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Psicologia

versão impressa ISSN 0874-2049

Psicologia vol.12 no.2 Lisboa jun. 1998

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v12i2.578 

Influência do contexto na percepção e nas representações sociais da morte

Influences on Death' Perceptions and Social Representations

 

Abílio Oliveira*; Lígia Amâncio**

*-**Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa.

 


RESUMO

O estudo apresentado neste artigo integra-se numa investigação em que se pretende analisar e compreender as concepções que subjazem à construção psicossocial da morte, entre futuros profissionais de saúde que com ela irão lidar num contexto social público. Partimos do facto de que, nos nossos dias, a morte raramente acontece num contexto social privado — o que parece assumir contornos dramáticos. Neste estudo experimental investiga-se o efeito do contexto em que se observa a morte de uma pessoa (contexto privado ou familiar e contexto público ou hospitalar) no modo como a morte é representada numa população de estudantes de ambos os sexos e de três cursos universitários (biologia, enfermagem e medicina).

Palavras-chave: morte; representações sociais; contextos sociais.


ABSTRACT

This study belongs to a larger research in which we intended to analyse and understand the social construction of death. We departed from the social fact that death rarely occurs in private contexts — and that seems to assume dramatic outlines. In the experiment reported here the effect of the context where death takes place (private or familiar and public or hospital) on the perceptions and emotions were analysed. Participants were biology, medicine and nursing students of both sexes.


 

Introdução

"O lugar da morte na vida humana não é simples nem estável" (Kastenbaum e Aisenberg, 1983, p. 407).* O relacionamento humano com a morte depende do contexto psicossocial em que nos situamos, resulta de múltiplos factores interrelacionados e, no que se refere particularmente à nossa civilização ocidental, tem sofrido grandes alterações ao longo dos séculos. Possivelmente, muitas outras ocorrerão nos novos tempos que se aproximam, no crepúsculo de uma centúria onde o Homem conseguiu as mais fantásticas conquistas, nomeadamente no domínio científico, e que assistiu a um completo revolucionar do modo deste se olhar e de estar no "planeta azul". Tudo o que vemos e tocamos é mutável e o seu real sentido escapa-nos. E a morte constitui um tema quase intocável e infindável, mas apaixonante, que nos conduz ao limiar da vida e nos leva a reflectir profundamente acerca da mesma. Naturalmente, a forma como (não) encaramos e como percepcionamos e representamos a morte não é mais do que uma consequência directa do modo como concebemos e vivenciamos a vida, dos valores por que nos regemos, das normas e das regras pelas quais nos orientamos, da política, da cultura e da ideologia que nos governam, dos traumas e complexos que ainda não ultrapassámos, dos preconceitos e dos medos que nos impedem de ver, compreender ou chegar mais longe, das crenças que nos alimentam a esperança, dos desejos e, não menos importante, dos sonhos que nos inspiram interiormente.

Neste artigo propomo-nos investigar e compreender a forma como a morte é percepcionada, e representada, ao nível dos futuros profissionais de saúde que com ela irão lidar num contexto social público. Nos nossos dias, a morte comum ocorre no hospital mas, durante muitos séculos, a morte ocorreu no lar (e mais propriamente no quarto) do moribundo (Oliveira, 1995,1999).

Na baixa Idade Média, a morte constituía uma importante cerimónia pública, vivenciada num contexto social familiar (ou privado). Considerava-se que o moribundo deveria mostrar um arrependimento sincero pelos pecados cometidos em vida (e. g., Ariès, 1989,1992; Feijó, Martins e Pina Cabral, 1985; Tavares, 1991; Vovelle, 1983); deitado na sua cama, ele seguia a ars moriendi (e. g., Ariès, op. cit.) e, rodeado de pessoas (amigos, desconhecidos, familiares, sacerdotes), assumia a sua finitude física, sem qualquer tipo de temor, desprezo, orgulho ou desespero, compreendendo e aceitando o seu destino — comum a todas as pessoas -, de forma natural. Do séc. XII áo séc. XIV, a morte converteu-se no momento em que o ser humano analisava, contava, pesava e julgava todas as particularidades da vida — daí resultando a salvação da sua alma ou a sua condenação. Evidenciou-se um sentimento mais pessoal, interior e consciente da morte de si próprio. A partir do séc. XVIII, o que é verdadeiramente receado não é a própria morte, mas sim a separação inadmitida de um ente querido, da pessoa amada — a morte do outro. A Humanidade começou a distanciar-se da morte em si mesma e esta assumiu uma expressão dramática, tensa, exaltada, contestada, espectacular ou pomposa — talvez ocultando o afrouxamento das antigas familiaridades. Na nossa época, a morte tomou-se interdita. Ninguém a deve referenciar ou salientar. Admitimo-la, mas n nossa prática diária tendemos a pensar e a agir como se fossemos imortais, só (re)éónhecêndo a nossa finitude na morte do outro.

Porém, é difícil para uma civilização industrializada; automatizada e tecnicista iludir o destino e "como não há nada mais capaz de gerar preocupações metafísicas nos seres humanos do que o [...]factum da morte, talvez haja então uma razão para se evitar o tópico da morte por parte daqueles que insistem na mundaneidade da actividade académica e da prática social" (Feijó, Martins e Pina Cabral, 1985, p. 14). Porque "à roda da morte e do culto dos mortos há todo um conjunto de sentimentos e de rituais que constituem talvez o que de mais profundo existe na nossa condição humana. [...] Porque é a vida que, acima de tudo, nos interessa" (Coelho, 1991, p. 11). E ao renegarmos a morte, afastamos (violentamente) a vida do nosso quotidiano — o que parece assumir contornos psicossociológicos dramáticos e pesarosos.

Representação e contexto social da morte na actualidade

As actuais concepções e representações da morte estão indelevelmente ligadas a muitos dos paradigmas, eventos e factores que caracterizam, em geral, as sociedades modernas. Em primeiro lugar, concepciona-se o ser humano como um ser autónomo, responsável, capaz de cumprir os seus papéis na sociedade, assim como de se controlar a si próprio, às suas emoções e até ao seu próprio destino; ele é um cidadão político, simultaneamente produto e produtor (ou agente que contribui para a transformação) dos saberes, valores, culturas, ideologias, crenças, dimensões simbólicas ou representações sociais, sendo potencialmente capaz de emitir opiniões e intervir socialmente sobre os mais variados assuntos e não apenas sobre aqueles que respeitam à sua actividade profissional. Mas a sua autonomia é relativa, pois, entre outros aspectos, ele procura consumir bens (e cultiva uma imagem boa e saudável) como via para conquistar (ou aparentar) a sua própria felicidade e ser mais facilmente aceite pelos outros — daí que interdite a morte, porque ela se opõe a esta concepção de individualidade e aos valores que se lhe associam, ao ameaçar desvitalizar e corromper o seu corpo, sem qualquer apelo, roubando-lhe a companhia dos que lhe são próximos e suscitando-lhe o emergir de emoções ou sentimentos indesejáveis.

Em segundo lugar, o advento do capitalismo nos modernos estados democráticos ocidentais conduziu a profundas mudanças nos mais diversos domínios, nomeadamente nos da organização social da família, do trabalho e na dimensão dos saberes (e da ciência) que mais do que nunca parece(m) sobrepor-se ou substituir-se às crenças religiosas (e à própria religião), na confiança e segurança que estas anteriormente ofereciam à grande maioria dos seres humanos. O Homem actual tende a depositar todas as suas esperanças de vida na ciência e particularmente na medicina; por isso, os médicos assumem-se como os profissionais especializados e nomeados para lutar contra a morte e defender a vida; olvidámos o "saber morrer", a morte deixou de ser vivida no seio do lar, entre a família, pois logo que sentimos a sua aproximação ou a vida em perigo, chamamos um médico ou corremos céleres para o hospital — o novo local privilegiado para se morrer, onde, sob o domínio do saber médico, se procura prolongar a vida. Admitimos ainda que o projecto de modernidade fracassa quanto à capacidade de controlar e dominar os nossos maiores mistérios existenciais: a vida e, particularmente, a morte. Não só precisamos reconhecer a exiguidade dos nossos saberes, como também questionar a própria divisão e organização do trabalho e os poderes da ciência (e da medicina).

O ser humano actual vivência apressadamente até os mais íntimos momentos do seu dia-a-dia, parecendo fugir de si próprio, alheio ao facto de ser mortal — e ao recusar olhar-se, poderá estar a adiar um encontro com o seu "eu" mais profundo. A morte deixou de ser um fenómeno natural e tomou-se numa incómoda inimiga que assola a nossa cruzada terrena; mentalmente admitimos que só aos outros acontecem determinadas contrariedades. Contudo, a realidade é impiedosa e exibe-nos sinais, práticas e rituais que preferiríamos fossem ocultados.

O desconhecido impele o ser humano à sua descoberta, mas também lhe pode suscitar medo, ansiedade, angústia ou outras emoções, por não saber o que vai encontrar. Pensar na morte através de símbolos e imagens é bem diferente de dar-lhe um rosto conhecido, determinado e amado; é preferível esquecer ou não pensar nesta questão. Só que, a um nível subconsciente, ela nunca deixa de estar presente no nosso quotidiano, permanecendo, como uma mola em tensão constante, uma realidade incómoda e desconfortável, que se manifesta até nos mais pequenos pormenores. A medicina e a biologia são duas das ciências que mais a investigam — a primeira estuda os melhores meios de proteger, tratar e prolongar a vida de um ser humano e a segunda estuda os processos e os fenómenos intrínsecos à vida e ao seu funcionamento. Ambas lutam contra a morte, com base no seu respectivo corpo de conhecimentos, a favor da vida humana e da sua melhor qualidade.

No início do séc. XX, somente 15% a 20% das pessoas morriam no hospital (Pinto, 1991). Actualmente, para além dos casos de suicídio, a morte ocorre por acidente, doença súbita, numa situação de guerra, na marquesa ou na cama de um hospital ou, então, a caminho do mesmo. No caso dos idosos, os lares e as casas de repouso substituem-no por vezes, mas mantêm com ele muitas semelhanças. Por vezes ouvimos falar de pessoas1 que viveram os seus últimos dias sozinhas, isoladas, quer por opção própria, quer por não terem família ou por ninguém lhes quis ligar — ou seja, foram consideradas socialmente mortas antes do seu decesso biológico; mas também no hospital as pessoas morrem frequentemente sozinhas, escondidas ou ignoradas.

A sociedade moderna dessocializou a morte2 (e. g., Henriques et al., 1993), desumanizou-a, afastando-a do meio familiar e confinando-a entre as paredes de uíft quarto solitário ou de uma enfermaria (onde uma cortina fechada circunscreve um espaço limitado) numa instituição hospitalar. Aí o moribundo vê-se rodeado de aparelhos estranhos e sofisticados (Kubler-Ross, 1991), característicos de uma UCI,3 sendo observado e assistido por diferentes profissionais de saúde, que cuidam para que ele se mantenha vivo. Mas ele poderá sentir-se só,4 com vontade de compartilhar o seu medo, ansiedade, angústia, dor, sofrimento (idem, op. cit.), ou, até, quem sabe, a sua paz, tranquilidade ou alegria, ou qualquer outro pensamento, sentimento, pedido, confissão ou mensagem que gostasse de formalizar ou comunicar.

No hospital não se costuma discutir a morte (e. g., Salema, 1993) e morrer tornou-se demasiado triste para que os profissionais de saúde queiram pensar nisso. Todos a receiam (Kubler-Ross, 1991) e a sua interdição é respeitada. Mesmo pelos estudantes de medicina ou de enfermagem, que na sua vivência diária, com colegas mais velhos, professores e inúmeros médicos; enfermeiros e outros profissionais de saúde, têm a oportunidade de assimilar alguns valores, a cultura específica ou práticas correntes na sua futura profissão, acedendo a toda uma literatuía científica que influenciará, de algum modo, a percepção de um objecto de estudo como a morte. Para vários destes indivíduos, é provável que a "ars moriendi", a "morte familiar"5 (Ariès, 1989, 1992) e os costumes e rituais que se lhe associam correspondam a algo desconhecido, arcaico, improvável, ultrapassado, estranho e desactualizado. Habituaram-se a assistir à morte sem a encarar, numa instituição social pública, mantendo um significativo afastamento afectivo no relacionamento com os doentes e moribundos. Talvez o façam para se protegerem e dominarem melhor o temor e a ansiedade que a realidade da morte (quer como constatação pessoal, quer como sinónimo de desaire profissional) lhes provoca.

Em síntese, nos centros urbanos,6 o processo de morte "ideal" é o que ocorre nos hospitais; longe da família e, sobretudo, dos olhos das crianças. Um idoso ou um moribundo é, frequentemente, difícil de acompanhar, tomando-se gerador de tensões e conflitos indesejáveis, entre os familiares. A opção pelo "lar interno" ou pelo hospital surge inapelavelmente, ainda que o indivíduo preferisse morrer em casa. Nas sociedades modernas, os sacerdotes, os agentes funerários, os trabalhadores nos cemitérios, os médicos, os enfermeiros e outros técnicos de saúde, os psicólogos, os psiquiatras e os biólogos constituem os grupos profissionais que, no seu dia-a-dia, mantêm um maior contacto com a questão da morte.

Pensamos que a percepção, as concepções e as representações da morte dependerão não só do(s) grupo(s) social(ais) a que o indivíduo pertence, como também (e entre outros factores) do contexto social em que a morte ocorre, ou é observada. Esperamos obter diferentes respostas dos estudantes de enfermagem, medicina e biologia, face aos contextos experimentais que considerámos neste estudo. Vamos analisar as dimensões de significação em que se estrutura o conceito de morte, em função de diferentes contextos (público e privado) nos três grupos universitários (enfermagem, medicina e biologia) e nos dois sexos (homens e mulheres), comparando-as com as obtidas anteriormente, na primeira parte da nossa investigação empírica, que foi constituída por um estudo exploratório (Oliveira e Amâncio, 1998).

Hipóteses

O principal objectivo deste estudo, era o de verificar quais as dimensões centrais da morte que os grupos de sujeitos salientam, em função dos contextos experimentais considerados — público ou hospitalar e privado ou familiar. Para isso seleccionámos dois filmes a que os sujeitos assistiram antes de responderem ao questionário (nas condições experimentais),7 nos quais se podia observar uma pessoa moribunda: num deles, ela encontrava-se com aspecto muito doente num quarto, deitada numa cama e rodeada de alguns familiares, acabando por morrer; no outro, ela estava também deitada, mas numa mesa de reanimação, rodeada de médicos e enfermeiros que tentavam salvar-lhe a vida, o que não foi possível — sendo bem visível a consequente reacção (expressiva e gestual) de frustração e de revolta, do médico principal. Os dois contextos sociais retratados nos filmes remetiam-nos para duas formas distintas de encarar ou vivenciar a morte: o primeiro mostrava ou relembrava a "morte familiar" e o segundo sugeria-nos uma imagem relacionada com a "morte interdita", tal como ela é encarada geralmente, na nossa sociedade ocidental. No primeiro estudo verificámos que os estudantes de profissões que contactam mais directamente com a morte de seres humanos, revelam uma maior reacção afectivo-emocional perante a ideia da morte; assim, esperávamos que os sujeitos que assistissem aos filmes (que mostram a morte de uma pessoa) salientassem mais esta dimensão do que aqueles que só respondessem ao questionário.

Consequentemente, em qualquer dos contextos esperávamos que os sujeitos, na sua percepção da morte, salientassem mais a dimensão afectivo-emocional, em particular na situação privada ou familiar, por tomar evidente a perda de alguém querido (a morte do outro), enquanto que no contexto público ou hospitalar, os sujeitos poderão também salientar dimensões associadas ao mal-estar, revolta e impotência perante a (inevitabilidade e incontrolabilidade da) morte. Dada a intensidade emocional a que (se pensa que) os filmes remetem, e porque estes não mostram imagens relacionadas com cerimónias ou rituais fúnebres, espera-se que as dimensões associadas aõ imagético-simbólico ou ao ritualismo e ao religioso, se revelem menos relevantes nos grupos que os visionam, comparativamente com o grupo de controlo.

Constituindo a morte um acontecimento social por excelência (e. g., Ariès, 1989, 1992; Bayard, 1993; Vovelle, 1983), deverá existir uma relação entre os pensamentos, as emoções ou sentimentos e as imagens da morte, com o contexto social em que esta ocorre; donde o contexto social observado poder influenciar os sujeitos na percepção da morte (em função de processos psicológicos e psicossociológicos, conducentes à construção, adaptação e comunicação de representações socialmente partilhadas) . Daqui e dos resultados discutidos anteriormente (Oliveira e Amâncio, 1998), decorrem as nossas hipóteses:

1 Efeito do contexto social em que ocorre a morte na percepção que os indivíduos têm desta:

la) espera-se uma maior saliência da dimensão afectivo-emocional e de dimensões associadas à impotência perante a morte e face à sua incontrolabilidade, em qualquer das condições experimentais, do que na ausência de contexto;

lb) espera-se uma maior saliência da dimensão afectivo-emocional (e/ou relacionada com a morte do outro) na condição "contexto privado ou familiar" do que na condição "contexto público ou hospitalar" e, simultaneamente, uma menor saliência de dimensões associadas à impotência face à morte e à sua incontrolabilidade, na primeira condição, do que na segunda;

lc) espera-se uma menor saliência das dimensões associadas ao imagético-simbólico, às crenças ou até ao ritualismo, em qualquer das condições experimentais, do que na ausência de contexto.

2 Efeito do curso nas dimensões de significação da morte:

2a) espera-se encontrar nos indivíduos que contactam mais directamente com a morte (grupos de enfermagem e de medicina) uma maior saliência da dimensão afectivo-emocional do que nos restantes (grupo de biologia) e, simultaneamente, espera-se que os primeiros salientem menos uma dimensão associada à vida (ou continuação da vida) do que os segundos (de biologia); 2b) espera-se que os membros do grupo de enfermagem sejam os que mais salientam as dimensões afectivo-emocional, ritualista e do sagrado-religioso e os que menos salientam dimensões associadas á vida;

2c) espera-se que os membros do grupo de medicina sejam os que mais salientam dimensões associadas à não aceitação da incontrolabilidade da morte e os que menos salientam dimensões associadas ao pensar na morte (ou no seu sentido);

2d) espera-se que os membros do grupo de biologia sejam os que mais salientam dimensões associadas à vida e ao questionar da morte, e os que menos salientam dimensões ligadas ao sagrado-religioso e ao ritualismo.

3 Efeito do sexo nas dimensões de significação da morte:

3a) espera-se encontrar no grupo das mulheres uma maior saliência das dimensões afectivo-emocional e ritualista, do que no dos homens;

3b) espera-se encontrar entre os homens uma maior saliência das dimensões associadas ao imagético-simbólico, à falta de poder para controlar a morte, do que entre as mulheres.

Metodologia

Sujeitos

Participaram neste estudo 169 sujeitos, 45 do sexo masculino (média etária=20,76, desvio-padrão=2,94, idade mínima=19, idade máxima=37) e 124 do sexo feminino (média etária=20,70, desvio-padrão=1,81, idade mínima=19, idade máxima=30), estudantes universitários do 2.o ano dos cursos superiores de Medicina, Enfermagem e Biologia, da Faculdade de Ciências Médicas — Universidade Nova de Lisboa, da Escola Superior de Enfermagem Artur Ravara e da Faculdade de Ciências — Universidade de Lisboa, respectivamente. No quadro 1 apresentamos a distribuição dos efectivos dos estudantes por três formas de caracterização: sexo, curso e idade e no quadro 2, representa-se a distribuição dos efectivos dos estudantes pelos três factores do design experimental: sexo, curso e contexto experimental (3x2x3).

 

 

 

 

Procedimento

Foi elaborado um questionário constituído por uma série de indicadores ou questões fechadas (crenças, emoções, comportamentos, imagens e atribuições associadas à morte), acompanhadas de escalas ordinais (1-5), que nos permitam quantificar e constituir as representações mais salientes relativamente à morte, entre os estudantes universitários, no universo considerado. Este questionário inclui:

1 uma lista de 44 itens (palavras) seleccionados (as) do estudo exploratório (representadas no quadro 3) e consideradas consensualmente8 como: ideias ou pensamentos associados à morte (6); emoções ou sentimentos (14); símbolos ou imagens (12); e ainda palavras que são comuns aos universos das dimensões cognitiva e afectivo-emocional (7) e às dimensões cognitiva e imagético-simbólica (5);

 

 

2 perguntas que visam verificar em que medida o filme visionado ou a situação de morte suscita o pensamento na morte (em si mesma, de si próprio, ou de outro indivíduo), o modo como o sujeito preferiria morrer, caso pudesse optar e alguns itens (7) destinados a medir as crenças e o seu grau de religiosidade, tendo em conta a existência de uma relação entre morte e religião (e. g., Freud, 1915; Morin, 1988) e admitindo-se a influência do grau de religiosidade nas atitudes face à morte (e. g., Feifel, 1959; Shneidman, 1971).

Cada sujeito participou numa de três condições:

1 numa das duas condições experimentais, nas quais era apresentado um filme antes dos sujeitos responderem ao questionário, sendo de referir que cada um dos dois filmes seleccionados tinha uma duração aproximada de três minutos e mostrava a morte de uma pessoa em duas situações distintas — um contexto social privado9 (ou familiar) e num contexto social público10 (ou hospitalar);

2 na condição-controlo (os sujeitos respondem11 ao questionário, sem visionar qualquer filme).

Todos os itens ou indicadores foram reduzidos, por análise factorial, a dimensões de significação; estas constituíram as variáveis dependentes consideradas para o conceito de morte e corresponderam às variáveis extraídas no decorrer de duas análises factoriais: uma primeira AFCP12 efectuada sobre as palavras seleccionadas do estudo exploratório; e uma segunda AFCP realizada com os restantes itens que, para além das referidas palavras, integraram o questionário. Os efeitos das variáveis independentes sobre as dimensões consideradas foram analisados através de ANOVAs,13 realizadas no SPSS.

Resultados

A primeira AFCP efectuou-se com base no input formado por 39 itens,14 potencialmente discriminatórios, correspondentes a palavras seleccionadas a partir dos resultados obtidos no primeiro estudo, sendo as componentes extraídas submetidas a uma rotação varimax, que permite tomar estas componentes mais facilmente interpretáveis.

A solução obtida permitiu observar, para todos os itens, saturações factoriais superiores a 0,40 em pelo menos um dos oito factores (ou componentes principais).

O quadro 4 mostra a matriz de factores rodada, bem como os valores próprios, a percentagem de variância total explicada por cada factor e os respectivos valores Alfa de Cronbach.

 

 

A análise dos itens que apresentam os valores mais elevados da saturação em cada factor (apoiada nos resultados anteriormente discutidos nesta investigação) permite identificar oito dimensões de significação que estruturam o conceito de morte na população-alvo considerada:

Factor 1 um primeiro factor (28% da variância explicada) remete para pensamentos e/ou sentimentos de mal-estar — reflecte uma dimensão afectivo-emocional da morte;

Factor 2 remete para pensamentos e imagens concretas, que estão associados ao enterro — relaciona-se com as dimensões imagético-simbólica e ritualista;

Factor 3 implica a expressão de sentimentos e o sentir que decorrem da perda de um ente querido — representa a morte do outro numa dimensão afectivo-emocional, vivenciada interior e exteriormente;

Factor 4 remete para o ritualismo da morte, sendo composto por itens relacionados com a vivência de práticas sociais como o funeral;

Factor 5 revela uma dimensão do ideológico-sagrado ligado à religiosidade associada à morte, sendo composto por itens que referenciam imagens, símbolos ou conceitos derivados de uma tradição cultural cristã; Factor 6 evidencia a procura de compreensão ou de justificações para a morte — representa o questionar da morte, revelando uma dimensão cognitiva e emocional;

Factor 7 constituído por itens que parecem indicar que a morte faz pensar na vida,15 possivelmente numa vida além da morte, pacífica — o que poderá revelar uma dimensão cognitiva;16Factor 8 remete para a impotência em evitar o fim da vida, representando a incontrolabilidade ou inevitabilidade da morte — reflecte uma dimensão cognitiva ou consequencial (se a morte é incontrolável, inevitavelmente acontece e implica o fim da vida).

A correlação item-teste indiciou uma boa consistência interna das oito escalas factorialmente definidas e pela observação do coeficiente Alpha de Cronbach, concluímos que todas as subescalas (à excepção da última)17 são internamente válidas e revelam uma forte consistência entre os itens que as compõem, podendo considerar-se que estas avaliam de forma altamente satisfatória os factores correspondentes.

A segunda AFCP realizou-se a partir dos restantes 12 itens18 do questionário, tendo sido calculados e extraídos três factores, seguidamente submetidos a uma rotação varimax e guardados, por regressão. O quadro 5 mostra a matriz de factores rodada.

 

 

A análise dos itens que apresentam valores mais elevados de saturação, permite identificar as seguintes dimensões de significação ou factores:

1 remete para o pensamento na morte ou na mortalidade do ser humano traduz a consciência da (existência) da morte,19 quer da de si próprio quer da do outro, numa dimensão cognitiva e afectivo-emocional;

2 remete para as crenças religiosas na vida para além da morte, na alma e no espírito, e, como tal, para o grau de religiosidade — reflectindo um sentido ritualista numa dimensão ideológico-religiosa;

3 reúne itens que apontam, principalmente, para a interiorização da morte de si próprio — dimensão cognitiva e ideológica associada a uma prática social.

Todas as escalas são internamente válidas, pelo que avaliam de modo satisfatório os factores correspondentes. Após esta fase, foram analisados (através de análises

Análise dos efeitos do contexto experimental

Os sujeitos que não assistiram a qualquer filme — na condição-controlo —, percepcionam a morte como algo distante e abstracto, revelando-se perfeitamente indiferentes a um envolvimento afectivo-emocional, sem sentimentos de mal-estar, mostrando não pensar nem sentir desconfortavelmente este assunto. Por outro lado, à excepção dos homens dos cursos de medicina e de biologia (estes mais do que os primeiros), os sujeitos manifestaram uma menor sensibilidade à inevitabilidade da morte, sobretudo as mulheres de medicina — o que sugere a crença de que poderá haver sempre um meio de protelar ou evitar a morte. Apenas nesta situação foram salientadas as imagens concretas que, simbolicamente, fazem lembrar ou representam a morte no quotidiano e também só aqui, os indivíduos de ambos os sexos, mas mais acentuadamente os homens revelaram questionar o porquê da morte (ou o seu sentido); mas de um modo abstracto, já que se mostraram indiferentes quanto à morte de si próprios. A maioria destes estudantes (principalmente os do sexo masculino e mais os de medicina), revelou pensar na vida (na vida além da morte?), com excepção para as mulheres de enfermagem, que manifestaram não pensar na vida e para as de medicina, que foram indiferentes a esta questão.

Na situação em que a morte ocorre num estabelecimento hospitalar, verificou-se que os sujeitos foram quase indiferentes a pensamentos e sentimentos de mal-estar, perante a situação observada no filme - especialmente os homens. As imagens parecem ter conduzido os sujeitos de enfermagem (que na ausência de filme revelaram tendência para não pensarem que são mortais) e os de biologia (que aí se mostraram indiferentes face à sua mortalidade) a pensarem mais na morte de si próprios do que na situação sem filme. Opostamente, a generalidade dos indivíduos não pensou tanto no questionar da morte, sendo de realçar os homens, onde os resultados desta dimensão são menos visíveis, enquanto que as mulheres se mostraram mais sensíveis às variações do contexto, na saliência desta dimensão. Por outro lado, nenhum grupo associou a morte a imagens concretas. Mas os estudantes de medicina e (ainda mais) os homens de biologia, pensaram na vida além da morte, enquanto que as mulheres de enfermagem foram praticamente indiferentes a esta dimensão; no entanto, as de biologia e os homens de enfermagem, que tinham pensado nesta questão na ausência de contexto, revelaram claramente não associar a vida à situação da morte. Os estudantes de medicina e de biologia, sobretudo os homens, tenderam a manifestar uma menor sensibilidade perante a inevitabilidade da morte; as mulheres, comparativamente à condição-controlo, continuaram a negar este pensamento, embora menos acentuadamente, mas os homens tiveram uma reacção diametralmente oposta à ocorrida nessa outra situação, o mesmo sucedendo com os estudantes de enferma- gem, em especial os homens, que aqui mostraram pensar na morte como algo inevitável ou incontrolável.

No contexto privado ou familiar, a pessoa (jovem) que morria estava na companhia de familiares, que expressaram uma grande dor, com intensa carga emocional, o que contribuiu para ser este o contexto que suscitou uma maior reacção emocional por parte dos sujeitos, levando-os a expressar pensamentos e sentimentos de mal-estar e a não associar imagens concretas à morte, percepcionada como uma realidade e não como algo abstracto. Tornou-se também evidente (mais do que noutra situação) que os sujeitos, especialmente as mulheres, não questionaram a morte. Contrariamente aos estudantes de biologia, que pensaram na vida além da morte — mais as mulheres20 do que os homens; os indivíduos de enfermagem e muito claramente os homens21 não questionaram este assunto. O mesmo mostraram as mulheres de medicina (que haviam ficado indiferentes na condição-controlo), inversamente aos homens desse curso que, embora não tanto como na ausência de contexto, pensaram na vida, negando a inevitabilidade da morte e contrariando novamente as mulheres de medicina22 — que mostraram sentir-se impotentes face à morte. Nos outros grupos, os homens de enfermagem (ainda mais do que na situação pública) e os de biologia viram a morte como inevitável; ao contrário das mulheres que, em ambos estes cursos, pensaram na sua controlabilidade (embora não tão nitidamente como na ausência de contexto), ou simplesmente, não foram sensíveis a um sentimento de impotência. Esta dimensão situou os homens e as mulheres de cada curso em posições opostas. Nesta situação experimental, mais do que na outra, os futuros enfermeiros terão pensado na sua própria morte, ao contrário dos futuros biólogos; estes, como os futuros médicos, mostraram-se tendencialmente indiferentes face à morte de si próprio na condição-controlo, e aqui, os futuros médicos reforçaram a ideia de que não pensam na sua mortalidade, ou dificilmente a encaram,mantendo-a interdita.

Os resultados que apresentámos, podem ser resumidos no quadro 6.

 

 

Sinteticamente, podemos afirmar que os sujeitos na condição-controlo representam a morte como se esta fosse uma realidade remota e pouco provável — percepcionando-a de um modo simbólico, abstracto e sem envolvimento afectivo emocional. O visionamento de um filme tornou a morte mais próxima dos sujeitos, desencadeando nestes uma reacção emocional. A dimensão sentimentos de mal estar, sendo a principal dimensão das representações da morte, foi a única que os sujeitos evidenciaram somente na presença de um contexto de morte saliente e especialmente no contexto privado — o que é significativo.

Em termos gerais e simplificados, referindo-nos somente aos efeitos principais ou de interacção significativos observados, verificamos que a primeira hipótese é parcialmente validada: este estudo revelou, tal como era esperado, uma maior saliência da dimensão afectivo-emocional e de dimensões associadas ao sentimento de impotência em controlar a morte (la), e uma menor saliência das dimensões inerentes ao imagético-simbólico, nas situações experimentais do que na condição-controlo (lc); mas, ao contrário do previsto, a componente associada à incontrolabilidade ou inevitabilidade da morte, foi mais saliente na situação de morte junto aos familiares do que na de morte em contexto público (lb). Também não foram confirmadas as espectativas formuladas relativamente ao efeito do contexto nas dimensões associadas à morte do outro (lb) e às crenças, à religiosidade e ao ritualismo (lc).

Análise dos efeitos do curso e do sexo

Em relação à segunda e à terceira hipóteses que aqui abordamos sucintamente23, sobre os efeitos do curso e do sexo24 nas dimensões de significação da morte, podemos afirmar que os resultados obtidos vão, em termos gerais, no sentido do que era esperado, validando as referidas hipóteses. No quadro 7 apresentamos os principais resultados observados.

 

 

Conclusões

Constituindo a morte um tema vasto e enigmático, fica-nos concerteza muito por investigar e estas conclusões corresponderão, tão-só, a um pequeníssimo degrau subido na longa caminhada da vida. Os resultados deste estudo permitem confirmar os obtidos e discutidos no estudo exploratório (Oliveira e Amâncio, 1999). Verificámos ainda que o contexto ou ambiente em que ocorre a morte, influencia as representações sociais que os sujeitos, nos seus diferentes grupos de pertença, constroem e partilham a seu respeito. Na ausência de contexto, os sujeitos em geral, percepcionaram a morte de uma forma simbólica,25 ou impessoal, não parecendo associá-la, nem a si próprios, nem aos que lhes são próximos, mostrando por isso um claro distanciamento emocional da morte — que constitui um fenómeno interdito.

Se ainda no início do nosso século, as religiões ofereciam a muitas pessoas algum conforto e segurança no aproximar da morte, cultivavam-na ao mesmo tempo "como forma de impor normas que arrastavam consigo o prémio [a vida eterna] ou o castigo [a condenação eterna]" (Pinto, 1991, p. 11); a morte era envolvida num contexto misterioso: de bem, mal, culpa, medo e angústia. Actualmente, as religiões são frequentemente questionadas por uma sociedade que apela a um ritmo vertiginoso de vida e ao alardear de conquistas externamente visíveis, onde a morte é identificada como o fim, o nada e a destruição; e foi curiosamente "o marxismo que veio quebrar este círculo de destruição ao apontar para a utopia de uma sociedade perfeita" (idem, op. cit, p. 12). A par do grande progresso tecnológico-científico a que assistimos, parece ir-se perdendo, pelo menos em parte, a ligação do ser humano ao sagrado, ao seu íntimo mais profundo e ao seu lado ritualista. Actualmente, "o médico assume [...] a sua função como um sacerdócio, de uma nova religiosidade que assumia a ciência como a deusa toda poderosa que, se obstava à consumação do óbito, por outro lado ía para além da morte, descobrindo no cadáver as 'causas' que devidamente recicladas pela investigação científica deixariam de ser motivo de preocupação para os vivos e potenciais doentes" (Moita Flores, 1993, p. 162). É o profissional médico e não o sacerdote que anuncia a vida e a morte.

Nas condições experimentais a morte tornou-se numa possibilidade real, mais próxima dos sujeitos e a dimensão afectivo-emocional ou associada aos sentimentos de mal-estar, foi a mais relevante entre todas as representações encontradas, sendo a única salientada somente face ao visionamento de um filme, especialmente no contexto familiar.26 Nesta situação, a morte foi representada como mais aceitável do que no contexto hospitalar: aí foi considerada como algo desconfortável e indesejável.27 O que consideramos paradigmático das mudanças operadas nos valores e nas práticas que enquadram a experiência psicossocial da morte, uma vez que é no hospital que a grande maioria das pessoas morre — reflectindo-se, também aqui, o interdito da morte. Ambas as condições experimentais evidenciaram de um modo claro a impotência (e as limitações) das ciências médicas (e da Humanidade) face ao poder avassalador da morte.

Pelo que observámos no estudo exploratório e neste estudo experimental (nomeadamente na condição-controlo), a generalidade dos sujeitos revelou medo da morte (ou de morrer) e mostrou tendência para a ocultar e vivenciar (ou respeitar) o seu interdito; a maioria dos indivíduos revelou também que não costuma assistir a serviços religiosos e deu pouca ou absolutamente nenhuma importância à exibição de sinais exteriores de luto, mas mostrou-se muito ou muitíssimo incomodada perante a possibilidade de outra pessoa lhe mostrar pesar ou sofrimento pela perda de um ente querido. De onde admitimos que, em geral, estes indivíduos possam partilhar crenças, valores, ou ideologias, que vão muito além dos processos de socialização universitária, em cada curso, e tenham uma sólida base comum; e assim, estas representações da morte, na nossa população-alvo, poderão ser consideradas como hegemónicas (Moscovici, 1988).

Pensamentos ou sentimentos (de mal-estar) como o fim (da vida), a saudade infimamente relacionada com a perda (do ente querido) e a tristeza, a dor e o sofrimento que daí advêm, foram também muito frequentemente associados à morte, constituindo-se como conteúdos centrais, estruturantes ou simbólicos, muito comuns nas representações encontradas, em qualquer dos dois estudos. Outras ideias ou emoções igualmente muito associadas à percepção da morte, foram a angústia, a depressão e o desespero — sentimentos correlacionados com a solidão que é sentida, quer na sequência da perda de alguém querido, quer no confronto do ser humano perante a possibilidade de nada poder fazer nem ser auxiliado, face à ameaça próxima da morte28 — para além da revolta, por não se poder controlar um acontecimento que tantas vezes parece injusto, das lágrimas e do choro — no fundo, esta será uma outra forma de observar ou expressar dor, sofrimento ou tristeza.

Os resultados deste estudo reflectem a influência das situações experimentais e a diferente natureza dos cursos, ou a diferença entre os saberes emergentes que eles elegem e que a eles se tornam inerentes. Mas como referimos anteriormente (Oliveira e Amâncio, 1998), só trabalhámos com estudantes do 2.o ano e não podemos validar (ou invalidar) qualquer explicação apoiada somente na influência do contexto, do sexo ou da socialização pelas instituições universitárias de pertença, não sendo possível generalizar estes resultados, para sustentar a existência de uma correspondência entre as representações que encontrámos e as que detectaríamos fora das universidades.

As dimensões de significação encontradas reflectem realidades comuns partilhadas (no seio de cada grupo ou entre diferentes grupos) e correspondem no seu conjunto a representações sociais da morte, que nos permitem diferenciar os grupos sociais estudados, traduzindo os posicionamentos que eles constroem ou ocupam socialmente — e que se exprimem no seu modo de pensar, sentir e agir. Porque as representações sociais são elaboradas a partir de valores, ideologias e sistemas de categorização social, construídas pelos grupos sociais e reflectem e contribuem para a produção das suas relações sociais (Vala, 1986), permitindo compreender melhor a actividade cognitiva e simbólica dos sujeitos nas suas interacções quotidianas (Vala, 1981).

Detectámos, implicitamente, nítidos processos de ancoragem concomitantes e interrelacionados com processos de objectivação. Os processos de ancoragem, evidenciaram associações das representações da morte a diferentes modalidades do pensar e do saber, do sentir, do poder, do ritualismo, da religião, do sagrado, da ideologia, ou da própria cultura. E estas representações, sendo características de cada grupo social29 considerado — e podendo classificar-se como representações emancipadas (Moscovici, 1988) — variaram conforme o contexto social em que a morte foi observada e percepcionada, o que reforça o enquadramento social e a justificação psicossocial destas representações. Por processos de objectivação, os indivíduos derivaram diferentes pensamentos ou ideias, expressaram sentimentos ou emoções, referenciaram símbolos ou associaram imagens, ou até práticas, ligadas à morte. Os sujeitos pensaram e (expressaram ou) criaram as suas realidades partilhadas, acerca da morte; e o grande objectivo da teoria das representações sociais, é centrar-se na forma e no conteúdo destas mesmas realidades (Moscovici, 1981). Estas correspondem efectivamente a formas de conhecimento prático, socialmente elaborado e partilhado, conducentes à construção de realidades comuns aos grupos sociais (Jodelet, 1989).

A ciência actual, não conseguindo dominar nem adiar ad aetemo a morte, interdita-a da sua percepção e das suas realidades. Consequentemente, determina o seu total afastamento da nossa própria vivência, tomando-a estranha. A morte, como a doença e o envelhecimento, evidencia bem claramente as nossas limitações e a incapacidade de controlarmos totalmente o nosso destino e a nossa vida, traduzindo o fracasso do nosso modus vivendi, dos nossos valores e, em suma, do nosso "projecto de modernidade" (Oliveira, 1995). A nossa dificuldade de familiarização com a morte, ancorando nos domínios dos saberes comuns ou científicos e no conceito de indivíduo moderno, tem-nos conduzido a um modo de vida dissonante, desta "crise da morte" (e. g., Ariès, 1989; Moita Flores, 1993; Morin, 1988; Oliveira, 1999; Vovelle, 1983). Em algum momento do nosso percurso, teremos que vencer o maior tabu, "reconciliar a morte com a vida" (Ariès, 1992, p. 373) e admitir que mors ultima ratio.30 A sua visão, como um espelho da alma, expõe-nos perante os nossos limites, medos e fraquezas, e incita-nos constantemente a melhorarmos o que não está bem e a superarmo-nos, no sentido evolutivo, qual história interminável que se renova continuamente e a que juntamos um novo capítulo, no dia-a-dia da nossa existência, tantas vezes fugidia da realidade que não queremos olhar, ou da qual preferimos manter-nos confortavelmente afastados.

Apesar de algumas dificuldades31, esta investigação empírica, resumida neste e num artigo anterior (Oliveira e Amâncio, 1998), permitiu-nos também compreender melhor o modo como a morte é percepcionada e escondida ao nível dos futuros profissionais de saúde, num contexto social público, sugerindo-nos um vasto campo de investigação, ainda por trilhar. Nesta encruzilhada de pensamentos, sentimentos e actos que polvilham o nosso dia-a-dia moderno, deparamo-nos frequentemente com dificuldade em encontrar o nosso lugar e tendemos a voltarmo-nos para o exterior. Como se aí esperássemos descobrir algo que poderá já ter cintilado no nosso íntimo, mas que temos ainda dificuldade de escutar ou entender (Oliveira, 1999). Haverão, certamente, caminhos de compreensão e redenção, que nos conduzam a um ponto comum onde, conjuntamente, nos possamos rever e partilhar uma natural, serena e sapiente "percepção da morte": a morte como um momento da vida que nos oferta uma possibilidade de reencontro, connosco mesmos e com os outros, com o que de mais digno existe na natureza humana. Talvez ao aceitar a sua própria morte, e a dos outros, o ser humano possa atenuar a tristeza e diminuir a dor e o sofrimento que daí advém, encontrando um ponto de reflexão que o auxilie a melhor se conhecer, respeitar e viver, atribuindo uma maior importância a cada momento, aparentemente insignificante. Poderemos, eventualmente, entregar- nos completamente ao presente, para melhor aprender e ensinar, sem recear o futuro ou os desígnios do destino, na eternidade dos tempos. Porque a morte não mais constituirá uma "realidade interdita".

 

Referências

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Notas

*Os autores agradecem aos Profs. Daniel Sampaio e Jorge Vala as suas sugestões, a leitura atenta e as críticas a versões anteriores deste artigo.

1"A nível social, a vida do velho sofre modificações que, necessariamente, o perturbam: isolamento social e afectivo, perda de estatuto socio-profissional, perda de prestígio [...], incapacidade ou doenças físicas, perda da casa [...], tudo situações que diminuem a sua auto-estima e ainda a capacidade de adaptação, com aumento do sentimento de insegurança" (Sousa, 1987, p. 148).

2Que se tornou socialmente desvalorizada, como uma coisa má, ao ser vista como castigo, punição, ou injustiça (divina?).

3Unidade de Cuidados Intensivos. "Hoje 90% das pessoas morrem nas unidades de cuidados intensivos ou nas unidades similares" (Pinto, 1991, p. 21). As estatísticas de vários países europeus referem 70% a 90% de mortes em instituições hospitalares e afins (Henriques et al., 1993).

4E frequentemente não pode preparar-se para vivenciar os seus últimos momentos em paz consigo próprio, face à sua individualidade.

5Como se observava há algumas décadas atrás, ou como sucede ainda hoje, pontualmente, em pequenos centros rurais, cada vez mais raros e dispersos.

6Como Lisboa, onde esta investigação se realiza.

7Os níveis da variável contexto experimental, embora sejam designados como público e privado, correspondem ambos a ambientes ou contextos institucionais semelhantes — ambos os filmes escolhidos mostram contextos sociais públicos; porém, diferenciam-se (essencialmente) pelo tipo de pessoas que rodeiam o moribundo: técnicos hospitalares no coMexto que denominámos como público (ou hospitalar) ê familiares do paciente no contexto que designámos como privado (ou familiar), justificando-se assim a designação que lhes atribuímos.

8Palavras que no estudo exploratório foram associadas unicamente a um dos estímulos, i. e., foram consideradas como ideias-pensamentos, emoções-sentimentos ou imagens-símbolos (independentemente dos grupos de pertença dos sujeitos) não aparecendo em mais do que uma dimensão representacional em simultâneo.

9Um quarto onde uma pessoa jovem com um aspecto muito doente está deitada; maquilha-se e então entram no quarto duas crianças pequenas (seus filhos) que se despedem dela e voltam a sair do quarto; na cena seguinte, observam-se duas pessoas (o marido e a mãe?) sentadas junto à cama, que dormitam; entra uma enfermeira no quarto que, ao observar a doente, percebe que esta já faleceu; segreda aos familiares, os quais se levantam e se abraçam, em pranto.

10Numa sala de operações, ou de reanimação, com vários aparelhos e instrumentos sofisticados e alguns médicos e enfermeiros a rodearem o moribundo (deitado na mesa central), tentando com grande empenho reanimar o seu corpo para a vida; quando tal já não é possível, são cortados os tubos que ligam o paciente às máquinas e o médico principal sai para o corredor, mostrando (gestualmente) frustração e grande desalento.

11As instruções dadas aos sujeitos para responder ao questionário diferiam apenas na situação-controlo, onde não era feita nenhuma referência a qualquer tipo de filme ou imagem.

12Ou AFCP (Análise Factorial em Componentes Principais).

13Análises de Variância Simples.

14As palavras diabo, esqueleto, foice, fogo e inferno, apresentaram percentagens de resposta muito superiores a 50 % num dos pólos da escala 1-5 utilizada, pelo que estes itens revelaram uma quase ausência de variância, sendo considerados muito fracamente discriminatórios e eliminados para efeitos da AFCP.

15A este propósito, salientamos que 47,3 % da população total inquirida acredita muito ou muitíssimo na existência de vida além da morte.

16Associada ao sagrado?

17Em que os resultados revelam ligeiras deficiências na forma como os itens permitem avaliar o factor Inevitabilidade da morte.

18Refira-se que uma das questões ("Se pudesse optar, preferia morrer ") não entrou em nenhuma factorização, sendo posteriormente transformada em 5 itens, cujas médias foram submetidas a análises de variância.

19Se o item indicado como "pensar na morte de si próprio" não pertencesse a este factor, poderia admitir-se que este último nos remetia para a morte do outro.

20Que no contexto público não pensaram nesta questão.

21Que na ausência de filme pensaram na vida.

22Estes dois grupos inverteram as suas posições relativamente às respostas dadas na condição-controlo, o que foi muito nítido no caso das mulheres.

23Para uma melhor especificação dos resultados, consultar Oliveira (1995).

24Neste estudo tornou-se ainda mais clara a existência de grandes diferenças no modo como as mulheres e os homens percepcionam a morte.

25Questionaram mais o seu porquê ou significado, mas em termos abstractos.

26Muito possivelmente a visão ou confrontação com a morte de uma pessoa, rodeada pelos seus familiares, desperta ou acentua mais facilmente estes sentimentos do que o pensamento abstracto de uma qualquer morte anónima.

27Porém, os nossos sujeitos, apesar dos cursos que frequentam, rejeitaram unanimemente tal realidade, o que é significativo e apoiado pelo facto de nenhum ter afirmado que, se pudesse, optaria por morrer rodeado de médicos e enfermeiros.

28A morte constitui hoje um acto solitário.

29Por exemplo, para os futuros médicos a morte é, em geral, um tema proibido.

30A morte é a última razão.

31Nomeadamente em encontrarmos, em tempo útil para os prazos que nos eram impostos, sujeitos do sexo masculino que nos permitissem equilibrar melhor os sujeitos dos dois sexos.

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