado, a segunda função discriminante separa estes dois últimos grupos. Os dados mostraram, igualmente, que tendo como base os valores discriminantes, foi possível classificar as 18 crianças de maneira totalmente sobreponível à nossa classificação (100% de acordo nos três grupos).

Referimos, anteriormente, que possuíamos dados de avaliação informal acerca do equilíbrio emocional das crianças, efectuada pelas educadoras especializadas que habitualmente as seguiam. A figura 4 ilustra que oito dos nove indivíduos classificados como seguros foram incluídos pela respectiva educadora na categoria dos normais. No que respeita às inseguras (ambivalentes e evitantes), sete eram dadas como instáveis/imaturas e apenas duas obtiveram a classificação de normal. Contrastadas pelo teste exacto de Fisher, as distribuições revelaram ser estatisticamente significativas (p=0,01).

Padrões de vinculação e comportamento interactivo das mães

Conforme referimos, as mães foram avaliadas em interacção com as suas crianças numa situação de jogo livre. Analisámos os registos videográficos então obtidos através das escalas da PCIS (Farran, Kasari et al,1986).

O quadro 5 ilustra que não houve diferenças significativas associadas aos grupos de crianças quando se consideraram, na globalidade das onze escalas, as dimensões da quantidade, qualidade e adequação. Esta tendência verificou-se, igualmente, quando as análises consideraram separadamente cada uma das escalas. Da mesma forma, não foi possível infirmar a hipótese nula ao utilizarmos como base de comparação a repartição dicotômica das crianças em seguras e inseguras (seguros versus evitantes+ambivalentes/resistentes).

Discussão

O presente estudo procurou investigar a organização diferencial dos processos de vinculação numa amostra de 19 crianças diagnosticadas com alterações neuromotoras graves. Para tal utilizámos — com algumas adaptações — o procedimento laboratorial conhecido sob a designação de situação estranha. As modificações introduzidas foram mínimas, não sendo plausível que trouxessem factores de enviezamento capazes de invalidarem a possibilidade de compararmos os nossos resultados com a generalidade das observações tipicamente efectuadas através daquele método.

Ao idealizarem a situação estranha, Ainsworth et al. (1978) partiram do pressuposto de que a figura de vinculação constituirá uma base segura a partir da qual o filho pode explorar sem receio o ambiente à sua volta. A criança confiará, então, na aceitação, disponibilidade e acessibilidade do adulto, agindo como se fossem válidas algumas regras implícitas: "a mãe aceita que eu me afaste dela e explore todos estes brinquedos interessantes"; "a mãe acorrerá de imediato em caso de aflição"; "a mãe não me afastará nem se sentirá incomodada comigo se eu manifestar medo ou lhe pedir auxílio e apoio"; "a mãe permanecerá perto e estará à minha espera quando eu regressar para junto dela". A criança fica, então, emocionalmente liberta para olhar em redor, deambular, interessar-se pelos objectos, explorá-los e até aprender. Porém, se ao longo da sua história pessoal se acumularem experiências que infirmem aquelas regras, a confiança no adulto desvanecer-se-á. Perante a insegurança sentida, alguns bebés poderão refrear a motivação para explorar, investindo parte significativa dos esforços na tentativa de manter, prioritariamente, a proximidade com a mãe (e.g., ambivalentes/resistentes). Outros, invadidos por uma ansiedade ancorada em expectativas de rejeição, procurarão controlar defensivamente a expressão emocional negativa, envolvendo-se numa actividade exploratória que, muitas vezes, ignora a figura de vinculação (e.g., evitantes).

Os défices que caracterizam a criança com alterações neuromotoras diminuem as suas possibilidades de explorar o ambiente. Tal facto coloca-a numa maior dependência do adulto, a quem recorrerá para poder deslocar-se no espaço ou chegar aos objectos mais distantes. É, pois, admissível que a maneira como ela constrói a relação com o mundo social revele especificidades, à luz das quais se moldará de forma diversa o seu processo de desenvolvimento. Todavia, os resultados obtidos ilustram que os nossos participantes, quando observados ao longo da situação estranha, exibiram estratégias de vinculação coerentes e similares às observadas junto das populações normais. Efectivamente, recorrendo aos critérios propostos por Ainsworth et al (1978), pudemos verificar que de entre os dezanove casos avaliados, metade evidenciava características típicas do padrão seguro, cinco do padrão evitante e quatro do padrão ambivalente. No total da amostra, apenas uma criança foi tida como inclassificável.

A consistência das classificações efectuadas obteve confirmação estatística nos dados resultantes da análise da função discriminante. No entanto, alguns factos adicionais suportam complementarmente a validade destas avaliações.

Em primeiro lugar, parece-nos merecer algum realce o paralelismo existente entre as classificações feitas com base nos desempenhos observados na situação estranha e os resultados dos juízos "impressionistas" que as educadoras produziram acerca da estabilidade emocional das crianças. Vimos, de facto, que a esmagadora maioria dos seguros (oito em nove) foram por elas percebidos como crianças emotivamente normais e estáveis. Pelo contrário, no grupo dos inseguros só tuna escassa minoria acabou por ser avaliada da mesma maneira. Curiosamente, a generalidade dos teóricos da vinculação postula que o padrão seguro corresponde à organização comportamental mais adaptativa (e.g., Belsky, 1999; Bowlby, 1969/1982; Meins, 1997). Porém, interessa realçar que não pretendemos, de modo algum, sobrevalorizar este paralelismo. De facto, estamos cientes que a avaliação das educadoras possui o mero valor de uma percepção baseada em critérios informais, cuja validade não será, em princípio, tão robusta como a de uma apreciação clínica feita por técnicos especializados no domínio da psicopatologia infantil. No entanto, temos presente que se trata de um juízo independente das nossas classificações, oriundo de profissionais que lidam diariamente com estas crianças e que possuem delas um conhecimento aprofundado. Por essa razão, o valor da sua avaliação não deverá ser inteiramente desqualificado.

Outras razões que suportam a consistência das nossas classificações prendem-se com a análise das respostas exibidas ao longo da situação estranha. Na verdade, um olhar atento revela a existência de uma compatibilidade fundamental entre os resultados por nós obtidos e os dados provenientes da literatura (e.g., Ainsworth, Blehar et al, 1978; Grossmaxm, Grossmann et al, 1981; Main, 1983). Sem pretendermos pormenorizar todo o conjunto de observações realizadas, salientamos, a propósito, os seguintes aspectos:

1 entre os episódios de pré-separação e os de separação, as crianças ambivalentes/resistentes distinguiram-se, claramente, das restantes, por diminuírem substancialmente mais as actividades de exploração (manipulatória e visual) e manifestarem níveis superiores de choro sem se verificar uma recuperação notória nas fases de reunião;

2 as medidas de procura de proximidade e de manutenção do contacto durante os episódios de reunião apresentaram valores mais elevados nos seguros e nos ambivalentes/resistentes e mais baixos nos evitantes;

3 os índices de resistência foram, ao longo dos mesmos episódios, menos elevados nos seguros, aumentaram ligeiramente nos evitantes, atingindo os índices mais altos nos ambivalentes/resistentes;

4 o evitamento foi significativamente maior no grupo dos evitantes do que nos restantes dois grupos.

Este conjunto de factos reproduz as tendências apuradas pela generalidade dos estudos que utilizam a situação estranha na avaliação dos padrões de vinculação. Os resultados parecem, assim, indicar que a organização socioemocional da criança com alterações neuromotoras possui uma coerência desenvolvimental de contornos similares aos encontrados junto das populações normais. Aliás, a própria distribuição dos participantes pelos grupos A, B e C reforça, de alguma maneira, essa mesma ideia. Na verdade, os dados da investigação mostram que o padrão seguro surge maioritariamente representado na generalidade das amostras (e.g., van IJzendoom & Sagi, 1999). Ora, o presente estudo apurou que 50% dos sujeitos foram classificados no grupo B. Caso se venha a confirmar que o padrão em causa aparece, efectivamente, com maior predominância no universo das crianças afectadas por quadros de paralisia cerebral, fará sentido admitirmos que os processos de alteração neuromotora não acarretam qualquer especificidade susceptível de afectar significativamente o desenvolvimento de vinculações do tipo seguro.

Zigler e Hodapp (1986) argumentam que a comprovação plena da similaridade desenvolvimental subsistente entre duas populações exige a verificação de que a emergência de expressões fenotípicas com características idênticas ou aproximadas está funcionalmente associada aos mesmos factores determinantes. É sabido que as estratégias comportamentais da vinculação reflectem, em grande parte, a qualidade das transacções materno-infantis. Por conseguinte, a validação da hipótese segundo a qual o desenvolvimento dos mecanismos básicos da vinculação nos indivíduos portadores de alteração neuromotora é semelhante ao das crianças normais exige que os padrões de segurança e de insegurança estejam, analogamente, relacionados com as variáveis da interacção mãe-filho.

Ora, os nossos resultados parecem não suportar essa hipótese. Com efeito, as observações efectuadas estiveram longe de verificar a existência de associações significativas entre os padrões de vinculação e os comportamentos parentais examinados em contexto de jogo livre.

Poderemos, hipoteticamente, conjecturar que as escalas de avaliação do comportamento parental não teriam sido usadas com a fidedignidade requerida. Importa, todavia, salientar que a pessoa responsável pelos registos observacionais estudou exaustivamente, durante vários meses, os itens da PCIS, visionou repetidamente os vídeos de treino cedidos pela principal autora do instrumento (Dale Farran) e teve a oportunidade de desfazer dúvidas de cotação e colher orientações directamente junto desta investigadora. Por conseguinte, (embora não inteiramente descartável) a hipótese de que os registos teriam sido pouco fidedignos constituirá uma justificação menos plausível.

Outra possibilidade prender-se-á com as características do instrumento utilizado para avaliar as interacções. A propósito do desenvolvimento e estabilização dos padrões de vinculação, De Wolff e van Ijzendoorn (1997) sugerem que a sensibilidade interactiva não possuirá a importância que de início lhe foi atribuída, havendo outras dimensões tão ou mais relevantes. Se atendermos ao conteúdo das escalas da PCIS, reconhecemos facilmente a existência de atributos análogos e sobrepostos aos aspectos tidos como determinantes na constituição do tipo de desejabilidade de vinculação à mãe. Não obstante/ Seifer, Schiller/ Resnick/ Riordan e Sameroff (1996), utilizando estas mesmas escalas junto de um grupo de crianças com desenvolvimento normal, não apuraram qualquer relação significativa entre a quantidade, a qualidade ou a adequação das respostas interactivas das mães e as estratégias de vinculação infantil Assim, independentemente das apreciações acerca dos seus conteúdos, poderá haver uma inapropriação da PCIS para apreender as facetas que detêm papel crucial na diferenciação dos vários padrões de vinculação. Tal hipótese não é, todavia, corroborada pelas recentes observações dum estudo realizado por um dos autores do presente trabalho (Fuertes, dados ainda não publicados). Efectivamente, no quadro de uma abordagem longitudinal acerca da construção dos padrões de vinculação perante a prematuridade, esta investigadora pôde constatar que várias das medidas da PCIS possuíam elevado valor prognóstico relativamente aos perfis de comportamento exibidos pelas crianças no contexto da situação estranha.

Os factos por nós relevados, não detectando qualquer relação entre a qualidade das interacções e os padrões da vinculação infantil, parecem ter a singularidade de contradizerem uma tendência amplamente confirmada por um impressionante número de pesquisas efectuadas, quer com crianças típicas Ainsworth et al, 1978; Cox, Owen, Henderson, & Margand, 1992; Fish & Stifter, 1995; Grossmann et al., 1985; Isabella, 1993; Leyendecker, Lamb &Scholmerich, 1997; Martins, 1996; Pederson & Moran, 1996; Susman-Stillman, Kalkoske, Egeland & Waldman, 1996) quer com crianças pertencentes a populações de risco (e.g., Atkinson, Chisholm, Scott, Goldberg, Vaughn, Blackwell, Dickens & Tam, 1999; Capps, Sigman & Mundy, 1994; Ganiban, Bamett & Cicchetti, 2000; Lederberg & Mobley, 1990). Uma explicação potencial residirá, eventualmente, nas características do design do nosso estudo, que é, sob certos aspectos, diferente da maioria das investigações que encontraram relações entre a qualidade da vinculação e os atributos do comportamento parental De uma forma geral, esses trabalhos são de natureza longitudinal, realizando, ao longo dos primeiros meses de vida da criança várias avaliações da interacção mãe-filho. Há, também, exemplos de abordagens que, sem possuírem cariz longitudinal, optam por uma metodologia de natureza prospectiva, recolhendo as medidas relativas ao funcionamento diádico alguns meses antes da administração da situação estranha, Ora, o desenho da presente pesquisa possui duas particularidades que a distinguem das acabadas de mencionar:

1 os dados referentes à interacção mãe-filho foram, apenas, recolhidos durante uma única sessão de observação;

2 a avaliação dessa interacção e dos comportamentos de vinculação no contexto da situação estranha é, praticamente, contemporânea, não havendo uma verdadeira relação de anterioridade entre a realização da primeira e da segunda.

Tais diferenças podem ter sido realmente importantes. Por um lado, não dispúnhamos de amostras tão extensas do comportamento materno, sendo sempre admissível a possibilidade de nos oferecerem um corpus insufidentemente representativo das características da actividade interacdonal das mães, Por outro, interessa enfatizar que as díades observadas estavam submetidas a um programa de intervenção precoce estruturado segundo o modelo centrado na família. Até que ponto tal programa teria interferido nos resultados? Imaginemos, a título de exemplo, que as mães das crianças inseguras (à partida com uma qualidade de interacção inferior h dos seguros) beneficiaram com o programa, não evidenciando, já, grandes distorções ao nível da comunicação mantida com os filhos. Suponhamos, também, que OS progressos eram recentes e que não tinha decorrido, ainda, tempo suficiente para se reflectirem na maneira como as suas crianças organizavam as estratégias de vinculação. Nestas circunstâncias os resultados efectivamente obtidos estariam longe de ser surpreendentes.

Belsky (1999) nota que é pouco sensato esperar uma correspondência absoluta entre as observações efectuadas em estudos que introduzem variações ao nível dos procedimentos utilizados. De facto, os problemas podem ter mais a ver com tais alterações do que propriamente com as hipóteses em si. Sem pretendermos com isto desqualificar a questão (que merece, sem dúvida, ser retomada no âmbito de um novo estudo), a verdade é que a coerência dos comportamentos e dos padrões de vinculação encontrados torna plausível pensar que os factores da interacção mãe-filho deverão, também, possuir papel relevante no desenvolvimento da segurança junto das crianças com alterações neuromotoras.

A confirmar-se tal sugestão, sai reforçada a ideia de que o processo interventivo dirigido a esta população deverá emprestar ênfase particular ao trabalho centrado no sistema das interacções parentais. Autores como van Ijzendoom, Juffer e Duyvesteyn (1995), num estudo meta-analítico da literatura, referem duas grandes linhas de intervenção directamente inspiradas pelos conceitos da teoria da vinculação. A primeira, enquadrável no modelo do treino de competências, desenvolve programas de modificação do estilo de resposta das mães, promovendo a aprendizagem intencional de estratégias de comunicação utilizáveis no quadro das interacções adulto-criança. A segunda, recorrendo à noção de modelos operativos internos (internal working models), incide o esforço interventivo sobre as representações e narrativas parentais que medeiam, sob o ponto de vista cognitivo, a relação com o filho.

Os resultados, indicando a presença de alguns efeitos positivos associados a ambos os tipos de intervenção, são controversos quanto à maior ou menor eficácia de cada um (van Ijzendoom et aí., op cit.). Julgamos, à luz da evolução dos conceitos e das práticas em intervenção, que os seus racionais pecam por uma visão demasiado restrita dos problemas. Com efeito, tanto a criança como a mãe estão em mudança e como tal influenciam e sofrem, simultaneamente, os efeitos dos cenários onde se inserem (Sameroff, 1993). Verifica-se, de facto, nesta e noutras populações de risco, uma certa vulnerabilidade familiar, com elevada prevalência de divórcios, depressões e uma tendência das mães para interromperem ou abandonarem a sua actividade laboral (e.g., Kogan, Tyier, & Tumer, 1974).

As ideias avançadas, há já algumas décadas, pela abordagem de Sameroff e Chandler (1975) oferecem, aqui, importantes guiões heurístico-hermenêuticos, que ajudam a pensar formas de actuação delineadas segundo lógicas mais compreensivas. De acordo com este modelo, o desenvolvimento da competência infantil inscreve-se no quadro do funcionamento de sistemas de transacção complexos, marcados pela reciprocidade das influências e das mudanças. Nesta óptica, Sameroff e Fiese (2000) argumentam que o processo de intervenção focalizará, potencialmente, o comportamento da criança, os referendais de significação parental — muitas vezes ligados a códigos de funcionamento pessoal, conjugal e familiar — e a capacidade dos pais para responderem à criança. Trata-se, segundo os dois autores, de linhas de intervenção complementares que surgem, tipicamente, designadas pelas expressões de remediação, redefinição e reeducação. Interessa, assim, considerar que, perante a severidade normalmente associada aos quadros da alteração motora, as estratégias de intervenção deverão dimensionar-se em vários azimutes:

1 no apoio à inabilidade motora da criança, melhorando as suas capacidades de sinalização e promovendo o seu desenvolvimento global (remediação);

2 ao nível do comportamento e das cognições parentais, promovendo a aprendizagem de competências interactivas adequadas às necessidades do filho (reeducação);

3 na acção sobre a família, procurando responder aos seus anseios e necessidades, nomeadamente através da disponibilização de serviços de apoio e de suporte social.

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Notas

1O presente trabalho foi financiado pela FCT, Programa CPSl-50, Centro de Psicologia, linha n.° 3.

2À semelhança do que sucede na generalidade dos trabalhos produzidos no domínio da teoria da vinculação, o termo mãe não se refere necessariamente à mãe biológica dos indivíduos. Com esta palavra pretende-se designar qualquer figura (feminina ou masculina, ligada ou não por laços de sangue) que desempenha, numa base regular, funções de prestador de cuidados à criança.

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