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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.16 no.1 Lisboa jan. 2002

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v16i1.466 

Um modelo para o estudo da influência da estimulação cultural na organização biofuncional do cérebro humano

A model for the understanding of the effect of cultural stimulation on the bio-funcional organization of the human brain

 

Alexandre Castro-Caldas1

1Centro de Estudos Egas Moniz, Faculdade de Medicina de Lisboa.

 


RESUMO

No presente texto faz-se a revisão sumária de resultados obtidos num projecto dedicado ao estudo da influência da cultura na organização biofuncional do cérebro. Dá-se realce particular ao enquadramento teórico que permitiu elaborar as hipóteses de trabalho. Fica claro que é possível estabelecer um nexo entre o domínio de determinadas capacidades e o desenvolvimento particular de determinadas regiões do cérebro.

Palavras-chave: Estimulação cultural, organização biofuncional do cérebro.


ABSTRACT

The main focus concerns the theoretical framework from which working hypothesis were driven. It is shown that it is possible to establish a connexion between the mastering of certain capacities and the activity of particular regions of the brain.


 

Introdução

As expressões verbal e gestual são a maioria das vezes reveladoras das circunstâncias culturais que impressionaram o nosso interlocutor ao longo da sua vida. Esta é uma observação intuitiva que, se for transposta para o domínio da Ciência Neuropsicológica, se traduz por: a informação percebida e arquivada no cérebro deste indivíduo é responsável pela forma como organiza as ideias, combina as palavras, articula os sons e gesticula. É necessário, então, saber que tipo de informação tem esta importância, que regiões do cérebro estão envolvidas nestes processos e de que forma se moldam os comportamentos visíveis e analisáveis à informação recebida a partir de sinais recebidos do mundo exterior. Estas são as questões norteadoras de um projecto científico que em linhas gerais reveremos neste artigo.

Um efeito difuso e um efeito focal

Não parece haver dúvida que a simples exposição a um ambiente mais rico e diversificado, que não careça de múltiplas interacções, obriga o cérebro a organizar-se de forma adaptativa. Estes aspectos estão bem provados na experimentação animal, em que se registam diferenças importantes nos comportamentos, como descreveu Hebb no seu trabalho pioneiro sobre o comportamento de ratos expostos a ambientes ricos e pobres (Hebb, 1947). O impacto que esta estimulação tem no cérebro animal foi posteriormente analisado em múltiplos aspectos como, por exemplo, o peso total do cérebro, a espessura do córtex cerebral, os níveis de acetilcolina e a própria estrutura dos dendritos, que nos dá uma medida indirecta da densidade de conexões entre os neurônios (Diamond et al., 1967,1981; Globus ei al., 1973; Rosenzweig & Bennett, 1978; Rosenzweig et al., 1962). Desde então tem havido muita experimentação que tem posto em evidência estas modificações estruturais resultantes da adaptação ao ambiente, sendo de salientar somente que passou e ser possível encontrar algum nexo entre o tipo de estimulação manipulada experimentalmente e as regiões do cérebro envolvidas no processo adaptativo. Isso foi particularmente estudado no sistema visual (Greennough & Volkmar, 1973).1

Por outro lado, alguns autores têm desenvolvido trabalho com cérebros humanos, sugerindo resultados semelhantes quando comparam cérebros de indivíduos que atingiram altos níveis de escolaridade com outros indivíduos que não tiveram idêntica oportunidade e ficaram pelos níveis mais elementares (Jacobs, Schall & Scheibel, 1993). O problema é que é difícil determinar a especificidade nestas observações e o efeito da escolaridade pode ser considerado difuso, tendo, naturalmente, expressão na organização do cérebro e na modulação do comportamento objectivável. Deve ainda ser mencionada a discussão que tem vindo a ser feita à volta das implicações que a escolaridade pode ter na determinação da demência. Na realidade, há estudos que sugerem que a demência é mais frequente nas populações menos diferenciadas do ponto de vista cultural, não sendo, porém, este achado constante em todos os estudos epidemiológicos realizados. Katzman (1993) propôs o conceito de reserva cerebral para explicar que os indivíduos mais enriquecidos do ponto de vista cultural estariam mais resistentes ao processo destrutivo da demência, mas nem todos aceitam esta explicação (ver Castro-Caldas & Guerreiro, 2001).

Interessa procurar um estímulo que provoque um efeito que se possa designar por focal, isto é, cujas características sejam bem conhecidas, na forma como é processado no sistema nervoso e na topografia das regiões cerebrais envolvidas, e que resulte num comportamento objectivável, que seja fácil de pôr em evidência. As capacidades de ler e de escrever representam exactamente modelos desse efeito focal. Temos algum conhecimento sobre a natureza dos estímulos envolvidos neste processo, conhecemos um pouco as estruturas cerebrais responsáveis pelo processamento desta informação e, facilmente, avaliamos o domínio que cada indivíduo tem destas capacidades. Podemos, por isso, dizer que a escolaridade em geral terá um efeito "difuso" sobre a biofuncionalidade do cérebro, enquanto que a aprendizagem e domínio das capacidades de ler e de escrever têm um efeito "focal" sobre a biofuncionalidade de algumas estruturas do cérebro. É, naturalmente, muito difícil distinguir um efeito do outro, visto que se aprende a ler e a escrever na escola em conjunto com a aprendizagem dè outras funções.

E importante salientar, ainda, que na complexidade destes fenómenos devemos entrar em linha de conta com o período da vida em que o cérebro adquire a função. Aprender a ler e a escrever na idade própria, isto é, por volta dos seis anos de idade, não é o mesmo que aprender na idade adulta. Na verdade, por volta dos seis anos estão em fase de maturação certas estruturas cerebrais, sobretudo as regiões do córtex de associação multirnodal do lobo parietal, indispensáveis para a realização das operações de leitura e de escrita (para referência gerai, ver Sanes, Reh & Harris, 2000). O encontro entre o processo maturativo e a exposição aos estímulos apropriados molda o sistema de forma que consideramos definitiva. Dizia Olivier Wenclell Holrnes: "Um espírito que se expande até urna ideia nova nunca mais regressa à sua dimensão inicial". Podemos fazer a analogia com a aprendizagem da leitura e da escrita, considerando-a, tal como o crescimento do corpo, uma jornada sem regresso. Este ponto é importante sobretudo para seleccionar populações para estudar este fenómeno.

A forma como temos tentado destrinçar o efeito difuso do efeito focal é recorrendo à elaboração de um modelo heurístico que nos permita fazer previsões, por múltiplas entradas, de forma a que os resultados, sendo convergentes, apoiem as hipóteses formuladas. Os objectivos podem então distinguir-se, pelo menos parcialmente, entre o que se pode encontrar relacionado com a exposição ao ambiente escolar em geral e aquilo que se relaciona com o conhecimento do valor das letras enquanto sons. O efeito da escolaridade tem sido estudado por diversos autores, revelando um importante impacto na performance de provas neuropsicológicas (Arclila, Roseli & Rosas, 1989; Ostrosky-Solis et al., 1998; Ivíanly et al., 1999; Castro-Caldas, em publicação).

Contribuições para a formulação do modelo

A aproximação à fenomenologia da função cerebral exige hoje uma atitude um pouco distinta daquela que em geral orienta a investigação científica. Na realidade, a atitude científica, pelo menos no domínio da biologia e do comportamento, tem sido intencionalmente reducionista, com o intuito de procurar as regras elementares que sustentam a vida e a função. Compreende-se hoje que não é mais possível deixar de tomar em consideração as circunstâncias envolventes dos fenómenos e as potenciais influências dos diferentes parceiros na determinação dos processos. Cada evento biológico ou comportamental é resultado da confluência dos factores que interessa hoje incorporar nos modelos orientadores da pesquisa (ver, a propósito, Koch & Laurent, 1999).

Tendo em vista este enquadramento teórico, podemos dizer que, para efeito da geração do nosso modelo orientador, tomamos em linha de conta informações provenientes do desenvolvimento ontogénico e filogénico, informações provenientes do conhecimento da função cerebral normal do homem e dos animais e ainda dados provenientes da investigação feita em patologia do sistema nervoso.

Quisemos compreender como adquiriu o homem a sua capacidade de leitura e de escrita e como foi guardando no cérebro essas informações para chegar à organização actual. Desta forma, fomos conhecendo quais são as estruturas que sustentam as funções em estudo, conhecimento esse que podemos adquirir de diversas fontes. Podemos estudar doentes com lesões cerebrais que perderam a função, relacionando as suas incapacidades de realização com a topografia das lesões cerebrais observáveis através da anatomia patológica ou dos modernos métodos de imagem como a Tomografia Axial Computurizada (TAC) e a Ressonância Magnética (RM). Neste capítulo conhecemos, desde a viragem para o século XX com os trabalhos de Jules Déjérine (1892), ainda baseados em estudos de autópsia, múltiplas áreas cuja integridade é importante para sustentar operações elementares que no seu conjunto participam na actividade de ler e de escrever. Mais modernamente, através de estudos funcionais com Tomografia de Emissão de Positrões e Ressonância Magnética funcional, podemos pôr em evidência as estruturas que nos indivíduos normais, sem lesão cerebral, estão envolvidas em tarefas específicas. Nestes estudos tenta-se segmentar as diferentes funções em operações simples elementares (aqui numa atitude clara e deliberadamente reducionista) e compreender que região do cérebro modifica a sua actividade, enquanto o sujeito executa a tarefa. Também alguns dados da patologia do desenvolvimento, como aqueles que provêm do estudo da dislexia, foram tomados em linha de conta (ver Castro-Caldas, 1999).

Como se desenvolvem as capacidades

A emergência das capacidades de leitura e de escrita parece ser relativamente recente na história da cultura humana.2 Na bacia do Mediterrâneo ter-se-á começado a escrever há cerca de 5.000 anos, sobretudo com o intuito de registar contagens relacionadas com a agricultura e a pastorícia, porém sabemos menos do que se passou do outro lado do Atlântico, em que emergiram também formas de escrita de grande sofisticação sem que houvesse contacto conhecido entre as duas culturas. Estes processos foram possíveis graças ao desenvolvimento prévio de outras funções, que podemos considerar pré-registos, que vão sustentar a nova capacidade. Quando falamos em leitura e escrita ligamos estes conceitos aos de linguagem oral, mas na realidade esta ligação enquanto conexão formal é ainda mais recente.

E possível ligar o primeiro acto de escrita à capacidade de manipulação proposicional dos objectos. Na verdade, foi decerto ao manipular os objectos que o homem experimentou deixar gravado nas superfícies mais moles o trajecto do objecto, deixando assim um traço visível. É claro que podemos especular que as próprias pegadas e rastos deixados nos caminhos tinham sido já os primeiros sinais da emergência desta capacidade. Os homens, como os outros animais, aprenderam a procurar sinais deixados no terreno pela passagem de outros indivíduos. Podemos de certa forma considerar que esta capacidade será uma primeira forma de leitura. Mas, em determinada fase, combinou a habilidade de desenhar com instrumentos com a habilidade de descodificar sinais e começou a utilizar ambas de forma intencional. Vamos encontrando sinais dessa evolução nas pinturas rupestres deixadas nas grutas ou nos desenhos gravados na rocha. Em certo momento emerge o desenho figurativo, em que o elemento da natureza é transposto para uma forma abstracta conceptual, transformada num complexo arranjo visual de elementos considerados de maior significado para a definição semântica do objecto representado. Esta imagem interior é depois orientadora do traço que vai deixando impresso o desenho. Neste processo é de particular relevância considerar que o objecto real sofre uma transformação para uma representação interna que servirá de orientação ao sistema motor. Esta transformação interna constitui uma das parcelas do conjunto que definirá o campo semântico do objecto a representar. É importante notar que, tendo todos os homens recursos semelhantes no que respeita à actividade cognitiva, porque ela se sustenta na actividade de um sistema nervoso semelhante, a transformação feita por um indivíduo é simplesmente o mecanismo adaptativo universal deste sistema nervoso ao problema que lhe é posto. Este aspecto é importante porque nos permite compreender o efeito de explicitação universal desta actividade, que se veio a tornar tão importante para a comunicação. A grande maioria dos humanos resolve o problema da mesma maneira e, por isso, identifica nos outros aquilo que constitui também a sua identidade.

Se pensarmos agora em termos de função do cérebro tal como hoje o conhecemos, podemos dizer que o caminho percorrido pela informação de que temos estado a falar diz respeito aos lobos occipitais no que toca à percepção visual, ao lobo parietal direito no que respeita ao aspecto global da forma e, finalmente, ao lobo parietal esquerdo no que toca à representação de detalhes. A comunicação entre os dois hemisférios cerebrais é fundamental para um correcto desempenho destas tarefas. Participa ainda nesta actividade o lobo frontal, enquanto responsável por mecanismos de abstracção e de memória de trabalho, neste caso não sendo possível discutir efeitos de lateralidade nem de comunicação inter-hemisférica, na certeza de que estes problemas interessando ambos os lobos frontais também dependem de uma boa comunicação entre os dois lados do cérebro. Finalmente, a região central do hemisfério dominante para a motricidade é responsável pela programação e produção do gesto. Este gesto é informado fundamentalmente por estruturas do lobo parietal esquerdo. Temos assim definidos os antecedentes da escrita enquanto actividade que se desenvolve no enquadramento visuo-motor. A ligação à linguagem oral é feita através do significado (i. e., de semântica) e não através da própria estrutura da linguagem. Desta forma se faz a comunicação ideográfica que constituiu a base do sistema de escrita de muitas populações do passado e ainda hoje se utiliza nalgumas culturas orientais e que cada vez mais retoma o seu interesse como forma de aproximação e informação de falantes de línguas diferentes. Se considerarmos um aeroporto o lugar de excelência para o encontro multilinguístico em que é necessário dar informações, podemos ver como proliferam os ícones que têm significado idêntico em todas as línguas mas que não correspondem à mesma palavra formal, entendida como sequência fónica.

Em certo momento da evolução destas capacidades registaram-se duas transformações dignas de relevo. A primeira disse respeito à transformação dos ícones. A certa altura os ícones perderam a sua estrutura representativa da realidade e adquiriram valor simbólico. Vejam-se, por exemplo, os caracteres cia escrita ideográfica japonesa. A leitura que até urna determinada altura podia ser feita por grande parte dos indivíduos, sem necessidade de aprendizagem prévia, passa a necessitar de ser aprendida. O desenho dos símbolos, embora com um referencial semântico, passa a ser abstracto, separando-se desta forma das regiões do cérebro que estão envolvidas nas tarefas de fazer a representação interna do mundo que nos rodeia. Do ponto de vista da função cerebral, aquilo que podemos especular sobre este assunto é o facto de deixar de ser necessária uma aproximação global à forma do ícone, que seria uma tarefa hemisférica direita, e passar a ser o hemisfério esquerdo mais responsável pela programação destas actividades de escrita. Ao tornar-se simbólica a representação cios caracteres passou a ser importante a sua localização no espaço e a relação entre eles. Escrevê-los numa sequência, da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita ou, ainda, na vertical, passou a ser uma convenção. As mensagens passaram a ser então segmentadas: cada caracter deverá ter a sua posição certa na mensagem, de acordo com regras e tempos de entrada. É precisamente a introdução deste factor tempo que permite a emergência da nova transformação.

Esta transformação corresponde ao emparceirarnento destas aptidões com a consciência da possibilidade de segmentação do léxico. A linguagem oral é constituída por um conjunto finito de movimentos do aparelho vocal que resultam em sons audíveis marcados por uma sequência temporal. A consciência da estrutura repetitiva da linguagem oral como combinação de elementos de um conjunto que se sucedem no tempo, permitiu associar esses elementos audio-motores a elementos visuo-motores. Encontramos exemplos em que a segmentação silábica constitui a base da escrita, por exemplo, na escrita dos Maias da América Central (Fidier, 1997). A escrita que usamos na nossa cultura assenta numa segmentação mais minuciosa e que corresponde à fonologia. Voltando à questão do cérebro, podemos imaginar que esta operação se desenrola em áreas do córtex designadas de associação entre as diferentes modalidades sensoriais. Na verdade, as três modalidades sensoriais mais importantes contribuem para as operações cie escrita, como já ficou claro. A região meso-parietal, que corresponde aproximadamente à área 39 do mapa de Broadmann, é urna região de confluência multimodal que sabemos desempenhar um papel importante na escrita e na leitura.

O que sabemos da patologia cerebral adquirida e da dislexia de desenvolvimento

Não nos interessa aqui fazer a revisão geral do que se sabe sobre perturbações da leitura adquiridas na sequência de lesões cerebrais. De facto a literatura nesta área confirmaram resultados de outros autores com provas semelhantes (Borod, Goodglass & Kaplan, 1980; Kremin et al., 1991).

E, porém, necessário ir um pouco mais longe na compreensão deste fenómeno e, assim, está em preparação uma bateria de provas destinada a esclarecer este assunto, tomando em linha de conta as diversas operações que podem contribuir para a realização destas tarefas. De qualquer forma pode adiantar-se, desde já, que o desempenho de indivíduos com baixa cultura numa prova como a cópia da figura complexa de Rey e Osterrieth (Rey, 1941; Osterrieth, 1944) sugere uma aproximação de tipo agnósico, como foi discutido nas agnosias integrativas (Humphreys & Riddoch, 1987). Nestes casos regista-se uma dificuldade em integrar processos que ocorrem em cada um dos lados do cérebro. Interessa pois investigar independentemente os componentes que respeitam ao hemisfério esquerdo e aqueles que respeitam ao direito, para depois avaliar da dificuldade de integrar ambas as partes (Gonçalves, em preparação).

Estes aspectos estão claramente relacionados com o segundo pólo de atenção, que identificámos acima, e que interessava a transferência inter-hemisférica. A transferência de informação entre os dois hemisférios cerebrais realiza-se através de fibras que atravessam o corpo caloso. Num estudo em que comparámos as medidas do corpo caloso de mulheres analfabetas com o de mulheres letradas verificámos que, na porção do corpo caloso por onde cruzam as fibras provenientes do córtex parietal, existia uma significativa diferença. As mulheres analfabetas tinham essa porção mais estreita, o que sugere haver menos fibras de cruzamento interparietal. As medidas foram feitas digitalizando a imagem do corte sagital do corpo caloso, tal como este é visto em Ressonância Magnética (Castro-Caldas et al., 1999). Achados convergentes foram obtidos num estudo realizado com Tomografia de Emissão de Positrões, em que se estudaram voluntárias analfabetas e letradas durante a execução de provas de repetição de palavras e de repetição de pseudo-palavras. Neste estudo, que descrevemos abaixo, foi demonstrado que o balanço de activação entre o córtex parietal dos dois hemisférios era diferente nos dois grupos, sugerindo que a aprendizagem da leitura modifica a forma como os dois hemisférios se relacionam. Ficou sugerido que aumentava a comunicação inter-hemisférica sem haver um sentido único dessa comunicação. Isto pode significar que os dois hemisférios cerebrais participam de maneira diferente na realização da mesma tarefa consoante a escolaridade (Castro-Caldas et al., 1998). Esta mesma observação foi feita com outro paradigma experimental relacionado com operações de cálculo. Foi pedido a indivíduos analfabetos e a letrados que realizassem operações de julgamento da magnitude, num determinado contexto semântico, como por exemplo: "10 pessoas dentro de um automóvel é muito ou pouco?" ou "5 alunos numa escola é muito ou pouco?". Os indivíduos de cada grupo utilizaram estratégias cognitivas distintas e a actividade cerebral registada com Ressonância Magnética funcional durante a realização destas provas mostrou também uma diferença fundamental: os analfabetos activam predominantemente o hemisfério direito e os letrados o hemisfério esquerdo (Braga et al., submetido para publicação).

Passando agora ao terceiro pólo de interesse relacionado com a capacidade de lidar de forma explícita com os componentes sublexicais, importa salientar a importância do trabalho de Morais (Morais et al., 1979), que chamou a atenção pela primeira vez para o facto de a consciência fonológica resultar da aprendizagem da leitura. É essa consciência que permite a realização de tarefas verbais diversas como a repetição de pseudo-palavras, a associação de pares de palavras consoante a sua estrutura formal em comparação com a associação baseada na estrutura semântica ou a capacidade de evocar palavras dado o fonema inicial. Estes aspectos foram estudados em duas populações — letrados e analfabetos — e verificou-se a existência de diferenças significativas na performance em todos eles (Reis & Castro-Caldas, 1997).

Tomando estes resultados em consideração foi realizado um estudo com Tomografia de Emissão de Positrões em que 6 mulheres analfabetas e 6 mulheres letradas repetiram séries de palavras e séries de pseudo-palavras. Entende-se por pseudo-palavras uma sequência de fonemas regida por regras idênticas às existentes na língua portuguesa. Os resultados mostraram que havia uma discreta diferença entre os grupos, na região parietal esquerda, durante a repetição de palavras reais. O hemisfério esquerdo estava mais activado do que o direito nos indivíduos alfabetizados. Pelo contrário, a diferença era muito marcada no que respeita à repetição de pseudo-palavras. As mulheres letradas activaram mais o opérculo frontal e a ínsula anterior à direita e o cíngulo anterior, o putámen, o pálido, o tálamo anterior, o hipotálamo e a protuberância do lado esquerdo. O vérmis cerebeloso estava também mais activado no grupo das mulheres letradas. Em contrapartida, do ponto de vista da performance, os grupos repetiram as palavras de igual modo, enquanto que as pseudo-palavras foram muito mal repetidas pelo grupo de analfabetas. Isto sugere que as analfabetas não conseguiram pôr em actividade as estruturas cerebrais necessárias para realizar correctamente a tarefa (Castro-Caldas et al., 1998; Petersson et al., 2000).

Este aspecto da relação da capacidade de lidar com a constituição fonológica das palavras com a alfabetização continua a ser investigado. Em primeiro lugar, interessa salientar que o treino e o domínio explícito das sequências fónicas se acompanha do desenvolvimento da memória de trabalho fonológica. Tal como foi demonstrado em etapas precoces da aprendizagem da leitura (Gathercole et al., 1994), existe um paralelismo entre a capacidade de aprender a leitura e a memória de curto prazo avaliada através de provas de digit span. Na verdade essa relação tem também uma expressão na performance dos indivíduos analfabetos. Ao invés de recorrerem a mecanismos baseados em memória de trabalho assemântica, os analfabetos remetem a informação a reter para sistemas de codificação semântica que são mais lentos e menos eficazes (Reis et al., 1996; Simões et al., 2001). Por outro lado, o desenho de provas e tarefas no sentido de manipular os vários componentes da memória de trabalho fonológica demonstrou também a interferência dos sistemas de referenciação semântica nos indivíduos analfabetos que, por isso e pela pior eficácia da sua execução, se distinguem dos letrados (Nunes, em preparação).

Conclusão

O conjunto de resultados que têm vindo a ser obtidos resultam de hipóteses geradas por um modelo orientador e permitem pôr em evidência a importância do conhecimento aprendido na idade escolar na organização biofuncional do cérebro. O modelo escolhido permite ainda uma vasta exploração que constitui a continuidade do projecto.

 

Referências

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Notas

1Para revisão geral sobre este assunto ver Kolb e Whishaw, 1998.

2Ver também Morais (1997).

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