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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.16 no.1 Lisboa Jan. 2002

 

Teorias implícitas acerca da inteligência: Aspectos desenvolvimentistas e de género

Lay theories about intelligence: developmental and gender perspectives

 

Virgílio Amaral*

*Instituto Superior de Psicologia Aplicada.

 


RESUMO

Neste trabalho apresentamos uma revisão de literatura, nomeadamente de pesquisas empíricas, sobre as teorias implícitas acerca da inteligência, de acordo com as variáveis desenvolvimento e género. Procurou-se também enquadrar o conjunto de investigações em três linhas teórico-empirícas: uma perspectiva cognitivo-desenvolvimentista, a perspectiva das teorias pessoais da inteligência enunciada por Carol Dweck, e a dos estudos multidimensionais sobre concepções de senso comum acerca da inteligência, ligados, sobretudo no que diz respeito aos estudos europeus, à teoria das representações sociais. Clivagens e aspectos comuns são discutidos.1

Palavras-chave Teorias implícitas, inteligência, desenvolvimento, género, representações sociais.


ABSTRACT

In this work we present a review of empirical researches on lay theories about intelligence, according to gender and developmental perspectives. We try to fit the researches in three theoretical and empirical frameworks: a cognitive-developmental perspective, the theory of the personal conceptions about intelligence and multidimensional studies on common sense conceptions about intelligence, linked to social representations theory, in particular the European researches. Common and distinct aspects are discussed.


 

Introdução

É escassa a literatura sobre as teorias implícitas de crianças e adolescentes acerca da inteligência, seja do ponto de vista das pesquisas da ontogénese, como da sociogénese daquelas concepções.

Neste âmbito, podemos, contudo, identificar três tipos de abordagens: a teoria das concepções pessoais da inteligência (Dweck, 2000; Dweck & Elliot, 1983; Dweck, Chiu & Hong, 1995; Cain & Dweck, 1989); uma abordagem estritamente cognitiva-desenvolvimentista (Lehay & Hunt, 1983; Nicholls, Patashnick & Mettetal, 1986; Stipek, 1981; Stipeck, 1987; Stipek & Tannatt, 1984; Stipek & Daniels, 1988; Stipek & Mac Iver, 1989); e um confronto intercultural de pesquisas centradas numa análise multidimensional dos conteúdos representacionais da inteligência, em crianças e adolescentes (Yussen & Kane, 1983; Raty & Snellman, 1993; Selleri, Carugati & Bison, 1994).

Acresce que, para a individuação e a comparação das teorias implícitas acerca da inteligência de acordo com o género, ou ainda de acordo com a contextualização dos sujeitos em meio escolar, se torna necessário recorrer a estudos realizados com adultos.

De facto, como mostra o trabalho de Lloyd e Duveen (1990), a propósito do desenvolvimento das representações sociais do género, o desenvolvimento e diferenciação das representações é também tributário do sistema de representações pré-existentes, ou seja, das representações dos adultos, as quais estruturam o espaço simbólico das práticas e relações sociais (Clémence, Doise & Lorenzo-Cioldi, 1994), o que reenvia portanto para a intemalização daquelas representações pré-existentes, por parte das crianças e adolescentes.

A teoria das concepções pessoais da inteligência

No domínio dos estudos sobre as concepções pessoais de inteligência, em crianças e adolescentes, salientam-se os trabalhos de Dweck (2000), Dwcck e Elliot (1983) e, particularmente, de Faria e Fontaine (1989,1997) e Faria (1995).

Por concepções pessoais entendem-se as teorias implícitas dos sujeitos acerca de atributos pessoais ou construtos do self, como a inteligência, a moralidade, as competências pessoais (Cain & Dweck, 1989; Dweck, Chiu & Hong, 1995) ou sociais (Faria, 1997).

As investigações neste campo permitiram delimitar dois tipos de teorias ou concepções: uma concepção estática, de acordo com a qual o atributo em questão é qualidade (traço) fixa; e uma concepção dinâmica, de acordo com a qual o mesmo atributo é flexível e pode ser desenvolvido. As crianças com concepções estáticas tendem a orientar-se para a demonstração da sua inteligência através das suas performances no desenvolvimento de tarefas, mantendo, frequentemente, o receio de cometer erros, em particular em contextos avaliativos (Dweck, 2000; Dweck & Elliott, 1983). As crianças com concepções dinâmicas relacionam o desenvolvimento da sua inteligência com os processos de aprendizagem, adoptando uma orientação mais para a aprendizagem do que para a demonstração de performances, percepcionando as novas tarefas como desafios para o incremento da sua inteligência (Dweck, 2000; Dweck e Elliott, 1983).

De acordo com Dweck (2000), as concepções pessoais da inteligência têm importantes consequências sobre as dimensões motivacionais, mormente no que respeita ás aprendizagens escolares.

Por exemplo, numa pesquisa recente, Stipek e Gralinski (1996) mostram que crianças com idades entre os 8 e os 11 anos tendem a acreditar de formas diferentes na eficácia do esforço pessoal e adoptar diferentes estratégias de aprendizagem em função do tipo de concepções: as crianças com concepções estáticas acreditam menos no factor esforço e adoptam estratégias superficiais e ineficazes, as crianças com concepções dinâmicas adoptam, predominantemente, estratégias de mestria e crêem mais na eficácia do esforço.

Como mostra Dweck (2000), as concepções pessoais de inteligência são passíveis de mudança em função de processos de influência social. Por exemplo, numa investigação relatada por aquela autora (Dweck, 2000), a apresentação a estudantes de psicologia de um artigo supostamente científico, segundo o qual a inteligência era, numa das versões, inata e não mutável, e, na outra versão, o seu incremento resultaria do esforço e de factores ambientais, influenciava as concepções pessoais de inteligência dos estudantes, bem como dos seus padrões de realização perante o insucesso em tarefas académicas.

Num estudo transversal efectuado por Faria e Fontaine (1989, 1997) foi observado o impacto de algumas variáveis independentes sobre as concepções pessoais de inteligência em adolescentes. Essas variáveis são de natureza sociográfica, como a categoria sexual de pertença e o nível socioeconómico, bem como relativas ao percurso escolar.2 Os resultados mostram que, no contexto português, não existem diferenças significativas entre rapazes e raparigas, e que os sujeitos com nível socioeconómico mais baixo apresentam concepções mais estáticas do que os sujeitos de nível socioeconómico mais elevado. Observa-se ainda, numa escala de concepções estáticas, uma evolução para este tipo de concepções no decorrer da escolaridade, sobretudo entre os alunos do 5° e 9.° anos de escolaridade.

Segundo Faria e Fontaine (1997), as exigências escolares que levam os alunos a patentearem bons resultados e boas performances, tornam o desenvolvimento para concepções estáticas um modo de adaptação pessoal às exigências da escola.

Já o facto de se não evidenciarem diferenças significativas entre os alunos do 9.° e do 11.° anos, leva as autoras a uma interpretação em termos de factores de desenvolvimento cognitivo e das experiências dos adolescentes. Assim, por um lado, os sujeitos no período formal mostrar-se-ão mais capazes de definir projectos e de conceberem as suas capacidades como sendo modificáveis. Por outro lado, com novas experiências no período adolescencial, poderão vir a representar-se como promotores activos das suas competências e da sua inteligência.

Faria (1995) aprofundou, posteriormente, os estudos de validação da escala de concepções pessoais de inteligência, desenvolvida por Faria e Fontaine (1989) sobre uma amostra de adolescentes maior e mais diferenciada, num estudo de carácter longitudinal. Simultaneamente, testa os efeitos do género, nível de escolaridade (do 5.° ao 11.° anos), nível socioeconómico (baixo, médio e alto) e zona de residência (rural ou urbana), enquanto "factores de diferenciação dos contextos de existência" (Faria, 1995, p. 228).

Confirmaram-se os resultados de Faria e Fontaine (1989) em relação à ausência de diferenças ao nível das categorias sexuais de pertença e existência de diferenças em função do nível socioeconómico.

Observaram-se ainda dois efeitos de interacção. Um entre o nível de escolaridade e o nível socioeconómico, constatando-se que os sujeitos de nível socioeconómico elevado se apresentam mais "dinâmicos" que os de nível socioeconómico baixo nos primeiros anos de escolaridade, diferença que tende a esbater-se no decorrer da escolaridade, revelando os sujeitos nos últimos anos concepções dinâmicas. Este resultado sugere, segundo a autora, que a escola terá um efeito uniformizante no desenvolvimento de concepções dinâmicas e que, levando a uma selecção dos sujeitos, a mesma incidirá sobre aqueles com concepções estáticas.

O segundo efeito de interacção regista-se entre o nível de escolaridade e a zona de residência, que mostra que, no 9.° ano, os sujeitos da zona urbana surgem menos “estáticos" que os da zona rural, e o inverso sucede em anos mais avançados. Segundo Faria (1995), este resultado corrobora a hipótese da selecção dos sujeitos "dinâmicos" ao longo da escolaridade, aqui mais visível entre os da zona rural.

Num artigo de recensão acerca das investigações que identificam a influência do género sobre as concepções pessoais de inteligência, Faria (1998a) nota que, na cultura norte-americana, se verificam diferenças, apresentando as raparigas concepções mais estáticas e os rapazes concepções mais dinâmicas. Estas diferenças dever-se-ão, sobretudo, às diferenças na avaliação por parte dos professores das competências de rapazes e raparigas. Assim, enquanto os rapazes são negativamente apreciados ao nível de aspectos não intelectuais (comportamentais ou motivacionais), já as avaliações negativas das raparigas dizem respeito aos aspectos intelectuais. Deste modo, o significado atribuído ao tipo de avaliações a que são sujeitos, por parte dos rapazes, reporta às atitudes dos avaliadores (face ao fracasso académico, os rapazes tendem a culpar os avaliadores pelas suas atitudes e comportamentos). As raparigas interpretam as avaliações negativas como subsequentes à falta de capacidades intelectuais.

Segundo Faria (1998a), dado que as concepções estáticas levam a padrões de realização baixos, este aspecto reflectir-se-ia na escolha, pelas raparigas, de profissões menos exigentes, pelo menos no contexto cultural norte-americano.

Como atrás constatámos, os estudos de Faria (Faria, 1995; Faria & Fontaine, 1989; Faria & Fontaine, 1997) mostram a inexistência de efeitos do factor género em Portugal.

Faria (1998b) avança com uma hipótese explicativa, que tem a ver com características do actual contexto cultural português e de factores de socialização associados.

O papel feminino pode ter-se alterado, com a crescente feminilização do mercado de trabalho e do ensino. Este último aspecto é, aliás, confirmado por Grácio (1997). Assim, ao contrário dos dados evidenciados nos anos 80 por Fontaine (1986), o nível das aspirações das raparigas já não se revela inferior ao dos rapazes. Pelo contrário, parece existir hoje uma tendência para a igualização das oportunidades sociais entre os géneros, sendo a escola um importante factor desta mudança social. Um nível de aproveitamento escolar superior nas raparigas indicia, porventura, um cada vez maior investimento no sucesso académico.

Faria (1998a) conclui pela necessidade de, em Portugal, se procederem a novas pesquisas acerca das representações sociais da inteligência detidas pelos agentes socializadores (professores, pais) em função do género dos/as alunos/as e filhos/as.

A perspectiva cognitiva-desenvolvimentista

Através de entrevistas semidirectivas sobre o significado da inteligência, realizadas com crianças de seis e dez anos e adolescentes de dezasseis anos, Lehay e Hunt (1983) delimitaram três níveis de desenvolvimento das concepções sobre a inteligência: o nível "obediente-periférico" (6 anos), o nível das "concepções psicológicas" (10 anos) e o nível das concepções centradas nas interacções sociais (16 anos).

A maior parte das explicações sobre o significado da inteligência referem, como ponto fulcral, a obediência à autoridade (pais ou escola), pelo que, segundo os autores, associada às concepções sobre a inteligência se encontra uma moralidade heterónima, colocada em relevo por Piaget (1985).

No segundo nível, das concepções psicológicas, a inteligência define-se em função dos resultados obtidos nos testes escolares. As diferenças entre "inteligentes" e "não inteligentes" são atribuídas a factores de ordem motivacional, como o estudo e o esforço. Trata-se, segundo os autores, de uma fase transitória, já que tais "concepções psicológicas" se mantêm salientes durante a adolescência.

Quanto ao terceiro nível, o nível das concepções centradas nas interacções sociais, a inteligência ganha um novo significado, envolvendo referências a competências sociais e às formas de interacção social. É assim que, para os adolescentes, ser inteligente implica ser capaz de se conformar às expectativas dos outros e compreender os outros. Segundo Lehay e Hunt (1983), subjacente a esta saliência das relações interpessoais nas concepções da inteligência, estará, por um lado, a passagem para uma moralidade autónoma caracterizada pela preocupação pela opinião dos outros e, paralelamente, o desenvolvimento da capacidade de coordenação de perspectivas, o que permite a construção de significados comuns, segundo a teoria piagetiana (Piaget, 1970).

Também numa perspectiva cognitivo-desenvolvimentista, um conjunto de estudos levados a cabo por Stipek e colegas (Stipek, 1981; Stipek, 1987; Stipek & Tannatt, 1984; Stipek & Danniels, 1988; Stipek & Mac Iver, 1989) analisam o desenvolvimento das concepções sobre competências intelectuais e o desenvolvimento dos critérios de avaliação das mesmas.

No que respeita ao desenvolvimento das concepções sobre competências intelectuais, constata-se que as crianças do pré-escolar até à primeira classe (6 anos) não diferenciam competências sociais e competências académicas. Um estudo de Stipek e Tannatt (1984), corroborando esta conclusão, mostra que 40% de crianças em idade pré-escolar se referem a comportamentos sociais e lúdicos — por exemplo, jogar com outra criança — quando os investigadores lhes pedem que expliquem o que é a inteligência.

Uma progressiva diferenciação vai-se estabelecendo entre os dois tipos de competências no decurso da escola primária.

Contudo esta diferenciação é mais tardia quando se trata de qualificar as competências intelectuais de pares, o que segundo Stipek e Mac Iver (1989) poderá estar relacionado com o egocentrismo intelectual e a importância que assumem, nestas idades, os comportamentos sociais dos pares relativamente aos sujeitos. Assim, por exemplo, as crianças podem valorizar mais a partilha de brinquedos com os seus colegas do que os conhecimentos que estes têm dos números ou do alfabeto.

De acordo com os resultados de Stipek (1981) e Stipek e Tannatt (1984), as crianças aos 7 e 8 anos avaliam as suas próprias competências intelectuais, bem como as dos seus pares, seja em função de hábitos de trabalho (esforço, destreza), seja em função de aspectos comportamentais que remetam para o respeito de regras estabelecidas na instituição escolar.

Quanto ao desenvolvimento dos critérios de avaliação das competências intelectuais, constata-se que a informação utilizada para essa mesma avaliação assume diversas formas, em função da idade.

No período pré-operatório as crianças recorrem a dois tipos de informação: a mestria na realização de tarefas e o feedback ou reforço social, nomeadamente o elogio por parte dos adultos. Ou seja, até ao período das operações concretas, as crianças reconhecem total autoridade moral e avaliativa aos adultos.

No período das operações concretas, a informação objectiva dos resultados de resolução de tarefas passa a assumir uma maior importância no que respeita às inferências sobre as próprias competências intelectuais.

Aliás, a este respeito, também os estudos de Stipek (1987) e Stipek e Daniels (1988) permitem constatar que só no período do operatório concreto é que as crianças hierarquizam as notas escolares em termos avaliativos no que respeita às suas competências intelectuais.

Na base desta hierarquização das notas em termos avaliativos encontra-se, presumivelmente, o desenvolvimento de operações como a seriação (Stipek, 1987; Stipek & Daniels, 1988; Stipek & Mac Iver, 1989).

Tal como a mestria, o esforço é um forte indicador na avaliação das competências intelectuais nas crianças do período do pré-operatório. Aparentemente, as crianças acreditam que o empenho na resolução de tarefas resulta num incremento das competências intelectuais.

Esta indiferenciação inicial entre o esforço e as percepções de competências intelectuais dá lugar a uma progressiva diferenciação entre ambas com o início do período do operatório concreto, em função da distinção da realização da tarefa propriamente dita, e as noções de capacidade, por um lado, e de dificuldade da tarefa, por outro lado (Nicholls, 1978; Nicholls & Miller, 1983).

Deste modo, por volta dos 10 anos (período do operatório concreto), ao compreenderem a relação inversa entre esforço e capacidades, as crianças poderão aferir as suas capacidades de acordo com grau de empenho que as tarefas (mais ou menos difíceis) exigem.

No período do operatório formal, embora as informações a partir da mestria na resolução de tarefas e os resultados escolares se mantenham como poderosos indicadores de avaliação das competências intelectuais, acresce um novo factor: os processos de comparação social com os colegas, mormente em termos de notas escolares (Stipek & Mac Iver, 1989).

De acordo com Stipek & Mac Iver (1989), será o desenvolvimento da noção de competência como traço estável — isto é, como capacidade — que facilitará a comparação social com as performances escolares dos pares.

Esta dedução, aliás estritamente cognitivista no que respeita, por exemplo, à importância dos pares no período adolescencial, não só contraria os resultados obtidos por Faria (1995), bem como, tal como se verá de seguida, os dados obtidos por Yussen e Kane (1983).

Ainda numa perspectiva cognitiva-desenvolvimentista, e reportando-se ao desenvolvimento das concepções acerca, também, das competências intelectuais, requeridas especificamente em tarefas verbais e abstractas (não verbais), encontramos o estudo de Nicholls, Mettetal e Pataschnick (1986), com uma amostra de crianças, adolescentes e jovens, cobrindo uma faixa etária dos 6 aos 22 anos.

Utilizando para o efeito, exactamente, tarefas verbais e não verbais, seguidas de entrevistas sobre a forma como os sujeitos se diferenciam em função dos dois tipos de tarefas, os autores identificam três níveis naquelas concepções, de acordo com a idade dos sujeitos.

Num primeiro nível, aos 6/7 anos, as competências intelectuais são avaliadas em termos das dificuldades subjectivas das tarefas, embora as propriedades intrínsecas das diferentes competências não sejam referidas.

A partir dos 8/9 anos, e atingindo a sua maior expressão aos 12/13 anos, verifica-se que as concepções sobre as competências intelectuais se desenvolvem no sentido de assimilar a inteligência à aquisição de informação sobre as tarefas e ao esforço de aprendizagem.

Neste segundo nível, verifica-se ainda que, dos 10 aos 13 anos, os dois tipos de raciocínio requeridos pelas tarefas experimentais se vão, progressivamente, diferenciando ao nível do esforço e empenhamento, relativamente à aquisição de informação pertinente. É assim que, se, numa primeira fase, os dois tipos de raciocínio não são representados como inerentemente diferentes, posteriormente as oportunidades para a aquisição de informação são vistas como sendo diferentes: há mais oportunidades para adquirir vocabulário e menos oportunidades para aprender tarefas abstractas (não verbais).

Finalmente, num terceiro nível, dos 14/15 aos 22 anos, a aquisição de informação e a resolução de problemas encontram-se diferenciadas.

As concepções sobre a inteligência incluem uma dicotomia entre o raciocínio verbal, que reflectirá um esforço mnemónico (o material verbal pode ser memorizado mas não o material abstracto), e, por outro lado, o raciocínio abstracto, que é representado em termos de capacidade de pensamento, reflectindo senso comum e experiência geral.

Estudos multidimensionais das concepções de senso comum sobre a inteligência

A linha de investigações que apresentaremos de seguida diferencia-se, por um lado, do modelo bidimensional de Carol Dweck (Dweck, 2000; Dweck & Bempechat, 1983; Dweck, Chiu & Hong, 1995), na medida em que daquelas pesquisas relevam múltiplas dimensões, e, por outro lado, da perspectiva cognitiva-desenvolvimentista, já que não se pressupõe que o desenvolvimento das concepções de senso comum sobre a inteligência possa decorrer do desenvolvimento cognitivo da criança descontextualizado do meio social e cultural em que esta se insere.

Acresce que algumas das investigações que referiremos têm também em conta o factor género como factor diferenciação das representações sobre a inteligência, o que não é, de forma patente, o caso dos estudos da linha cognitiva-desenvolvimentista que expusemos.

Numa das suas pesquisas, Yussen e Kane (1983) investigaram o desenvolvimento das concepções sobre a inteligência em crianças americanas de 6, 9 e 11 anos.

Constatou-se que, nestas idades, uma dimensão que se mantém constante na caracterização da natureza da inteligência é o saber, entendido como a quantidade de informação que uma pessoa possui.

Nas crianças mais novas (6 anos), as competências interpessoais e comportamentais constituem a componente mais relevante nas suas concepções sobre a inteligência, perdendo a sua importância com o decorrer da idade.

Paralelamente, as competências académicas vão surgindo com cada vez maior relevo, verificando-se que são as mais valorizadas aos 11 anos.

É também interessante constatar que as crianças mais novas têm uma visão inatista da inteligência, ao passo que as crianças mais velhas enfatizam as experiências como factor decisivo na modulação dos níveis de inteligência, seja nas suas componentes sociais, académicas ou gerais.

Os sujeitos foram também inquiridos sobre a constância versus maleabilidade da inteligência. Ou seja, procurou-se testar, na prática, o modelo bidimensional de Carol Dweck (Dweck, 2000; Dweck & Bempechat, 1983; Dweck, Chiu & Hong, 1995), em função da idade. Observa-se que, independentemente da idade, as crianças demonstram uma concepção dinâmica da inteligência — experiências especificas benéficas podem levar ao incremento da inteligência —, resultado curioso a dois títulos: em primeiro lugar, porque, aparentemente, embora as crianças mais novas representem a inteligência como algo com que já se nasce, não excluem o factor experiencial; em segundo lugar, porque este dado empírico contraria, claramente, a hipótese de Stipek & Mac Iver (1989), de acordo com os quais, tal como. foi referido, a noção de competência intelectual se desenvolveria, progressivamente, como traço ou capacidade estável.

Numa outra pesquisa, Yussen & Kane (1983) analisam o tipo de competências atribuídas à definição de inteligência de uma criança de 1 ano de idade, de uma criança de 10 anos de idade, de um adulto de 35 anos e, finalmente, de um adulto de 65 anos.

Para o efeito, utilizaram fotografias, que foram apresentadas a uma amostra constituída por crianças de 8 anos, adolescentes de 16 anos e adultos, todos de nacionalidade americana.

No que concerne ao protótipo de uma criança de 1 ano, as respostas dos sujeitos convergem no que respeita a índices de controlo sensoriomotor (por exemplo, agarrar um objecto), ao desenvolvimento de uma tendência para realizações sem ajuda de outrem (o que os autores denominam como "autocontrolo e independência") e a aquisição de competências linguísticas. Para os adolescentes e adultos da amostra, a capacidade de aprendizagem — embora os tipos de aprendizagens não sejam explicitados pelos autores —, integra o respectivo protótipo de uma criança inteligente de um ano de idade. Finalmente, a motivação e curiosidade ("olhar atento", "curiosa") e a actividade ("criança activa"), são dimensões referidas apenas pelos adultos.

Quanto às dimensões que caracterizam uma criança inteligente de 10 anos, são comuns, nas respostas de todos os sujeitos, o conhecimento ou saber, as competências sociais e as performances escolares.

As crianças e os adolescentes da amostra estudada referem em comum, e especificamente, o domínio da matemática, da leitura e competências físicas ("ser bom desportista") como caracterizando uma criança inteligente de 10 anos.

Ainda relativamente a este protótipo-alvo, encontram-se como elementos exclusivos, nas respostas dos adultos, factores motivacionais (esforço, curiosidade), capacidade de aprendizagem (potencial e rapidez de aprendizagem), o pensamento abstracto, a autonomia, a criatividade e a afiliação grupai.

As maiores discrepâncias registadas nos grupos que constituem a amostra, nomeadamente entre, por um lado, crianças e adolescentes, e, por outro lado, adultos, são as que se referem aos atributos do protótipo de um adulto inteligente de 35 anos.

Enquanto as crianças e adolescentes reportam elementos que remetem para o papel e a imagem do adulto — por exemplo, gestão de dinheiro, tratar dos filhos, conduzir um automóvel —, as respostas dos adultos da amostra centram-se em traços psicológicos gerais — elementos ligados à adaptação social ("autonomia", "tratar as outras pessoas com respeito e consideração"), factores de ordem motivacional ("gostar da vida", "gostar da carreira profissional", "procurar novos desafios"), valores ("politicamente implicado", "ter um espirito aberto") e factores cognitivos gerais ("capacidade de abstracção", "conhecimentos aprofundados", "capacidade de compreensão").

Em relação ao protótipo-alvo correspondente a um adulto inteligente de terceira idade (65 anos), as crianças referem sobretudo cuidados ligados ao bem-estar e saúde física, mas também um saber e memória ricos e a disponibilidade para partilhar esses conhecimentos com os mais novos. Esta representação é também comum às respostas dos adolescentes, assim como actividades ligadas ao preenchimento do quotidiano — por exemplo, hobbies.

As respostas dos adultos da amostra incidem sobre a "sabedoria" das pessoas de terceira idade, a partilha deste conhecimento "acumulado" com pessoas mais novas (diríamos, que têm muito a ensinar), o ajustamento pessoal ("manterem interesse pela vida") e um esforço para se manterem intelectualmente activos ("dinâmicos", "evitar a senilidade").

Estes resultados mostram que as representações de "pessoa inteligente" em função da idade do protótipo-alvo, dependem das expectativas que, em cada faixa etária, os sujeitos criam relativamente ao protótipo-alvo, o que possivelmente não estará desligado, por um lado, dos tipos de interacções específicas que os sujeitos mantêm, respectivamente, com crianças mais novas (1 ano), crianças em idade escolar (10 anos), adultos (35 anos) e pessoas da terceira idade, e, por outro lado, dos papéis sociais dos protótipos-alvo.

Embora trabalhando só com uma amostra de adultos finlandeses, parece-nos de todo pertinente, no seguimento deste último estudo mencionado de Yussen e Kane (1983), referir uma pesquisa de Raty e Snellman (1992), sobre as características atribuídas a uma "pessoa inteligente" e a um "aluno inteligente".

Os sujeitos, que eram ou pais ou professores, de ambos os sexos, deveriam atribuir a idade e o género, seja à pessoa seja ao(à) aluno(a)-alvo.

Em primeira linha, constata-se que a pessoa-alvo é um adulto (média de idade: 41 anos), sendo também maioritariamente descrito pelos sujeitos, seja do sexo masculino seja do sexo feminino, como sendo um homem.

No que respeita ao aluno inteligente, é descrito maioritariamente como sendo um rapaz, de idade média 13 anos.

Os autores procuraram analisar os efeitos, quer da categoria sexual de pertença dos respondentes quer do género atribuído ao protótipo-alvo, nas respostas a um questionário estruturado sobre os atributos do protótipo-alvo.

Os resultados mostram que os sujeitos de sexo feminino conferem, seja ao adulto-inteligente seja ao aluno-inteligente, mais atributos que reenviam para o saber ou conhecimento geral, a educação e a reflexão.

Quando o protótipo-alvo é caracterizado como sendo uma rapariga, e independentemente da categoria sexual dos respondentes, àquele aparecem associadas competências de ordem social/relacional, como de cooperação ("ajuda os outros", "sabe ouvir os outros", é "amiga"), ou de assertividade social ("exprime as suas opiniões", "tem iniciativa").

Já quando o protótipo-alvo é caracterizado como sendo um rapaz e, da mesma forma, independentemente da categoria sexual de pertença dos respondentes, surge como mais saliente uma componente que reenvia para a inteligência prática (aplicação de conhecimentos na resolução de problemas).

Esta mesma componente aparece também genericamente associada à descrição de aluno inteligente de género masculino, bem como atributos de ordem cognitiva (aptidões verbais, "interesse em matérias que requerem reflexão"), ao passo que certos atributos que revelam independência e vivacidade caracterizam a aluna-inteligente (por exemplo, "testar os seus próprios limites", "não ter medo nem necessidade de recorrer à autoridade").

A dimensão mais relevante do(a) aluno(a) inteligente é o sucesso escolar. Selleri, Carugati e Bison (1994) estudaram o que pensam os alunos de uma escola "elementar"(com idades compreendidas entre 10 e 11 anos) e duma escola "média" (com idades compreendidas dos 12 aos 14 anos) sobre o que significa ser inteligente.

As respostas à pergunta aberta foram submetidas a análise de conteúdo, a partir da qual se identificaram seis áreas temáticas (englobando 26 categorias) a saber:

1) Características gerais: inclui referências à variabilidade inter-individual (alguns sào mais inteligentes "porque alguns têm mais capacidades", "porque depende da mentalidade das pessoas"), à "normalidade" ("é ser normal como os outros") e à identificação do inteligente como "bom aluno";

2) Características de natureza cognitiva: capacidade de reflexão ("pensar", "saber aquilo que se faz"), de compreensão e raciocínio ("usar o cérebro", "compreender as coisas", "rapidez"), capacidades lógico-matemáticas ("resolver problemas difíceis com á cabeça") e linguísticas (saber ler, escrever ou falar de modo correcto, saber explicar as coisas)

3) Características de personalidade: qualidades positivas ("ser bom", "paciente", "compreensivo"), motivacionais (empenho e força de vontade, quer na escola quer na vida), autoconfiança nas próprias capacidades, astúcia, competências práticas ou saber fazer ("aproveitar oportunidades", "saber-se organizar", "não se enganar"), cultura ("saber", "alargar conhecimentos"), interesse ("estar informado", "saber aquilo que acontece") e disponibilidade para aprender ("desejo de aprender sempre mais");

4) Dons naturais: por exemplo, respostas como "Deus deu mais inteligência a uns do que a outros" ou "é-se bom aluno porque se tem esse dom";

5) Aspectos institucionais da escola: sucesso escolar, estudar, realizar os trabalhos de casa, e uma categoria comportamental positiva ("estar com atenção nas aulas", "não copiar");

6) Relações interpessoais: sociabilidade ("ser sociável", "respeitar os outros"), altruísmo ("ajudar quem tem dificuldades"), comportamentos em relação aos adultos ("obedecer", "seguir conselhos dos adultos"), comportamentos em relação aos professores ("saber responder às perguntas dos professores"), comportamentos em relação aos colegas ("saber ouvir as opiniões de um amigo", "ajudar um colega").

As áreas temáticas mais referidas são as características de natureza cognitiva, características de personalidade e "dons".

Em específico, as categorias que surgem com maior frequência sào a "capacidade de compreensão", "rapidez" (de raciocínio) e "cultura".

Constatam-se diferenças em função da idade e da categoria sexual de pertença dos entrevistados.

Nos mais novos (escola "elementar") salientam-se, nas suas representações acerca da inteligência, as competências práticas, o altruísmo, a sociabilidade e "ser culto".

Nas representações dos mais velhos (escola "média") realçam-se as competências cognitivas e os factores de ordem motivacional ("empenhamento", "força de vontade").

Quanto às diferenças em função da categoria sexual de pertença, o "saber desembaraçar-se" (categoria que remete para as competências de inteligência prática e sociais) caracteriza as respostas das raparigas, enquanto o empenhamento e a cultura se salientam nas representações dos rapazes.

Utilizando um questionário estruturado, Poeschl (1992) estudou as representações sociais da inteligência de sujeitos adultos suíços, em função, também, da categoria sexual de pertença e da saliência de dimensões diversas atribuídas pelos sujeitos aos estímulos "homem inteligente" e "mulher inteligente".

Na sequência de factorizações das respostas dos sujeitos para cada uma das consignes, constata-se, em primeiro lugar, que as competências sociais ("ser tolerante", "saber adaptar-se", "ser sociável") se configuram como dimensão mais importante das representações seja do "homem inteligente" seja da "mulher inteligente". Contudo, relativamente à representação de "mulher inteligente", surgem, no mesmo factor, os elementos de "criatividade" e "sensibilidade", constituindo-se assim como atributos distintivos no âmbito de um mesmo factor genérico ("competências sociais"), no sentido de que caracterizam, particularmente, as representações da inteligência feminina.

O factor que a autora denomina como "sucesso social" ("dirigir", "ter sucesso", "ser culto", "intelectual") é o segundo na estrutura factorial nas representações da inteligência masculina, isto é, é o que explica mais variância naquela estrutura factorial, se se exceptuar o factor "competências sociais".

Relativamente ao factor "sucesso social", e analisando as diferenças de acordo com a categoria sexual de pertença dos respondentes, verifica-se que as mulheres são o grupo que mais importância confere a esta dimensão, considerando-a como típica da inteligência masculina.

Já na estrutura factorial das representações de "mulher inteligente", observa-se que o segundo factor que explica maior variância é o "sucesso profissional".

É assim que, de acordo com Poeschl (1992), o "sucesso social" não parece portanto constituir uma dimensão saliente da representação da "inteligência feminina", contrariamente ao "sucesso profissional" (Poeschl, 1992, p. 197).

Aliás, a análise da estrutura das representações relativamente a cada um dos estímulos ("homem inteligente", "mulher inteligente") revela que o "sucesso social" constitui uma característica típica da representação da inteligência masculina, ao passo que a representação da inteligência feminina se organiza em torno da dimensão "competências sociais", sendo também particularmente salientes o "sucesso profissional", um elemento de uma dimensão de feminilidade ("ser atractivo") e o item "cultura".

Ainda no que concerne às estruturas factorials das representações da inteligência masculina e da inteligência feminina, o terceiro factor no primeiro caso (inteligência masculina) que se realça é um factor que inclui elementos de ordem motivacional e cognitiva ("espirito vivo", "capacidade de reflexão", "ser curioso", "compreender"), enquanto na estrutura factorial da representação da inteligência feminina trata-se de um factor que remete, precisamente, para feminilidade ("ser atractivo", "ser culto", "conservar características tradicionalmente atribuídas aos representantes do seu grupo sexual"), o qual é apelidado de "eterno feminino".

Ora, observando as diferenças nas respostas de acordo com a categoria sexual de pertença dos sujeitos, verifica-se que, para as mulheres, a dimensão cognitiva caracteriza fortemente a inteligência masculina e que, para o mesmo grupo, a dimensão de feminilidade ("eterno feminino") caracteriza de forma muito evidente a inteligência feminina.

Relativamente a este conjunto de resultados, afirmará Poeschl (1998) que "une identification des sujets à leur catégorie sexuelle d'appartenence entraine des différences dans leurs représentations des deux formes d'intelligence" (Poeschl, 1998, p. 97).

Raty e Snellman (1993) investigaram as representações sociais de "pessoa inteligente" por comparação a "pessoa vulgar", em crianças finlandesas de ambos os sexos, com idades entre os 8 e 12 anos, a partir de desenhos produzidos por estas.

A análise de conteúdo dos desenhos dos personagens-alvo incidiu sobre seis parâmetros: idade, género, aparência, vestuário, actividade e contexto.

Genericamente, as crianças desenham a "pessoa inteligente" como um adulto de sexo masculino, ao passo que a "pessoa vulgar" é desenhada, sobretudo pelos mais novos, como, precisamente, uma criança.

Registam-se também outras diferenças em função da idade e da categoria sexual de pertença das crianças, no que diz respeito ao género dos personagens: são as crianças mais velhas que tendem a desenhar mais personagens de género masculino e, no caso particular das raparigas, são ainda as mais velhas que desenham com maior frequência personagens do género masculino.

A "pessoa inteligente" é igualmente desenhada pala maioria das crianças como tendo óculos, vestindo roupas de trabalho, nomeadamente uma bata de laboratório ou então vestuário que foi cotado como sendo o de um homem de negócios, ou, quando o personagem desenhado é de género feminino, uma indumentária de duas peças (saia e camisola).

Finalmente, quanto aos parâmetros "actividade" e "contexto", a "pessoa inteligente" é desenhada como desempenhando uma actividade mental (estudar, 1er, pensar, ensinar), no contexto de uma escola, laboratório ou biblioteca.

Por seu lado, a "pessoa vulgar" é desenhada como vestindo roupas cotadas como vulgares, mormente com calças "Levi's", com cabelo curto, no estilo dos personagens da série "Simpsons", do mesmo género sexual e idade dos "artistas", não exercendo uma actividade bem definida, nem sendo inserida num contexto particular, ao contrário da "pessoa inteligente".

Raty e Snellman (1993) concluem que as crianças associam, portanto, à inteligência a masculinidade, o conhecimento (traduzido quer pela actividade mental dos personagens "inteligentes" quer pelos contextos em que se inserem), um estatuto elevado (expresso pelo tipo de vestuário, nomeadamente do(a) executivo(a)), revelando que assimilam a inteligência a valores e dimensões simbólicas, que caracterizam uma certa imagem/representação do "inteligente", nas sociedades ocidentais.

De facto, à parte o estatuto, os elementos de masculinidade e conhecimento (envolvendo as personagens desenhadas em operações cognitivas) não diferem muito dos resultados que relatámos, anteriormente, da pesquisa de Poeschl (1992, 1998).

Mais recentemente, Raty, Snellman e Vainikainen (1999) exploraram as representações sociais de pais finlandeses acerca das competências cognitivas dos filhos. Constatou-se que o género das crianças constitui um factor crucial na organização daquelas representações. Dentro de várias competências (resolução de problemas, criatividade, reflexão e cooperação), as raparigas são julgadas mais favoravelmente que os rapazes.

A especificidade dos estudos sobre as representações sociais: a incidência sobre processos psicossociais

A investigação de Mugny e Carugati (1985) representa um marco nas pesquisas acerca das representações sociais da inteligência.

Para além do estudo do impacto de variáveis sociológicas (por exemplo, o estatuto socioeconómico), levanta importantes questões relativamente ao impacto de variáveis psicossociais na estruturação das representações sociais da inteligência.

A este respeito, Carugati e Selleri (2000) resumem três aspectos essenciais:

1) A oposição dum modelo lógico-matemático ao da influência de valores e normas sociais nos discursos sobre a inteligência. O primeiro apresenta-se como o ex-libris do discurso científico, incluindo o da psicologia, e o segundo liga-se ao fenómeno do insucesso académico, considerado também um critério da avaliação da inteligência.

2) A existência de um conflito sociocognitivo, ligado à necessidade de dominação ("domesticação") do estranho: no caso, as diferenças interindividuais de inteligência.

3) A experiência subjectiva ou objectiva de falta de informação sobre o fenómeno da inteligência.

Acrescentamos que uma das vertentes psicossociológicas na análise da constituição das representações sociais da inteligência, que releva explicitamente do estudo de Mugny e Carugati (1985), é o da manutenção das identidades sociais e pessoais positivas, nomeadamente no grupo de pais-professores, os quais mostram uma teoria implícita nos dons naturais.

Aliás, as dinâmicas identitárias têm surgido como uma preocupação central em outras investigações sobre as representações sociais da inteligência (Amaral, 1997a, 1997b; Poeschl, 1992,1998; Snellman & Raty, 1995).

É também em termos da mediação através de processos psicossociais que Duveen (1994) analisa e discute as possibilidades de estudo do desenvolvimento das representações sociais.

Duveen (1994) apresenta duas vias, na Psicologia do Desenvolvimento, para a investigação da ontogénese das representações sociais.

Por um lado, a perspectiva piagetiana, que acentua o facto de a criança ser, enquanto sujeito epistémico, um actor do seu próprio desenvolvimento.

Por outro lado, a perspectiva de Vigotski (1994), que realça o facto de os processos cognitivos intra-individuais resultarem da internalização de signos sociais, estabelecida previamente em processos inter-individuais. Na teoria vigotskiana, os signos sociais têm, pois, uma função de mediação semiótica.

Para Duveen (1994) é, no entanto, errado pensar que a perspectiva piagetiana descontextualiza socialmente o desenvolvimento cognitivo (estrito senso) ou de noções sociais (por exemplo, as trocas económicas, a inteligência, etc.).

Na realidade, Piaget (1985) distingue duas formas de aquisição do conhecimento social, que são simultaneamente fontes de coordenação de pontos de vista. Uma dessas formas corresponde à transmissão social de conhecimentos a partir de uma figura de autoridade (a escola, os professores, os pais), que ocorre no quadro de relações heterónimas. A outra forma realiza-se no âmbito de relações de igualdade e de autonomia entre pares, relações de autonomia que são estímulo para progressivas reconstruções cognitivas e de coordenação de pontos de vista.

Note-se que Piaget (1985) não se refere a dois estádios morais, mas a duas fases do desenvolvimento moral, como bem nota Lourenço (1998). Ou seja "pode haver elementos de autonomia moral numa criança dominantemente heterónoma, e vice-versa" (Lourenço, 1998, p. 64).

O desenvolvimento de pesquisas que ilustram o desenvolvimento cognitivo das crianças em função de factores sociais, como o jogo cooperativo ou o conflito sociocognitivo entre pares, é extensamente analisado por Doise e Mugny (1981).

Aliás, o próprio Piaget (1973) reconhece que desenvolvimento social e cognitivo são indissociáveis para compreender o progresso, simultaneamente também social e cognitivo, da criança.

Duveen (1994), tendo em consideração as perspectivas piagetiana e vigotskiana, propõe uma mediação entre a internalização de representações sociais e os progressos cognitivos da criança enquanto agente activo do desenvolvimento das suas representações sobre o social: as identidades sociais.

Um tal processo de mediação identitária é exemplificado pela sua pesquisa acerca do desenvolvimento da noção de género (Lloyd & Duveen, 1990).

Se a criança vai construindo as suas representações e, a par disso, a sua identidade de género, no espaço simbólico das representações sociais pré-existentes, não deixa, porém, de reconstruir activamente as suas representações (sociais) e práticas associadas em função dos contextos específicos (na família, nas brincadeiras com pares do mesmo sexo ou do sexo oposto, etc.) em que manifesta a sua identidade de género.

Concluindo, em virtude da mediação (psicossocial) identitária, a criança pode ser realmente vista como actor social.

Conclusões provisórias: para um balanço crítico

Passámos em revista três linhas de investigações sobre o desenvolvimento e diferenças de género nas teorias implícitas ou concepções de senso comum acerca da inteligência, em crianças e adolescentes, e ainda de adultos quando se justificava. Enquanto uma linha estritamente cognitivo-desenvolvimentista se centra na criança/ adolescente como sujeito epistémico do seu desenvolvimento, claramente influenciada pela perspectiva piagetiana, duas outras linhas de pesquisa são também esplanadas: a das concepções pessoais de inteligência e a que denominámos como dos estudos multidimensionais, sendo esta claramente influenciada pela teoria das representações sociais (nomeadamente os estudos europeus). Ambas apresentam em comum um esforço para ligar a evolução das teorias implícitas acerca da inteligência não só com o género, como com factores sociais e culturais.

Especificamente, as pesquisas sobre as representações sociais colocam em relevo a influência de processos psicossociais, como sejam as dinâmicas identitárias ou a familiarização com o "estranho".

A respeito do "estado da arte" no domínio das pesquisas sobre as teorias implícitas acerca da inteligência, podemos verificar que as três linhas teórico-empíricas denotam enfoques diversos.

Assim, as pesquisas da linha cognitivo-desenvolvimentista acentuam a diferenciação das teorias implícitas acerca da inteligência em função dos estádios e competências cognitivas dos sujeitos. Sendo encarada a criança como sujeito epistémico do seu próprio desenvolvimento, olvida-se a contextualização de acordo com variáveis socioculturais e socioeconómicas, ou com a concomitante construção do género que acompanha todo o desenvolvimento das crianças e adolescentes. Além disso, em todos os estudos recenseados se supõe que os sujeitos se encontram neste ou naquele estádio de desenvolvimento em função das faixas etárias, não se aplicando testes de despiste e identificação dos estádios do desenvolvimento.

Muitas das investigações que partem da teoria das concepções pessoais da inteligência incidem sobre a inteligência escolar e as suas consequências nos padrões de realização escolar.

Ora, os estudos multidimensionais sobre as concepções de senso comum acerca da inteligência, mostram que não existe apenas "uma" inteligência — a requerida pela instituição escolar —, mas "várias inteligências", ou diversas construções sociais da inteligência, de acordo com os papéis sociais e respectivas expectativas comportamentais, com o género, ou com os valores e dimensões simbólicas ancoradas nesta ou naquela cultura.

Encontramos, portanto, diferentes áreas de pesquisa, mas que de futuro se poderão vir a complementar.

Alguns pontos poderão ser avançados, a título de exemplo.

Os enfoques dos estudos filiados na teoria das representações sociais, como as mediações identitárias (que, para além do género, podem referir-se a múltiplos cruzamentos identitários), ou a naturalização da inteligência face às diferenças inter-individuais, poderão ser investigadas a montante ou a jusante das concepções pessoais da inteligência.

Ainda um outro exemplo: a consideração conjunta da ontogénese e da sociogénese das teorias implícitas acerca da inteligência poderá vir a dar lugar a interessantes estudos integrativos.

Em suma, os esforços de articulação dos diferentes enfoques e teorias poderão constituir campos fecundos a explorar.

 

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Notas

1Este trabalho foi efectuado no âmbito do doutoramento em curso do autor, e apoiado por uma bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (Praxis XXI/ BD/15697/98). O autor agradece os comentários do professor doutor Jorge Vala e do professor doutor Felice Carugati. Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para Virgílio Amaral, Instituto Superior de Psicologia Aplicada, 34,1100 Lisboa. E-mail: vamaral@ispa.pt.

2Utilizamos a noção de "categoria sexual de pertença" quando nos referimos ao sexo biológico dos inquiridos. Já a noção de género será utilizada quando os estudos recenseados se baseiem na atribuição pelos inquiridos de diferentes características às "inteligências" masculina e feminina, ou seja, em função da construção social dos géneros.

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