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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.15 no.1 Lisboa Jan. 2001

 

Efeito das crenças nas diferenças entre sexos na percepção e no julgamento das práticas familiares

Beliefs on sex differences and practices in the family

 

Gabrielle Poeschl*; Aurora Silva**

*-**Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto.

 


RESUMO

O ingresso das mulheres no mundo profissional não alterou muito a organização familiar: as mulheres continuam a assumir a maior parte do trabalho familiar e a ter menos poder do que os homens em decisões relevantes para a vida familiar. No entanto, os cônjuges parecem satisfeitos com as práticas adoptadas no casal. Procurando compreender as dificuldades na mudança das práticas familiares analisámos, num estudo quase-experimental junto de 418 docentes de ambos os sexos, o efeito das crenças sobre as diferenças entre os sexos na percepção e no julgamento de diferentes modelos de organização familiar, assim como dos cônjuges que os adoptam. Os resultados revelam que, além dum aparente consenso acerca dum ideal de organização familiar igualitária, as crenças nas diferenças entre os sexos levam a considerar como mais ideal que os cônjuges desempenhem os seus papéis tradicionais e como menos ideal que o homem assuma um papel igualitário. Sendo ainda largamente difundidas, tanto entre as mulheres como entre os homens, as crenças nas diferenças entre os sexos poderiam contribuir para explicar as resistências à mudança nos papéis conjugais.1

Palavras-chave Papéis conjugais, família, diferenças entre sexos, género.


ABSTRACT

The access of women to the professional world did not significantly alter the traditional roles in the family. Women still perform most of the domestic work and have less power than men in decisions that are relevant to family life. Not withstanding these facts, several studies indicate that men and women appear to be satisfied with social practices in the family. In order to further understand the obstacles to change in family roles, 418 teachers of both sexes participated in a study which analysed the effects of beliefs about sex differences on the perception and judgements of different patterns of family organisation, as well as the actors adopting these patterns. Results show that, although men and women consider the equalitarian couple as an ideal one, beliefs about sex differences contribute to more positive judgements of the traditional division of roles and more negative judgements of the equalitarian male actor. According to these results, resistances toward change in family roles can be explained by the persistence of beliefs about sex differences that are largely shared by both men and women.

 


O ingresso em massa das mulheres no mundo profissional foi acompanhado por uma liberalização das opiniões sobre os papéis conjugais, mas não produziu uma grande mudança nas práticas familiares (Spence, Deaux & Helmreich, 1985). Os estudos sobre a divisão do trabalho doméstico mostram, de forma consistente, que a participação dos homens nas tarefas domésticas continua a ser pouco significativa (Poeschl, no prelo; Vicente, 1998; Stohs, 1995; Costa, 1992; Baudelot & Establet, 1992). Para além disso, embora seja cada vez maior o número de mulheres que trabalham apesar de terem filhos pequenos, as mães continuam a ser consideradas como as principais responsáveis pelas crianças e asseguram ainda mais de metade do trabalho parental (Wille, 1995).

No que respeita ao poder familiar, alguns autores concluíram que a actividade profissional da mulher se reflecte numa partilha mais igualitária das tomadas de decisão (Blood & Wolfe, 1960). Porém, a desigualdade entre marido e mulher parece continuar a existir, embora seja frequentemente ocultada pelos cônjuges, que afirmam tomar as decisões em conjunto (Saraceno, 1992). Outros autores salientam também que, para além do nível das decisões quotidianas, existe um outro nível de poder, no qual a autoridade masculina permanece intocável (Kellerhals, Troutot & Lazega, 1993).

Sem dúvida, na maioria dos casos, as práticas familiares reflectem uma forte desigualdade entre homens e mulheres, que contradiz, de modo flagrante, a ética igualitária cm que se baseia a sociedade ocidental. No entanto, os estudos que procuram descrever o efeito da organização familiar sobre os dois cônjuges evidenciam, de forma surpreendente, que tanto os homens como as mulheres consideram a organização que adoptam como justa e equitativa e descrevem-na, muitas vezes, como satisfatória, independentemente da forma como distribuem entre si o poder e o trabalho (Baxter & Western, 1998; Müller, 1998; Roux, 1999).

Têm sido propostas várias explicações na tentativa de compreender este paradoxo: A manutenção da autoridade masculina no casal poderia explicar-se não só pelo facto de os homens terem mais poder na sociedade em geral, como também pela existência de expectativas generalizadas de que eles tenham mais poder (Felmlee, 1994). A satisfação feminina com a divisào do trabalho doméstico poderia provir do facto de as mulheres serem obrigadas a ajustar as suas expectativas e exigências, por serem confrontadas com situações de iniquidade, tanto no trabalho assalariado como no trabalho familiar (Baxter & Western, 1998). Alguns autores concluíram também que homens e mulheres poderiam ter noções diferentes da justiça (Gilligan, 1982), ou, ainda, que desigualdade não significa forçosamente injustiça e que uma repartição desigual das tarefas domésticas poderia ser considerada como legítima (Roux, 1999).

Aos pontos de vista que salientam as diferenças de natureza entre homens e mulheres, ou o impacto das crenças nestas diferenças, podem confrontar-se outras explicações baseadas na assimetria das posições dos dois sexos na estrutura social e nas relações de poder que os unem. Por exemplo, na perspectiva de Eagly (1987), as mulheres conformam-se aos comportamentos normativos, não necessariamente por terem internalizado as crenças que os definem, mas sim sob o efeito da pressào social, ou seja, devido ao poder que têm os grupos e os indivíduos que partilham essas crenças para influenciar o seu comportamento.

Num conjunto de estudos realizados em Portugal, procurámos examinar as razões pelas quais existem tantas dificuldades para mudar as práticas familiares. Em primeiro lugar (Poeschl, no prelo), a importância de se conformar às práticas normativas foi evidenciada num estudo em que se pôde observar que as práticas efectivamente adoptadas pelos cônjuges sào melhor preditas pelas suas representações das práticas dos outros do que pelas suas concepções dos papéis conjugais. Estes resultados levaram-nos, em seguida, a procurar identificar a natureza das crenças que sustentam, na actualidade, as práticas familiares normativas. Nesse estudo (Poeschl & Serôdio, 1998), baseámo-nos em trabalhos que mostram que o modo como os homens representam os papéis de género masculinos contribui para a formação de diferentes papéis conjugais (Mintz & Mahalik, 1996). IX* forma semelhante, procurámos examinar se a forma como os indivíduos representam a organização familiar típica (que deveria constituir a norma de referência para a orientação das práticas) está associada a opiniões diferentes sobre as características e competências dos dois sexos.

A análise das opiniões de dois grupos de adultos casados, um com um modelo de organização familiar de tipo tradicional e outro com um modelo de tipo cooperativo, evidenciou dois resultados principais. Em primeiro lugar, diferentes modelos de organização familiar são associados a apenas uma diferença relativamente aos papéis de género. Os respondentes que representam o casal típico como cooperativo concordam, mais do que os outros, que os homens devem possuir os traços típicos do seu grupo sexual, a agenticidade, e valorizar o poder. Este resultado é contrário ao que se esperava, na medida em que sugere uma covariação entre a agenticidade do cônjuge masculino e o seu grau de participação no trabalho familiar. Esta relação contradiz a lógica que, desde Parsons (1955), justifica a separação dos dois sexos entre esferas pública e privada na base dos traços, agênticos ou comunais, que diferenciariam os homens das mulheres.

Em segundo lugar, existem diferenças entre os respondentes dos dois sexos em quase todas as dimensões dos papéis de género examinadas: Os respondentes masculinos acreditam, mais do que os femininos, que é importante para os homens possuírem traços tipicamente masculinos e, para as mulheres, possuírem traços tipicamente femininos. Os respondentes masculinos estão também mais de acordo que as mulheres devem assumir o seu papel tradicional na família. As respondentes de sexo feminino declaram-se mais igualitaristas do que os respondentes de sexo masculino, mas mostram-se também mais inclinadas a pensar que as mulheres possuem competências particulares que tornam desejável uma separação dos papéis conjugais e difícil uma intermutabilidade dos cônjuges. O único ponto em que os sexos não se diferenciam diz respeito ao papel familiar tradicional masculino.

Evidenciou-se assim que os comportamentos familiares estão associados a crenças que, tanto as mulheres como os homens, partilham acerca das diferenças entre os sexos. Inferimos que estas crenças poderiam contribuir para manter as desigualdades nas práticas familiares, independentemente do seu conteúdo ser diferente para os dois sexos. Esta conclusão incitou-nos a realizar o presente estudo, no intuito de examinar, através de uma metodologia diferente, se diferenças no grau de adesão global ao princípio da igualdade de direitos e de competências dos dois sexos produzem variações na percepção e no julgamento de diversos modelos de organização familiar e dos cônjuges que os adoptam.

Objectivos e hipóteses

Para conhecer como são percepcionadas e avaliadas diferentes organizações familiares assim como os cônjuges que as adoptam, inspirámo-nos num procedimento utilizado por Smoreda (1996). Assim, construímos cinco versões dum mesmo questionário que apresentava dois cônjuges (Cristina e Filipe) que distribuem entre si o trabalho e o poder familiar de forma diversificada, e pedimos a adultos casados que avaliassem os papéis desempenhados. Mais precisamente, Cristina e Filipe são colocados, segundo as versões, num dos cinco papéis seguintes: (a) activo (participa maioritariamente no trabalho e nas decisões familiares); (b) executante (participa maioritariamente no trabalho e minoritariamente nas decisões familiares); (c) dirigente (participa maioritariamente nas decisões e minoritariamente no trabalho familiar); (d) passivo (participa minoritariamente no trabalho e nas decisões familiares); (e) igualitário (participa por metade no trabalho e nas decisões familiares).

Além de analisar a percepção e o julgamento das organizações familiares, procurámos esclarecer duas relações do triângulo clássico papel-traço-sexo. Em primeiro lugar, e na sequência do resultado obtido no estudo acima descrito (Poeschl & Serôdio, 1998), procurámos verificar a relação entre traços masculinos (agenticidade, necessidade de poder) e trabalho familiar. Em segundo lugar, considerando que vários autores são de opinião de que os traços atribuídos aos cônjuges dependem da sua posição de poder no casal mais do que da sua pertença sexual (Gerber, 1988; Smoreda, 1995; 1996), procurámos examinar a relação entre traços masculinos e sexo do cônjuge.

A percepção dos cônjuges foi estudada através da avaliação de vários traços de personalidade (agenticidade, comunalidade, necessidade de poder) e da participação em outros tipos de decisões familiares, bem como através das respostas afectivas que suscitam. Por outro lado, uma série de proposições serviu para obter os julgamentos sobre a organização familiar apresentada, nomeadamente a sua idealidade e tipicidade, assim como para determinar o grau de adesão dos respondentes ao princípio de igualdade de direitos e de competências dos dois sexos.

Ainda que as práticas familiares não pareçam ser influenciadas pelos grupos sociais a que pertencem os cônjuges (Müller, 1998), procurámos interrogar uma população homogénea. A nossa escolha dirigiu-se para uma população de docentes do ensino secundário dos dois sexos, todos casados e com filhos, visto que, no caso de existir uma influência de classe, esta parece caracterizar-se por uma homogamia profissional e cultural que favorece a modificação da repartição tradicional dos papéis masculinos e femininos (Bidou, 1984, citado por Herla, 1987).

Três conjuntos de hipóteses foram colocados:

Julgamentos sobre as organizações familiares Os cônjuges colocados nos papéis tradicionais (marido dirigente e mulher executante) serão julgados como mais típicos pelo conjunto dos respondentes (hipótese la). No entanto, diferenças no grau de adesão dos respondentes ao princípio de igualdade de direitos e de competências dos dois sexos levarão a diferenças na avaliação da organização familiar ideal. Os respondentes que menos acreditam na igualdade entre os sexos avaliarão mais favoravelmente os papéis conjugais tradicionais (hipótese lb).

Relação entre traços tipicamente masculinos e trabalho familiar Segundo a concepção clássica que associa papéis sexuais diferenciados a traços sexuais diferenciados, a importância atribuída aos traços agênticos e à necessidade de poder nos homens devia ser positivamente correlacionada com a participação induzida do marido nas tomadas de decisão e inversamente correlacionada com a sua participação induzida no trabalho familiar. Por conseguinte um marido dirigente será percepcionado como mais agêntico e mais virado para o poder do que um marido activo, e um marido passivo será percepcionado como mais agêntico e mais virado para o poder do que um marido executante (hipótese 2a).

Alternativamente, e de acordo com os nossos resultados (Poeschl & Serôdio, 1998), a importância atribuída aos traços agênticos e à necessidade de poder nos homens devia estar positivamente correlacionada com a participação induzida do marido no trabalho familiar. Assim, um marido activo será percepcionado como mais agêntico e mais virado para o poder do que um marido dirigente, e um marido executante será percepcionado como mais agêntico e mais virado para o poder do que um marido passivo (hipótese 2b).

Relação entre papel desempenhado e traços de personalidade A relação, classicamente estabelecida, quer entre traços agênticos e sexo masculino, quer entre traços comunais e sexo feminino, tem sido questionada por vários autores que mostram que as características atribuídas aos dois grupos sexuais são melhor preditas pela sua posição de poder na relação do que pela sua pertença sexual (Gerber, 1988; Smoreda, 1995; 1996). Por conseguinte, independentemente do sexo de pertença, um cônjuge activo ou dirigente será percepcionado como mais agêntico e mais virado para o poder do que um cônjuge passivo ou executante, enquanto que a atribuição dos traços comunais seguirá a relação inversa (hipótese 3a).

Por outro lado, a atribuição dos traços de personalidade é baseada na pertença sexual dos cônjuges e, para cada tipo de papel desempenhado, a mulher será percepcionada como mais comunal do que o marido, e o marido como mais agêntico e com mais necessidade de poder do que a mulher (hipótese 3b).

Método

Sujeitos

A nossa amostra é constituída por 418 adultos casados, 204 mulheres e 214 homens do Norte de Portugal. São docentes do nível básico (segundo e terceiro ciclos), têm entre 24 e 70 anos, com idade média de 41 anos. Os respondentes têm entre um e nove filhos (dois, em média). São numa forte maioria católicos (90%), sendo 50% praticantes, e representam as diversas tendências políticas.

Questionário

Conforme o procedimento de Smoreda (1996), a primeira página do questionário apresentava o estudo como uma investigação sobre a percepção de desconhecidos e recolhia os dados sociográficos. A segunda página era destinada à indução experimental. Continha um texto introdutório que explicava que, no quadro duma investigação no domínio da organização familiar, várias pessoas nos tinham indicado o seu grau de participação em diferentes tarefas e tomadas de decisões familiares. Ia-se apresentar as respostas de duas pessoas, designadas por Cristina e Filipe, descritas como casadas, trabalhando na mesma agência bancária e tendo três crianças, uma de dez meses, uma de quatro e uma de oito anos. Os respondentes eram convidados a ler cuidadosamente a descrição da organização familiar adoptada pelo casal e a imaginar Cristina (ou Filipe) com base nas respostas que tinham sido fornecidas.

Manipulação experimental

As respostas atribuídas a Cristina e a Filipe eram registadas lado a lado num quadro que incluía cinco tarefas domésticas, cinco actividades parentais e cinco situações de tomada de decisão. Os itens tinham sido seleccionados dentro das respostas que, no estudo de Poeschl e Serôdio (1998), discriminavam mais fortemente a participação percepcionada dos dois cônjuges nas actividades familiares. Os graus de participação indicados tinham sido escolhidos dentro das estimações mais extremas, de maneira a criar a impressão de um forte ou, pelo contrário, fraco investimento nas actividades apresentadas. A indução experimental consistia em fazer variar os graus de participação de Cristina e de Filipe no trabalho familiar e nas tomadas de decisão, de forma a colocar o cônjuge-estímulo num dos quatro papéis conjugais em teste (activo, dirigente, passivo, executante). No que respeita ao papel igualitário, todas as percentagens tinham sido fixadas em 50%.

Variáveis dependentes

Em seguida, apresentavam-se, sempre na mesma sequência, as quatro partes do questionário. Na primeira parte, os respondentes eram convidados a exprimir a sua opinião, numa escala de sete pontos, sobre a probabilidade de o cônjuge-estímulo possuir os vinte traços de personalidade escolhidos. Dentro destes, cinco traços agênticos e cinco traços comunais tinham sido retomados dum estudo realizado por Poeschl (1996), enquanto os dez itens relativos à necessidade de poder provinham duma escala de O'Neil, Helms, Gable, David e Wrightsman (1986), já utilizada por Poeschl e Serôdio (1998). Na segunda parte, os respondentes deviam avaliar, em percentagem, a participação provável do cônjuge-estímulo em nove decisões: três decisões diziam respeito aos filhos e provinham do estudo de Poeschl e Serôdio (op. cit). Dentro das seis outras decisões familiares, três eram de carácter individual e três requeriam o acordo mútuo do casal, segundo as disposições relativas ao direito da família do Código Civil Português.

Na terceira parte, pedia-se aos respondentes que exprimissem, numa escala de sete pontos, a intensidade das emoções provocadas pelo cônjuge-estímulo. Dez emoções tinham sido seleccionadas dentro dos itens da escala de Izard (Isen, 1987), que deviam representar, segundo os resultados obtidos num pré-teste, respostas afectivas de natureza negativa, depressiva, positiva ou, ainda, de surpresa (Silva, 1999). Por fim, na quarta parte, os respondentes eram convidados a indicar o seu grau de acordo, numa escala de sete pontos, com dezoito proposições: doze diziam respeito ao carácter ideal ou típico da organização familiar descrita, à sua justiça, assim como à estabilidade e satisfação do casal, e seis mediam o grau de adesão dos respondentes ao princípio de igualdade de direitos e de competências dos dois sexos.

Procedimento

Depois de terem aceite participar no estudo, os respondentes preencheram individualmente o questionário. A cada respondente coube a tarefa de descrever apenas um dos dois cônjuges.

Resultados e discussão

Começamos por efectuar uma análise factorial em componentes principais sobre as respostas fornecidas á quarta parte do questionário, para evidenciar uma eventual organização das opiniões sobre a tipicidade e a idealidade das organizações familiares apresentadas e sobre a igualdade de direitos e de competências dos dois sexos. A análise extraiu quatro factores principais, com valor próprio superior a 1, que explicam, em conjunto, 63,4% da variância total. A composição dos factores, após rotação varimax, é apresentada no quadro 1.

O primeiro factor refere a organização familiar ideal, caracterizada pela harmonia, a justiça, a satisfação, a estabilidade e a ausência de conflitos; o segundo factor diz respeito à igualdade de direitos entre os cônjuges; o terceiro evoca a organização familiar típica; o último factor aponta para a existência de diferenças de competências entre homens e mulheres. Dado que os factores apresentam uma consistência interna satisfatória, como se pode observar pelos valores do alfa de Cronbach (cf. quadro 1), construímos quatro escalas, calculando, para cada uma, a média dos itens agrupados.

Em seguida, procurámos constituir dois grupos de indivíduos que apresentam diferenças relativamente às suas opiniões sobre a igualdade de direitos e de competências dos dois sexos. Para isso, aplicámos uma análise de classificação rápida {quick cluster) às escalas de igualdade de direitos e de diferenças de competências, construídas a partir da solução factorial. Os dois grupos assim constituídos manifestam um grau de acordo elevado, apesar de significativamente diferente, com o princípio da igualdade de direitos entre os cônjuges (6,29 vs.5,78, t(416)=5,70, p<0,001). Pelo contrário, eles distinguem-se fortemente no que diz respeito às diferenças de competências entre homens e mulheres (2,19 i»s. 5,13, t(416)=32,85, p<0,001). Por isso, designámos de igualitaristas os membros do primeiro grupo e de tradicionalistas os membros do segundo. Os dois grupos distribuem-se de forma aleatória através das condições experimentais (igualitaristas: x2(4)=2,12/ ns; tradicionalistas: x2(4)=2,90, ns). A sua composição não está associada a nenhuma das variáveis sociométricas recolhidas, com a excepção do sexo de pertença dos respondentes, que apresenta uma relação moderada mas significativa com as crenças evidenciadas (phi=0,18, p<0,001). Assim, o primeiro grupo é composto por 163 pessoas, 65 homens (40%) e 98 mulheres (60%), e o segundo é constituído por 255 pessoas, 149 homens (58%) e 106 mulheres (42%).

Julgamentos sobre os papéis

Para examinarmos a influência das crenças sobre as diferenças (ou semelhanças) entre os sexos nos julgamentos acerca da organização familiar, calculámos os graus médios de tipicidade e de idealidade dos cinco papéis conjugais desempenhados por Cristina e Filipe. Estas médias são apresentadas no quadro 2, juntamente com os resultados da análise da variância que testa os efeitos do Papel desempenhado (activo vs. executante vs. dirigente vs. passivo vs. igualitário), do Cônjuge descrito (Cristina vs. Filipe) e das Crenças dos respondentes (igualitarismo vs. tradicionalismo).

Em primeiro lugar, pode-se notar que os dois grupos de respondentes não se diferenciam na forma como avaliam a tipicidade das organizações familiares descritas. O efeito significativo de Papel indica que as organizações familiares mais típicas são aquelas em que os cônjuges são quer dirigentes, quer executantes (3,57 e 3,53, respectivamente). Estas duas situações distinguem-se dos modelos em que os cônjuges são passivos (2,98), enquanto que as organizações em que os cônjuges são activos ou igualitários são consideradas como menos típicas (respectivamente 2,69 e 2,36; p<0,05, multiple range t de Student).

A interacção significativa entre Papel e Cônjuge indica que esta ordenação global varia em função do sexo do cônjuge: Cristina é julgada mais típica quando desempenha o papel de executante do que quando é activa, e é considerada como menos típica quando é colocada nos papéis igualitário, passivo ou dirigente. Pelo contrário, Filipe é julgado como mais típico quando desempenha o papel de dirigente do que quando é passivo, e é considerado como menos típico quando é descrito nos papéis igualitário, activo ou executante. As diferenças entre cônjuges são significativas em todas as condições. Como se pode observar no quadro 2, Cristina é mais típica do que Filipe nos papéis executante (t (83)=14,45, p<0,001), activo (t(77,07)=4,69, p<0,001), e até igualitário (t(79)=2,19, p=0,031), enquanto que Filipe é mais típico do que Cristina nos papéis passivo (t (81)=3,22, p=0,002) e dirigente (t(79)=10,65, p<0,001).

Em segundo lugar, o efeito significativo de Papel nos julgamentos de idealidade indica que a organização familiar considerada como mais ideal é aquela em que os cônjuges participam de forma igualitária nas tarefas familiares (4,69). Este modelo diferencia-se significativamente dos modelos em que os cônjuges são executantes ou activos (3,47 e 3,24, respectivamente). Por fim, as organizações familiares consideradas como menos ideais são aquelas em que os cônjuges são passivos ou dirigentes (3,00 e 2,75, respectivamente; p<0,05, multiple range t de Student). Pode notar-se que esta ordenação segue o grau induzido de participação no trabalho familiar preferencialmente ao grau induzido de participação nas tomadas de decisão.

O efeito significativo de Cônjuge revela que os respondentes que descrevem o cônjuge masculino julgam as organizações propostas como mais ideais do que os respondentes que descrevem o cônjuge feminino (Filipe: 3,53; Cristina: 3,32). A interacção significativa entre Papel e Crença indica que os tradicionalistas consideram o papel de dirigente como mais ideal do que os igualitaristas (tradicionalistas: 3,03; igualitaristas: 2,46; t (79)=2,91, p=0,005), enquanto que estes últimos consideram o papel igualitário mais ideal do que os tradicionalistas (igualitaristas: 5,32; tradicionalistas: 4,42; t(79)=3,13; p=0,002). Porém, a interacção significativa entre Papel, Cônjuge e Crença mostra que os igualitaristas não diferenciam as suas respostas em função do sexo do cônjuge descrito, enquanto que a pertença sexual do cônjuge influencia o julgamento de idealidade dos tradicionalistas. Para estes respondentes, é mais ideal que Cristina esteja no papel executante do que Filipe (Cristina: 4,00; Filipe: 3,38; t(45)=2,22, p=0,031), e é mais ideal que Filipe esteja no papel passivo do que Cristina (Cristina: 2,66; Filipe: 3,53; t(55)=3,80, p<0,001).

As diferenças no julgamento de idealidade dos modelos familiares em função das crenças sugerem ainda que os tradicionalistas julgam mais ideal do que os igualitaristas que Cristina desempenhe o seu papel tradicional de executante (tradicionalistas: 4,00; igualitaristas: 3,07; t(39)=3,43, p=0,001), ou que ela assuma um papel activo (tradicionalistas: 3,44; igualitaristas: 2,67; t(43)=2,79, p=0,008). Na medida em que eles consideram também menos ideal que Filipe esteja no papel igualitário (tradicionalistas: 4,38; igualitaristas: 5,69; t(38)=2,80, p=0,008), pode-se concluir que os tradicionalistas acham mais favorável do que os igualitaristas que Cristina assuma maioritariamente o trabalho familiar. Para além disso, os tradicionalistas consideram também como mais ideal do que os igualitaristas que Filipe desempenhe o seu papel tradicional de dirigente (tradicionalistas: 3,14; igualitaristas: 2,45; t(38)=2,59, p=0,013).

Uma comparação da relação entre papéis típicos e ideais em função do cônjuge descrito e das crenças dos respondentes mostra que, para os igualitaristas, os papéis masculinos mantém uma correlação inversa (r=-0,26, p=0,015), enquanto que não há relação entre a tipicidade e a idealidade dos papéis femininos (r=0,21, ns). Para os tradicionalistas, não há relação entre os dois tipos de papéis masculinos (r=0,14, ns), enquanto que existe uma relação positiva e forte entre os papéis femininos ideal e típico (r=0,43, p<0,001).

Em suma, de acordo com a nossa hipótese la, os cônjuges colocados nos papéis tradicionais (marido dirigente e mulher executante) são julgados como sendo os mais típicos pelo conjunto de respondentes. Pelo contrário, os dois grupos de respondentes diferem nos seus julgamentos sobre a organização familiar ideal. Em apoio da nossa hipótese lb, são os respondentes que menos acreditam na igualdade entre os sexos aqueles que avaliam mais favoravelmente os papéis conjugais tradicionais. Estes papéis parecem ser considerados como desejáveis, não só por homens mas também por uma grande proporção de mulheres, visto que cerca de metade das mulheres interrogadas se encontram no grupo de pessoas "tradicionais". Este resultado sugere que as crenças nas diferenças de competências entre homens e mulheres tém um papel importante na manutenção dos papéis tradicionais.

A análise da percepção dos traços dos cônjuges, da forma como eles distribuem o poder e das respostas afectivas que despertam devia fornecer algumas explicações para perceber os julgamentos de tipicidade, c sobretudo de idealidade, emitidos pelos dois grupos de respondentes.

Percepção dos cônjuges

A análise factorial em componentes principais, efectuada sobre as avaliações dos traços de personalidade dos cônjuges, extraiu três factores com valor próprio superior a 1, que explicam, no conjunto, 61,3% da variância total. Pode observar-se, no quadro 3, que os itens foram agrupados segundo as três dimensões previstas: o primeiro factor refere a necessidade de poder, sucesso e competição, o segundo evoca os traços comunais, e o terceiro os traços agênticos.

Apresentamos, no quadro 4, a probabilidade média de os cônjuges apresentarem as três dimensões de personalidade, em função do Papel que desempenham. Indicamos, em simultâneo, os resultados da análise da variância que testa os efeitos do Papel desempenhado (activo i>s. executante us. dirigente vs. passivo v$. igualitário), do Cônjuge descrito (Cristina üs. Filipe) e das Crenças dos respondentes (igualitarismo vs. tradicionalismo).

Os efeitos significativos de Papel sugerem que as descrições dos cônjuges variam em função do papel que desempenham na organização familiar. No que diz respeito à necessidade de poder, a média mais elevada é recolhida pelos cônjuges colocados no papel de dirigentes (5,02). Ela difere significativamente da média obtida pelos cônjuges activos (4,61), considerados como significativamente mais autoritários do que os cônjuges igualitários (4,23) ou passivos (4,15), enquanto que os cônjuges executantes são os que parecem dar menos valor ao poder (3,54; p<0,05 multiple ranget de Student). Por outras palavras, a valorização do poder parece co-variar com o grau de participação induzido dos cônjuges nas tomadas de decisão. Essa valorização parece tanto mais forte quanto a participação nas tomadas de decisão se faz acompanhar por uma fraca participação no trabalho familiar.

No que respeita aos traços agênticos, existem diferenças significativas (p<0,05 multiple range t de Student) entre os cônjuges acti vos (534) e os cônjuges dirigentes (432) e igualitários (4,76). Os cônjuges colocados nestes três papéis diferenciam-se dos cônjuges executantes (4,24), considerados, por sua vez, como mais agénticos do que os cônjuges passivos (3,45). Esta hierarquização co-varia igualmente com a participação induzida dos cônjuges nas tomadas de decisão, mas, ao contrário da necessidade de poder, a agenticidade é reforçada por uma maior participação no trabalho familiar.

Por fim, os cônjuges executantes são percepcionados como os mais comunais (5,70), precedendo, por ordem, os cônjuges igualitários (5,19), os cônjuges activos (4,64), os cônjuges passivos (4,14), enquanto que os cônjuges dirigentes são considerados como os menos comunais (3,43; todas as médias sào significativamente diferentes ao nível de p<0,05 mui tiple range t de Student). Neste caso, a percepção da comunalidad e é tanto mais forte quanto a participação no trabalho familiar é elevada, e os cônjuges são julgados como tanto mais comunais quanto menos intervêm nas tomadas de decisão.

Com todas as condições reunidas, os dois cônjuges diferem na sua probabilidade de possuir os três tipos de traços. Assim, Cristina é percepcionada como sendo, simultaneamente, mais inclinada para o poder (4,53 vs. 4,09) e mais agèntica (4,84 vs. 4,30) do que Filipe, enquanto que Filipe é considerado como mais comunal do que Cristina (4,82 vs. 4,44). No entanto, as interacções significativas entre Papel e Cônjuge revelam que Cristina é, de facto, percepcionada como mais agèntica do que Filipe apenas nas três condições que implicam uma participação maioritária dos cônjuges nas actividades familiares (poder ou trabalho), ou seja, quando ela desempenha os papéis activo (Cristina: 5,81; Filipe: 5,25; t(74,88)=3,02, p=0,003), executante (Cristina: 4,83; Filipe: 3,69; t(83)=5,29, pcO.OOl) ou dirigente (Cristina: 531; Filipe: 431; t(79)=439, p<0,001). Por outro lado, Filipe é considerado como mais comunal do que Cristina, quando não ultrapassa o desempenho de Cristina nem no poder, nem no trabalho, ou seja, quando assume os papéis igualitário (Filipe: 5,72; Cristina: 4,68; t(79)=5,95, p<0,001) ou passivo (Filipe: 4,52; Cristina: 3,79; t(81)=2,97, p=0,004).

Por fim, as interacçòes significativas entre Papel, Cônjuge e Crença indicam divergências entre os dois grupos de respondentes no que diz respeito ao papel de dirigente. Com efeito, os tradicionalistas não percepcionam Filipe e Cristina de forma diferente quando desempenham este papel (agenticidade: Cristina: 5,13; Filipe 4,61; t(40)=1,7, ns; comunal idade: Cristina: 3,21; Filipe: 3,92; t(40)=1,1, ns), mas os igualitaristas consideram Filipe como menos agéntico e menos comunal do que Cristina (agenticidade: Cristina: 5,56; Filipe: 4,07; t(37)~ 4,56, p<0,001; comunalidade: Cristina: 3,80; Filipe: 3,00; t(37) 2,11, p=0,042). Na medida em que julgam Filipe como significativamente menos comunal do que os tradicionalistas (t(38)=2,65, p=0,012), pode concluir-se que os igualitaristas percepcionam de forma particularmente desfavorável o cônjuge masculino que desempenha o seu papel tradicional.

Em resumo, a nossa hipótese 2a é parcialmente verificada. Com efeito, segundo a concepção clássica que associa papéis sexuais diferenciados a traços sexuais diferenciados, a participação induzida do marido nas tomadas de decisão está correlacionada com a necessidade de poder dos homens, e esta correlação é tanto maior quanto mais fraca é a participação do marido no trabalho familiar. Assim, um marido dirigente é percepcionado como mais virado para o poder do que um marido activo, e um marido passivo é percepcionado como mais virado para o poder do que um marido executante. No entanto, não é esta lógica que se aplica à atribuição dos traços agênticos. Em conformidade com a hipótese 2b, e mais de acordo com os nossos resultados (Poeschl & Serôdio, 1998), a agenticidade segue a participação induzida nas tomadas de decisão, mas é reforçada pela participação masculina no trabalho familiar. Por conseguinte, um marido activo é percepcionado como mais agéntico do que um marido dirigente, e um marido executante é percepcionado como mais agéntico do que um marido passivo.

Estes resultados sobressaem também na descrição da mulher. Com efeito, e de acordo com a nossa hipótese 3a, os traços de personalidade dos cônjuges parecem depender mais da sua posição de poder no casal do que da sua pertença sexual. Se existirem diferenças entre os cônjuges que desempenham o mesmo papel, estas vão no sentido oposto á atribuição dos traços com base na pertença sexual, como predito na hipótese 3b: Cristina é julgada como mais agêntica do que Filipe quando participa maioritariamente nas actividades familiares, e é julgada como menos comunal do que Filipe no caso contrário.

Verifica-se, finalmente, uma correlação global positiva e significativa entre os traços agênticos e a necessidade de poder (r(418)=0,47, p<0,001), assim como, embora menos forte, entre os traços agênticos e os traços comunais (r (418)=0,13, p=0,008), mesmo se a relação entre a necessidade de poder e os traços comunais é negativa (r=-0,35, p<0,001). Estas relações indicam que, para que os cônjuges sejam percepcionados como agênticos, é necessário que as tomadas de decisão se acompanhem de uma participação no trabalho familiar.

Percepção da participação nas decisões familiares

Na análise factorial da participação nas nove decisões familiares, todos os itens foram reunidos num único factor. com valor próprio superior a 5, que explica 66,5% da variância total. Esta organização sugere que a participação induzida dos cônjuges nas tomadas de decisão se estende ao conjunto de decisões, independentemente do domínio a que dizem respeito. Sendo a consistência interna do factor elevada (a=0,94), calculámos a média dos nove indicadores numa única escala de tomadas de decisão. As avaliações da participação média dos dois cônjuges nas decisões familiares, em função dos papéis desempenhados, são descritas no quadro 5, juntamente com os resultados da análise da variância aplicada a estas médias segundo o plano experimental adoptado.

O efeito significativo de Papel indica que os respondentes preveem que os cônjuges colocados nos papéis de dirigente ou activo tem uma maior participação em todas as tomadas de decisão (respectivamente 7034% e 68,73%) do que os cônjuges que partilham igualitariamente as tarefas familiares (55,90%), e que estes três tipos de cônjuges intervêm mais nas decisões do que os cônjuges que desempenham os papéis executante ou passivo (respectivamente 42,20% e 41,26%; p<0,05 muUiple range t de Student). O efeito significativo de Cônjuge indica que, globalmente, os respondentes consideram que Cristina participa mais do que Filipe no conjunto de decisões familiares (58,46% vs. 52,90%).

A interacção significativa entre Papel e Crença revela também que diferentes crenças acerca das diferenças (ou semelhanças) entre sexos são associadas a uma percepção diferente do cônjuge colocado no papel de dirigente. Os igualitaristas consideram este cônjuge como mais inclinado a impor o seu modo de pensar no conjunto de decisões familiares do que o julgam os tradicionalistas (igualitaristas: 74,86; tradicionalistas: 66,15, t(79)=2,95, p=0,004). Pode-se deduzir que o facto de os igualitaristas considerarem o cônjuge dirigente como particularmente autoritário está relacionado com a sua percepção desfavorável do cônjuge masculino colocado no seu papel tradicional.

Confirma-se, ainda, a relação entre os traços de personalidade atribuídos aos cônjuges e a sua participação prevista nas decisões familiares: essa participação está positivamente correlacionada quer com a necessidade de poder (r (418)=0,51, p<0,001), quer com os traços agônticos (r(418)=0,54, p<0,001), enquanto que está negativamente correlacionada com os traços comunais (r(418)=-0,32, p<0,001).

Respostas afectivas

A análise factorial aplicada às respostas afectivas suscitadas pelos cônjuges evidenciou três factores principais, com valor próprio superior a 1, que explicam, no conjunto, 70,4% da variância total. Como se pode ver no quadro 6, o primeiro factor agrupa os sentimentos negativos, o segundo as manifestações de surpresa, e o terceiro reúne os sentimentos positivos.

Apresentamos, no quadro 7, a intensidade média dos sentimentos despertados pelos Cônjuges em função do Papel que desempenham. Indicamos, simultaneamente, os resultados da análise da variância que cruza o Papel desempenhado (activo vs. executante rs. dirigente vs. passivo rs. igualitário), o Cônjuge descrito (Cristina vs. Filipe) e as Crenças dos respondentes (igualitarismo vs. tradicionalismo).

Os efeitos significativos de Papel sugerem que os cônjuges nos papéis activo (4,20), igualitário (3,88) e executante (3,76) suscitam mais surpresa do que os cônjuges dirigentes ou passivos (respectivamente 3,47 e 3,40), embora seja significativa apenas a diferença entre estas duas últimas médias e a recolhida pelos cônjuges no papel activo (p<0,05, multiple range t de Student). No entanto, pode-se notar da interacção significativa entre Papel e Cônjuge que os respondentes se mostram mais surpreendidos quando é Cristina do que quando é Filipe que desempenha o papel de dirigente (Cristina: 4,18; Filipe: 2,75; t(79)=4,51, p<0,001). Os respondentes tendem também a manifestar mais surpresa quando é Filipe do que quando é Cristina que é colocado no papel de executante (Cristina: 3,46; Filipe: 4,05; t(83)=1,8; p=0,051). Como se podia esperar, a intensidade da surpresa está negativamente correlacionada com o grau de tipicidade dos papéis conjugais (r(418)=-0,29, p<0,001). Por fim, o efeito significativo de Crença sugere que os igualitaristas (3,91) se declaram mais surpreendidos do que os tradicionalistas (3,65) pelo conjunto de modelos de organização familiar propostos.

Para além disso, os cônjuges igualitários são aqueles que provocam os sentimentos mais positivos (4,50), destacando-se significativamente dos que assumem os papéis executante (3,80) ou activo (3,55). Por seu lado, os cônjuges passivos ou dirigentes são os que despertam os sentimentos menos positivos (respectivamente 3,20 e 3,09; p<0,05 multiple range t de Student). Reciprocamente, estes dois últimos cônjuges provocam também sentimentos mais negativos do que os cônjuges colocados no papel de executante (dirigente: 2,58, passivo: 2,54; executante: 2,20), enquanto que os cônjuges activos e igualitários são os que suscitam as reacções menos negativas (respectivamente 2,12 e 1,89; p<0,05 multiple range t de Student). Embora os respondentes não se diferenciem relativamente aos sentimentos negativos, a interacção significativa entre Papel e Crença revela que os tradicionalistas manifestam sentimentos menos positivos para o cônjuge igualitário do que os igualitaristas (igualitaristas: 5,29; tradicionalistas: 4,17; t(79)=2,85, p=0,006). Este resultado permite compreender melhor a diferença evidenciada no grau de idealidade atribuído ao cônjuge igualitário pelos dois grupos de respondentes, sugerindo que os julgamentos sobre os papéis conjugais não são feitos apenas numa base racional.

Pode-se observar que, com a excepção da situação em que os cônjuges partilham igualitariamente as tarefas, os sentimentos positivos co-variam positivamente com o grau induzido de participação no trabalho familiar, enquanto que os sentimentos negativos estão negativamente correlacionados com esta participação. Assim, os sentimentos positivos apresentam correlações significativas com a comunalidade (r(418)=0,40, p<0,001) e a agenticidade (r(418)=0,27, p<0,001), enquanto que os sentimentos negativos estão negativamente correlacionados com estes traços (comunalidade: r(418)=-0,0, p<0,01; agenticidade: r(418)=-0,17, p=0,001), e positivamente associados com a necessidade de poder (r(418)=0,12, p=0,015).

Pode, ainda, evidenciar-se que os sentimentos positivos co-variam com o grau de idealidade dos papéis (r(418)=0,59, p<0,001) e a tipicidade dos papéis femininos (r(211)=0,26, p<0,001), enquanto que os sentimentos negativos se associam negativamente com o grau de idealidade dos papéis (r(418)=-0,27, p<0,001) mas positivamente com a tipicidade do cônjuge masculino (r(207)=0,14, p=0,040).

Conclusão

Uma análise conjunta dos nossos resultados pode, em primeiro lugar, ajudar a esclarecer como são percepcionadas as práticas familiares. Com efeito, encontrámos dois grupos de dimensões correlacionadas, que correspondem aos aspectos mais característicos dos papéis conjugais tradicionais. Por um lado, uma elevada participação no trabalho familiar, típica do papel tradicional feminino, está associada a sentimentos positivos e traços comunais, ou seja, ao papel conjugal ideal. Por outro, uma forte participação no poder familiar, típica do papel tradicional masculino, está associada a sentimentos negativos e ao gosto pelo poder. A dimensão agéntica encontra-se relacionada com estes dois pólos, ao combinar o poder e o trabalho familiar.

Os julgamentos recolhidos acerca das práticas familiares parecem, em grande parte, ser independentes da pertença sexual do cônjuge que as adopta. Porém, os dois grupos de respondentes diferem relativamente à percepção do papel masculino: os igualitaristas rejeitam, mais do que os tradicionalistas, o papel masculino tradicional, e consideram como mais ideal o papel masculino igualitário. Dado que os grupos se diferenciam mais no que respeita às crenças acerca das diferenças de competências do que na adesão ao principio de igualdade, a percepção da iniquidade das práticas familiares parece dever passar por um questionamento das finalidades dos discursos sobre as diferenças de competências entre os sexos.

A este respeito, deve salientar-se que cerca da metade dos respondentes femininos se encontram no grupo dos tradicionalistas, embora pertençam a uma população reconhecida como progressista. Os tradicionalistas parecem não só aceitar, mas também defender o trabalho da mulher em casa. O facto de considerarem como mais ideal que a mulher se encontre no papel executante e o marido no papel passivo parece apoiar os pontos de vista dos autores que pretendem reflectir sobre o contributo das mulheres para a manutenção das desigualdades na família. Segundo Kellerhals, Perrin, Steinhauer, Vonèche e Wirth (1982), o desejo de igualdade e de reciprocidade das mulheres é, com efeito, desmentido na prática: "A lógica da tradição cultural retoma largamente os seus direitos na prática, em detrimento da lógica dos recursos (que desempenha um papel muito parcial) e da lógica da relação afectiva (que postularia uma reciprocidade mais marcada)" (p. 172). Para Müller (1998), esta situação poderá ter uma explicação: enquanto que os homens mostrariam o seu desprezo pelas mulheres em público, o desprezo das mulheres pelos homens seria expresso em privado, através da infantilização dos homens em casa. Se estes pontos de vista se verificarem, uma mudança das relações entre homens e mulheres passará por uma tomada de consciência, por parte das mulheres, da necessidade de partilhar com os homens, quer as responsabilidades na sociedade, quer as responsabilidades na família.

 

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Nota

1A correspondência relativa a este trabalho pode ser endereçada a Gabrielle Poesch, Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação. Universidade do Porto, Rua do Campo Alegre, 1055, 4150 Porto (e-mail: gpoeschl@psi.up.pt).

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