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Psicologia

Print version ISSN 0874-2049

Psicologia vol.12 no.1 Lisboa Jan. 1998

https://doi.org/10.17575/rpsicol.v12i1.576 

Pertenças sociais e formas de percepção e representação da morte

Way of perceiving and representing death

 

Abílio Oliveira*; Lígia Amâncio**

*Assistente no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.

**Professora Associada no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa.

 


RESUMO

Hoje em dia, o ser humano tem uma grande probabilidade de morrer no hospital ou a caminho dessa instituição pública, onde a morte tende a ser "escondida". Neste artigo pretende-se investigar e compreender a forma como a morte é percepcionada e representada por futuros profissionais de saúde. Apresenta-se um estudo exploratório, cujos principais objectivos consistem em: apreender as dimensões de significação que estruturam os pensamentos, sentimentos e imagens relativamente à morte numa população formada por estudantes de biologia, enfermagem e medicina, de ambos os sexos, e analisar em que medida essas estruturas significantes diferenciam os grupos sociais considerados. Este estudo constitui a primeira parte de uma investigação empírica, enquadrada teoricamente no modelo das representações sociais, tal como foi inicialmente proposto por Moscovici (1961).

Palavras-chave: representação da morte; pertenças sociais; representações sociais.


ABSTRACT

Nowadays, a human being has a great probability to die in an hospital, or in the way to that public institution, where death tend to be "hidden". In this article, we intend to analyse and understand the way how death is perceptioned and represented by future health professionals. Here we present an exploratory study with the aim to: apprehend the significance dimensions which structure the death thoughts, sentiments and images, in a population formed by biology, medicine and nursing students, men and women, and analyse how these significance structures differentiate the considered social groups. This study constitutes the first part of an empirical investigation, theoreticaly framed on the social representations model, as it was first proposed by Moscovici (1961).


 

Introdução

O caminho da morte deve levar-nos mais fundo na vida, como o caminho da vida nos deve levar mais fundo na morte (Morin, 1988, p. 11).

Desde os primórdios da Humanidade que o nascimento e particularmente a morte têm despertado no ser humano uma grande curiosidade, apreensão e preocupação.* Neste sentido, a morte é, mais do que um dos maiores mistérios da vida, "a mais inelutável realidade que todos os homens têm de defrontar" (Mattoso, 1995, p. 55). Porque o seu poder é imenso, incontornável, avassalador, inevitável e omnipresente. Constatamo-lo no nosso dia-a-dia e todos nós sabemos que vamos morrer (Thomas, 1978). Só não sabemos quando, como, ou de que forma sucederá a "grande transição",1 o que, aliado à ideia tão comum de que a morte nos arranca à vida de forma impiedosa (ou até injusta), faz aumentar o medo arrebatador e de algum modo universal em relação à nossa mortalidade; este medo afecta tanto o crente, como o leigo, o agnóstico, o ateu ou o cientista. E, por estranho que pareça, quanto mais progredimos na ciência, mais parece que tememos e negamos a realidade da morte (Kúbler-Ross, 1991); como se, para lá da aparência, estejamos intimamente convictos de que mesmo os recentes adventos médico-científicos apenas podem adiar a "mais possível de todas as nossas possibilidades" (Heidegger, 1964).

Este momento constituía uma cerimónia pública, mas acontecia no quarto do moribundo, num contexto social privado ou familiar.

De nada nos valem os fortes apelos de uma sociedade (de consumo) moderna, que nos pressiona e nos incita a mantermo-nos jovens, bonitos, activos, saudáveis e invioláveis, para melhor aproveitarmos o nosso dia-a-dia, numa busca apressada e incessante de uma felicidade, que parece sempre inatingível. Por isso, é uma sociedade submissa e envergonhada, perante aquilo que não pode evitar nem controlar, que nos nega a nossa própria morte.

A noção de vida e de morte pertence ao homem e à época em que vive (Tavares, 1991). Se focalizarmos a nossa atenção nas sociedades ocidentais, verificamos que até ao início da presente centúria todo o ser humano reconhecia facilmente a sua mortalidade e preparava-se antecipada e serenamente para o "momento final", rodeado de amigos e familiares, segundo a ars moriendi, ou a arte de bem morrer (e. g., Ariès, 1989,1992).

 

 

Hoje em dia, a morte tomou-se muito solitária, mecânica, impessoal, industrializada e desumanizada — a ars moriendi foi quase esquecida. Na verdade, num "mundo apressado", que foge de preocupações e que esconde o que o afronta, corremos o sério risco de morrer na sequência de um qualquer acidente ou, o que é mais comum, num leito de hospital (e. g., Pinto, 1991). O que muitos de nós podem esperar é uma morte por doença ou por velhice, numa unidade de cuidados intensivos ou numa enfermaria hospitalar, onde cada paciente tende a ser considerado como um objecto (identificado por um número), sem qualquer vontade própria ou poder de decisão, e não como uma pessoa que pensa e, acima de tudo, sente (e. g., Kúbler-Ross, op. cit.; Henriques et al., 1993; Pitta, 1991). As decisões sobre a vida do ser humano são tomadas sem o seu consentimento, ou até conhecimento, pois o controlo da mesma é assegurado por enfermeiros, médicos e demais profissionais de saúde — e eles próprios são frequentemente submetidos a um grande volume de trabalho, tensão e cansaço.

Numa instituição hospitalar, o fechar de uma cortina pode indicar que por detrás se esconde alguém que agoniza em solidão, sentindo-se abandonado, confuso, inseguro, triste, dessacralizado, revoltado, desrespeitado, ou até desesperado. Nos seus derradeiros momentos, a pessoa é escondida dos olhares, cuidados e sentimentos alheios.

Torna-se assim dificílimo encarar calmamente a nossa própria morte face à incomunicabilidade a que tantas vezes somos sujeitos, bem como às dissimulações e máscaras que se lhe impõem; porém, ela acontece num contexto social público ou hospitalar.

A morte tornou-se no maior interdito da nossa civilização (e. g. Ariès, op. cit.; Morin, 1988), sendo metaforicamente reveladora das dificuldades com que vivemos actualmente e com que nos deparamos para tentar mudar o mundo.

 

 

Atravessamos uma profunda "crise da morte" (e. g., Ariès, 1989, 1992; Jankélevitch, 1977; Kúbler-Ross, 1991; Moita Flores, 1993; Morin, 1988; Thomas, 1978,1980; Vovelle, 1983) a qual deixa a nu os grandes conflitos psicossociais da sociedade ocidental contemporânea (Vovelle, 1983), que pode observar na morte a imagem do fracasso do seu "projecto de modernidade" (Oliveira, 1995).

Reflectir sobre a morte implica pensar numa série de questões sociais — nomeadamente ao nível dos valores, crenças, atitudes, culturas e ideologias — e em nós próprios, na nossa postura, no nosso modo de pensar, sentir e agir no quotidiano. Pelo que se torna particularmente relevante o estudo comparativo das representações da morte entre alguns dos futuros profissionais que com ela convivem a nível educacional-profissional e que tentam evitar a morte dos outros — estudantes de medicina e de enfermagem — e os que investigam a vida e morte dos seres vivos, nomeadamente do ser humano — estudantes de biologia.

A escolha deste tema Justifica-se em muito pela sua pertinência social: porque o assunto nos remete para múltiplas questões, apelando a uma busca da nossa existência íntima e remetendo-nos para a nossa forma de ser num momento particularmente crítico, onde os profissionais de saúde assumem um papel de preponderância.

Por outro lado, até ao momento, não se conhecem estudos em Portugal, na psicologia social e no âmbito do modelo das representações sociais, que abordem esta temática neste contexto.

Plano de investigação empírica

Foi realizada uma investigação empírica — que engloba dois estudos — com o objectivo de compreender o modo como a morte é percepcionada e representada nos grupos sociais definidos por dois critérios de categorização social: o curso universitário (enfermagem, medicina e biologia) e o sexo (homens e mulheres). O primeiro — que aqui apresentamos — tem um carácter exploratório e o segundo carácter experimental.

Com esta investigação empírica pretendemos alcançar três objectivos genéricos:

1 apreender os universos semânticos (ou dimensões de significação) que estruturam as ideias, emoções e imagens em relação à morte numa população de estudantes universitários de ambos os sexos;

2 verificar as diferenças e as comunalidades das dimensões significantes das representações da morte em função das identidades de género e das diferentes socializações universitárias;.

3 verificar se a saliência das dimensões da morte naqueles diferentes grupos sociais é sensível a variações de contexto: público ou hospitalar e privado ou familiar.

Pensamos que a morte de um paciente é traumaticamente vivenciada por todos os profissionais de saúde, mas que estes sentimentos são mais directamente expressos pelos enfermeiros do que pelos médicos, ainda que ambos procurem não os exteriorizar (e. g., Campbell et al., 1983-1984). Acerca do poder, do saber e do cuidar, parece haver um consenso generalizado de que a função do cuidar não só constitui a principal razão justificadora das actividades de enfermagem, como igualmente se encontra intimamente identificada com o papel feminino; o que está de acordo com a divisão social do trabalho e com os valores e as tarefas que a sociedade atribui (historicamente) às mulheres. Também algumas pesquisas empíricas parecem indicar uma maior tendência na mulher do que no homem para expressar emotividade perante a morte (e. g., Dattel e Neimeyer, 1990; Pollak, 1979), pelo que se espera que sejam os estudantes de enfermagem e as mulheres que revelem maior envolvimento afectivo-emocional com a morte do que os de medicina e de biologia e os homens.

Enquadramento teórico do objecto

Para a ciência actual, a morte assume-se como um fenómeno estranho sobre o qual pouco se sabe e com o qual dificilmente se lida. Tendo as representações sociais a função de nos familiarizar com o que nos é estranho (Moscovici, 1981), de acordo com as categorias da nossa cultura, as representações sociais da morte poderão tornar um objecto não manipulável — a morte — em algo familiar através de processos de objectivação e ancoragem. Se até ao século passado eram as grandes religiões, nomeadamente o catolicismo apostólico romano, que ofereciam ao ser humano a confiança, a segurança e a esperança necessárias para vencer os seus medos2 e encarar calmamente cada fenómeno natural, desde meados do nosso século que assistimos a alguma indiferença ou descrença religiosa e, pelos avanços e conquistas da ciência, são os saberes técnico-científicos que nos tentam garantir uma boa qualidade de vida, conquistando o lugar e o poder que outrora pertenciam à religião. Prometem-nos um corpo são e uma vida longa, mas não nos ensinam o que é a vida, nem nos familiarizam com a morte.

E daqui emerge um dos maiores problemas da nossa civilização ocidental: a ciência não consegue controlar a morte e, como tal, dificilmente a aceita, mantendo-a afastada — ou interdita — da nossa vivência quotidiana. Em geral, desde o ser humano comum ao cientista e independentemente da profissão ou do contexto institucional em que cada um se situa, em casa ou no hospital, ninguém quer falar no morrer e na morte — tão receada; a ela é especialmente associado o horror da degradação ou decomposição do corpo, que assim revela a sua corruptibilidade (e. g., Moita Flores, 1993) e finitude. Os saberes médico-científicos revelam-se incapazes e impotentes para encarar tão incomensurável afronta. O que deverá causar frequentemente uma sensação de frustração profissional, fracasso, ou malestar entre os profissionais de saúde que, talvez por isso, a queiram ignorar. Mas se estes não nos auxiliam no processo de familiarização com a morte, os meios de comunicação social (na procura de palavras e imagens fortes e espectaculares, para grandes audiências), as escolas e outras instituições também não o parecem fazer; daí pensarmos que o ignorar (ou o ocultar) o receio da morte,3 o horror, a dor, o sofrimento e a tristeza que se lhe associam correspondam a representações sociais hegemónicas (Moscovici, 1988) da morte, pois parecem ser partilhadas pela generalidade das pessoas, independentemente do seu estatuto, crenças pagãs ou religiosas, ou posicionamento político, económico e ideológico, ou dos seus grupos de pertença. Mas existirão representações que são características de determinado^) grupo(s) social(ais) — constituindo-se como representações emancipadas (Moscovici, 1988) da morte.

Enquadrámos os estudos efectuados no modelo das representações sociais (Moscovici, 1961), que engloba as representações (diversamente) partilhadas por diferentes grupos sociais, as quais modelam os comportamentos a que se referem e a que dão sentido (Moscovici, op. cit.) —, e analisa a forma como os conhecimentos práticos, socialmente elaborados e partilhados, contribuem para a construção de uma realidade comum a um dado grupo social (Jodelet, 1989) na relação que este ocupa no espaço social (Jodelet, 1984).

Nesta investigação, os processos de ancoragem e de objectivação inter-relacionam-se e constituem-se como geradores e modificadores de representações sociais, assumindo particular relevância; a ancoragem é internamente dirigida e procura objectos que identifica com um protótipo ou reconhece, dando-lhe um nome, enquanto a objectivação é externamente dirigida e deriva conceitos/imagens da memória para os combinar no exterior, criando algo novo para se observar com o auxílio do que já foi visto (Moscovici, 1981). As representações sociais traduzem-nos um posicionamento construído, adaptado ou modificado por um dado grupo social, num determinado contexto social, que se expressa ou consubstancia numa própria forma de pensar, sentir, estar e (re)agir. As representações são sociais, porque emergem num dado contexto social e constituem-se a partir de quadros de apreensão que englobam os valores, as ideologias e os sistemas de categorização social partilhados pelos diferentes grupos sociais (Vala, 1986).

Os grupos de estudantes de medicina, de enfermagem e de biologia estão directamente envolvidos com a morte. Por um lado, encontram-se objectivamente familiarizados com ela quer por estudarem o ser humano através de cadáveres e por cuidarem e tratarem de doentes, adiando_a morte (no caso dos estudantes de medicina e de enfermagem), quer por estudarem qualquer ser vivo, particularmente o ser humano (no caso dos estudantes de biologia); por outro lado, estes três grupos estão igualmente relacionados com a morte num plano subjectivo, participando diariamente em processos de socialização universitária de saberes, poderes, valores, cultura específica, ou práticas correntes e usuais (na sua futura profissão) relacionados com a morte. Todos estes factores influenciam as concepções e as representações da morte, sendo de esperar que se encontrem diferentes formas de a percepcionar e representar — representações emancipadas (Moscovici, 1988) — de acordo com os valores intrínsecos às instituições universitárias (e/ou hospitalares) e à própria comunidade científica, com outros valores que dominam na sociedade portuguesa (Amâncio e Carapinheiro, 1993). Pelo que estas socializações universitárias não se encontram, de modo nenhum, separadas da realidade social em que nos inserimos e na qual estamos envolvidos.

Neste artigo pretende-se investigar e compreender a forma como a morte é percepcionada e representada ao nível dos futuros profissionais de saúde que com ela irão lidar num contexto4 social público — o qual constitui o "cenário da morte" mais comum nos nossos dias.

Hipóteses

O estudo exploratório que aqui apresentamos foi orientado por dois objectivos:

1 apreender as principais dimensões de significação que estruturam as associações de ideias-pensamentos, emoções-sentimentos e imagens-símbolos relativamente à morte, na população-alvo;

2 analisar em que medida essas estruturas de significação diferenciam os grupos sociais considerados.

No âmbito destes objectivos, e tendo em conta o enquadramento teórico acima apresentado, definimos as seguintes hipóteses:

1 Espera-se que o efeito da formação académica nas dimensões centrais da representação da morte se manifeste do seguinte modo:

a) os indivíduos que contactam mais directamente com a morte tenderão a salientar a dimensão afectivo-emocional desta, relativamente aos restantes.

2 Espera-se que o efeito do sexo nas dimensões centrais da representação da morte se manifeste do seguinte modo:

a) as mulheres tenderão a salientar a dimensão afectivo-emocional, relativamente aos homens.

Dado o carácter exploratório e não confirmatório deste estudo, os seus resultados permitem-nos reavaliar e reformular estas hipóteses, que assim se mantêm, para além de outras posteriormente construídas, para a segunda parte da investigação.

Metodologia

Sujeitos

Participaram neste estudo 131 sujeitos de ambos os sexos, estudantes universitários do 2.o ano dos cursos superiores de Medicina, Enfermagem e Biologia, da Faculdade de Medicina (Universidade de Lisboa), da Escola Superior de Enfermagem Artur Ravara e da Faculdade de Ciências (UL), respectivamente. No quadro 1, apresentamos a distribuição dos efectivos dos estudantes por três critérios de caracterização: sexo, curso e idade, compreendida entre os 19 e os 28 anos (média-etária=20,3, desvio-padrão=2,83).

 

 

Conforme se pode deduzir deste quadro, cerca de 73,3% da população total inquirida tinha 19 ou 20 anos de idade (n=96). Em relação ao sexo, embora os efectivos do sexo feminino (n=101, correspondendo a 77,1% da população total) sejam em número muito superior aos do sexo masculino (n=30), existem suficientes bases teóricas (Amâncio, 1992, 1993b, 1994) para prever que estas populações se caracterizam por relações com o conceito de morte bastante diferenciadas, pelo que considerámos a variável sexo como independente, tal como o fizemos relativamente ao curso.

As variáveis dependentes corresponderam às dimensões centrais encontradas (e consideradas) para o conceito de morte.

Procedimento

Utilizou-se como instrumento de recolha de dados a técnica de associação livre de palavras. Os dados foram recolhidos nas aulas, colectivamente, tendo cada sujeito respondido por escrito num protocolo individual. Cada indivíduo expressou as ideias-pensamentos, as emoções-sentimentos e as imagens-símbolos que a morte lhe suscita através de palavras, num máximo de 10 para cada um dos três estímulos que lhe foram apresentados. Assim, foram três as situações-estímulo criadas:

MORTE faz-me pensar em...

MORTE faz-me sentir...

MORTE faz-me pensar nos seguintes símbolos ou imagens...

O emprego desta técnica permite ultrapassar algumas das dificuldades, de índole metodológica e teórica, que se deparam à investigação no domínio das representações sociais (Vala, 1981) e facilita a apreensão dos campos semânticos e das suas supostas propriedades estruturais e significantes.

Em primeiro lugar, procedeu-se à redução de todas as palavras associadas a cada um dos estímulos, colocando-se os adjectivos e os substantivos no masculino e no singular e os verbos no infinito — tratamento que se baseou exclusivamente no critério de raiz etimológica, pois qualquer redução em termos de significados exigiria o recurso a juízes (e. g., Amâncio e Carapinheiro, 1993).

Para identificar os universos semânticos associados à morte, efectuaram-se análises factoriais de correspondências simples (AFC), para cada um dos estímulos, sobre as palavras ou produções em texto livre (as variáveis qualitativas) e para cada estímulo cruzado com as variáveis independentes consideradas, através do programa estatístico SPAD-T, versão 1.0 (CISIA, 1989).

Resultados

Em primeiro lugar, devemos salientar o facto de que todos os universos semânticos compilados para os diferentes grupos, nas três situações-estímulo, revelam índices de homogeneidade5 bastante baixos, o que indica que os indivíduos, dentro de cada um dos grupos sexuais e grupos universitários de pertença, recorrem a um dicionário comum, isto é, utilizam expressões e atributos semelhantes — o que revela a partilha de muitos conteúdos representacionais da morte.

Nas três situações estudadas, são as mulheres que partilham representações mais homogéneas, apresentando sempre índices de homogeneidade menos elevados do que os dos homens, o que pode significar que o género feminino está ligado a uma representação da morte menos individual ou pessoal (e mais social) comparativamente com a do género masculino. Quanto aos grupos universitários, os índices de homogeneidade calculados em cada uma das situações têm valores semelhantes, sendo ainda de acrescentar que todos se situam acima dos valores obtidos para as mulheres e abaixo dos revelados para os homens; contudo, o grupo de biologia é, muito ligeiramente, o menos homogéneo entre os três.

Os valores do número médio de palavras retidas por sujeito também não variam muito entre os grupos, notando-se uma tendência de acordo com a qual quanto maior é a homogeneidade de um grupo, mais elevada é a média de palavras retida para esse grupo. No entanto, os estudantes de medicina superam as mulheres, revelando-se como os que apresentam um vocabulário mais diversificado.

Relativamente aos resultados obtidos para o estímulo Morte faz-me pensar em..., as palavras mais frequentemente mencionadas — fim, solidão e tristeza, tal como se apresenta no quadro 2 — levam-nos a pensar que, embora a morte nos remeta para o fim6 da vida e tal nos entristeça, a palavra solidão conduz a uma reflexão menos óbvia: pode traduzir a ideia de que geralmente se morre quando se é idoso e que a morte do próximo (companheiro) nos deixa sós; ou induzir o pensamento de que quem morre sente-se só por estar separado dos que lhe eram próximos; ou até significar que quem fica, sente a perda daquele que comunicava e se relacionava consigo.

 

 

Os três factores retidos na AFC efectuada com as palavras associadas a este estímulo representam diferentes dimensões do conceito de morte e são interpretados de acordo com as contribuições absolutas7 e relativas8 de cada palavra relativamente aos eixos factoriais — representados nas figuras 1 e 2, onde podemos observar o posicionamento de cada palavra no plano formado por estes.

 

 

 

 

O primeiro factor remete-nos para os pensamentos inerentes à morte do corpo, opondo pensamentos concretos ou processos de objectivação da morte — que se relacionam com rituais fúnebres — caracterizados por palavras como caixão, preto, cemitério e luto a pensamentos difusos ou sentimentos traduzidos em dor e fim. O segundo parece traduzir dois modos de experienciar a morte e opõe os pensamentos dos que ficam (evidenciados em vida, desconhecido, choro e saudade) aos supostos pensamentos dos que morrem (manifestados nas palavras paz, dor e caixão). O terceiro parece apresentar os pensamentos e sentimentos que decorrem após a morte de alguém, contrapondo uma dimensão do visível (pensamentos concretos ou sentimentos, como sofrimento e perda) a uma do invisível ou transcendente (pensamentos abstractos, difusos, como desconhecido, paz e vazio).

Em relação aos resultados mais específicos de cada grupo, verificámos que o primeiro (e principal) aspecto que a todos é comum e que se salienta é o da percepção da morte como forma de pensar e de sentir a morte do outro. Contudo, enquanto os homens a representam de um modo bastante concreto e adoptam um posicionamento basicamente observador, as mulheres mostram-se mais directamente participativas e emocionalmente envolvidas; poderá pensar-se que os homens a representam como a exteriorização da dor pela perda de alguém querido, enquanto as mulheres representam a interiorização dessa dor.

No que concerne aos grupos universitários, os estudantes de biologia são os que mais facilmente revelam uma atitude observadora e distante face à morte, associando-a ao desconhecido e à vida — talvez atribuam simplesmente maior importância à vida do que à morte, ou se refiram às formas de vida que são suportadas pelo corpo morto, em decomposição. Pelo contrário, os estudantes de enfermagem são os que mais orientam o seu pensamento para o nível do que se sente pela morte do próximo (provavelmente um ente querido), revelando intensa emoção pela morte de alguém que lhes é (ou se tomou) próximo.

Os estudantes de medicina parecem pensar essencialmente na expressividade da dor — da sua, ou da daqueles a quem morreu alguém que lhes era querido. São os estudantes de biologia que parecem assumir uma postura mais científica face ao fenómeno da morte e aqui somos tentados a especular que isso resulte do seu interesse em estudar diferentes formas de vida, pelo que, de algum modo, observarão a morte como (um sustento e) uma continuação da vida.9 Pelo contrário, os estudantes de enfermagem e os de medicina revelam diferentes emoções perante a morte do outro: os primeiros associam as suas emoções às sentidas por quem vivência a morte de alguém que lhe é próximo, enquanto os segundos evidenciam um posicionamento quase profissional face à morte, como quem observa e descreve as emoções que esta desencadeia e suscita nos outros — sem que com ela se envolvam tão directamente. Este será certamente um resultado revelador dos processos de socialização universitária e de profissionalização, em que todos os sujeitos se encontram envolvidos10 (e neste caso particular, os estudantes de medicina), através dos quais se criam e se desenvolvem as identidades profissionais, que, por sua vez, muito condicionam o modo de encarar e entender a realidade em cada grupo social.

Quanto aos resultados obtidos para o estímulo Morte faz-me sentir..., todas as palavras retidas — conforme se representam no quadro 3 —, exceptuando pensativo e curiosidade, traduzem emoções, sentimentos de mal-estar e atitudes negativas face à morte.

 

 

O que se torna elucidativo se observarmos que triste, a palavra mais frequentemente referida, tem uma percentagem global de frequência de cerca de 62%; só (com mais de 37%), medo, impotente e angústia são, por esta ordem, as palavras mais associadas ao sentir da morte, o que reforça o que afirmamos acima, pelo que podemos inferir que a morte não só causa tristeza, quiçá associada à sensação de solidão que daí pode advir, como assusta e nos remete para a nossa impotência e angústia perante algo que não podemos prever, nem evitar ou sequer controlar.

Os três eixos de inércia resultantes da AFC realizada com as palavras retidas para este estímulo — apresentados nas figuras 3 e 4 — representam diferentes modos de sentir a morte.

 

 

 

 

O primeiro eixo de inércia parece salientar a oposição entre duas maneiras de reagir face à ideia da morte,11 opondo sentimentos que revelam medo e dor face ao vazio, a uma procura sem resposta —^ sentimentos desencadeados pela tentativa de compreender o sentido da morte de si próprio, definidos pelas palavras confuso, pensativo, perdido e deprimido. O segundo factor poderá distinguir diferentes atitudes perante o desconhecido (ou sentimentos desencadeados pela tentativa de compreender um processo natural inevitável e desconhecido), consubstanciadas em dois modos opostos de sentir a morte como um facto —por um lado, revelando algum interesse em desvelar o desconhecido (estando-lhe associadas as palavras medo, curiosidade e confuso) e, por outro, reconhecendo a incapacidade para alterar o rumo natural da vida (conforme deduzimos de mal, pequeno, impotente e revoltado).

O terceiro salienta duas formas de sentir a falta do outro: enquanto uma revela uma atitude de grande incompreensão ou até, de certo modo, de negação — dada pelas palavras perdido, vazio, mal e só —, a outra transmite-nos uma posição de aceitação, ainda que não deixe de revelar sofrimento — definida por deprimido, saudade e ansioso.

 

 

Ao considerarmos os resultados específicos de cada grupo, o que mais se evidencia é a sensação de mal-estar, medo, angústia ou ansiedade perante a morte (de si próprio ou do outro). Importa notar que as mulheres vivenciam a morte de forma mais interiorizada do que os homens — nas mulheres, o mal-estar parece advir do facto de não compreenderem o sentido e o significado da morte, enquanto que no caso dos homens, tal prende-se com a falta de poder para controlar o processo. Enquanto elas sentem a morte de um modo mais pessoal, os homens evidenciam grande mal-estar, em parte devido à grande importância que atribuem à evidente incontrolabilidade da morte — o que interpretamos como um sentimento de revolta perante um poder que a todos supera.

No que concerne aos grupos universitários, apesar de todos eles nos transmitirem percepções emocionalmente negativas, confirma-se que são os estudantes de biologia que mais se distanciam da morte e se posicionam de um modo mais impessoal, mental e interrogativo relativamente a esta. Opostamente, os sujeitos de enfermagem são aqueles que mais claramente salientam um sentimento de desespero (e angústia) face à morte, enquanto os possíveis futuros médicos se mostram revoltados, sós e impotentes frente a algo que transcende o seu saber formal e que de certo modo, poderá abalar a sua identidade profissional (talvez a sua revolta advenha de não compreenderem o significado da morte, ou de simplesmente não se interrogarem acerca desse significado, ou até de não considerarem muito seriamente a sua própria mortalidade, visto que a morte é sentida como a negação do seu poder, da sua capacidade profissional).

Relativamente aos resultados obtidos para o caso do estímulo Mortefaz-me pensar nos seguintes símbolos e imagens..., não podemos deixar de sublinhar que as cinco palavras mais frequentes (cruz, cemitério, caixão, caveira e flores, especialmente as três primeiras, com percentagens globais de frequência superiores a 40%), nos remetem para o universo ideológico-simbólico-religioso dos ritos e locais mais associados à morte: os cemitérios. O que nos faz ponderar acerca da importância dos funerais e, em particular, dos rituais de enterramento, na tomada de consciência da morte do outro e, no fundo, da consciencialização da realidade da nossa própria mortalidade.

Devemos também sublinhar que apesar de ser a cruz o símbolo mais frequentemente associado no material obtido, pelo contrário, nos nossos cemitérios (portugueses e mediterrânicos em geral) as cruzes são secundarizadas face à visibilidade das campas, das manifestações tumulares de pedra ou da estatuária abundante (e. g., Vovelle, 1983; Moita Flores, 1993). Contudo, estas últimas palavras raramente foram por nós encontradas (com excepção de campa, com uma percentagem global pouco superior a 8%).

Esta aparente contradição leva-nos a pensar que talvez os nossos sujeitos não conheçam bem os nossos cemitérios, pouco os frequentem e como tal não tenham presente na sua mente aquilo que estes mais facilmente projectam; por outro lado, não será de excluir a possível influência que outras fontes, como por exemplo os filmes e o cinema, terão nas representações sociais da morte e particularmente do cemitério: na sua maioria, as produções inglesas e americanas que dominam os nossos ecrãs, mostram-nos uma realidade bem diferente da nossa, com cemitérios12 onde predomina o espaço livre, o verde e a cruz, que pode estar associada a uma pequena placa e que substitui, muitas vezes, as construções tumulares de pedra que nos habituamos a ver, por exemplo, no cemitério do Alto de São João. Poderá existir ainda uma razão subconsciente para o predomínio da imagem mental da cruz, pois há vários séculos que a simbólica de inspiração cristã (ou até judaico-cristã13) domina não apenas a paisagem cemiterial, como também vários dos nossos costumes, valores, crenças e ritos. Ao nível do senso comum, o apelo e a invocação do sagrado é forte e a cruz, desde a era romântica, tem sido reconhecida como um símbolo do triunfo sobre a morte (e. g., Biedermann, 1994).

Os três eixos factoriais retidos na AFC relativa às palavras mais frequentemente referenciadas para este estímulo — apresentados nas figuras 5 e 6 — representam diferentes dimensões de significação ou modos de estruturação dos símbolos e imagens ideológicas e religiosas (ou até pagãs) associadas à morte.

 

 

 

 

O primeiro eixo traduz a forte influência ideológico-religiosa que se constata na nossa tradição sociocultural e opõe imagens concretas (associadas a palavras como cruz, preto e caveira) a imagens abstractas, inerentes à ideologia, ancorada nas crenças (sugeridas por céu, deus, inferno, diabo e fogo). O segundo estabelece uma oposição entre a simbologia ligada ao profano (em palavras como esqueleto, caveira e foice) e ao sagrado (consubstanciada em flores, cruz e igreja). O terceiro eixo centraliza-se nos domínios de uma tradição pagã, que escapa à influência da religiosidade cristã e opõe imagens concretas (dadas por caveira e foice) a imagens difusas (sugeridas por esqueleto e escuridão) — este factor personifica, de certo modo, o receio do ser humano face à morte.14

Quando nos centramos nos resultados específicos de cada grupo, destacamos as mulheres e os estudantes de enfermagem, que pelas representações imagéticosimbólicas que partilham, mais se diferenciam dos outros grupos e denotam uma nítida dimensão de prática social na representação da morte. Assim, enquanto os homens tendem a utilizar imagens concretas (como caveira ou terra) que pouco têm que ver com uma dimensão religioso-ritualista15 na representação da morte, as mulheres recorrem a imagens que salientam uma dimensão de prática social (ilustrada em palavras como flores, campa e cruz).

Porém, é necessário referir que estas empregam também frequentemente a palavra esqueleto16 como personificação da morte, o que poderá explicar-se pela sua sensibilidade ao simples facto de os esqueletos17 serem concebidos como um dos símbolos da morte.

No que respeita aos grupos universitários, os estudantes de enfermagem, como acima referimos, partilham uma representação semelhante à das mulheres; no entanto, o seu universo semântico é mais abrangente que o delas e inclui outras palavras (como fogo, deus e diabo) simbolicamente conotadas com o sagrado e/ou o religioso de inspiração cristã, excluindo a palavra esqueleto. Os futuros médicos, tal como os homens, representam a morte de uma forma simbólica ou concreta (o que é perceptível em palavras como preto ou terra, nos primeiros, e caveira ou terra, nos segundos), mas os homens parecem ter uma maior proximidade com o sagrado (sugerida pela palavra deus, em vez de escuridão no grupo de medicina). Os futuros biólogos são aqueles que mais frequentemente recorrem ao físico concreto e ao profano, ou à ordem natural das coisas. Neste contexto, importa recordar que, ao longo da história do homem, o sagrado18 e o profano19 têm correspondido a duas formas de ser ou de existir no mundo (Eliade, s. d.). Por exemplo, o símbolo da foice (que é referido pelos estudantes de biologia) é um dos mais representativos da tradição não sagrada e está associado a um instrumento do trabalho agrícola que, no domínio metafórico, identifica o tempo de vida terrena com o de vida vegetal: a foice termina com ambos os ciclos, mas, no entanto, "é depois da colheita que os cereais ganham a sua verdadeira função (...) e é depois da morte que a vida humana vai atingir autêntica significação ontológica" (Moita Flores, 1993, p. 48).

Pensa-se que este símbolo tem uma origem pré-helénica, sendo simbolizado pelos Gregos como o deus Cronos, que os Romanos adoptaram coma Saturno e cujo significado se prende com os ciclos do tempo, sendo portanto, em certa medida, um símbolo de morte (como finalização de um ciclo).

Discussão dos resultados

certas condutas e práticas sociais, constituindo um objecto de estudo que contribui para restituir à psicologia social as dimensões histórica, social e cultural (Jodelet, 1984).

De acordo com a primeira hipótese, concluímos que o curso constitui um critério classificatório, mas também diferenciador entre três concepções da morte, sendo claro que as dimensões de significação características dos estudantes de biologia se opõem às dos estudantes de enfermagem e de medicina — o que é particularmente visível na análise dos resultados obtidos para o estímulo Morte faz-me sentir.... Assim, verifica-se que os futuros profissionais de saúde revelam um maior envolvimento afectivo-emocional com a morte do que os futuros biólogos, donde podemos afirmar que são os indivíduos que têm um maior contacto ou relação mais directa com a realidade social da morte que tendem a salientar mais a sua dimensão afectivo-emocional — o que os diferencia dos restantes.

A este propósito, pensamos que a diferença que se verifica na sensibilidade aos contextos seja uma consequência directa das modalidades de identidade dominante e dominada (Amâncio, 1994). E no caso concreto de um serviço hospitalar, parece verificar-se que à identidade da enfermagem (grupo dominado) associa-se a dimensão do cuidar, profundamente identificada com o papel social feminino20 na sociedade, enquanto à identidade da medicina (o grupo dominante) associam-se mais facilmente as dimensões do saber e do poder (Carapinheiro, 1993), muito identificadas com o papel social masculino.21

Efectivamente, as diferentes posições e funções sociais dos dois sexos são basicamente históricas e não apenas sociais (Amâncio, 1993b). Neste âmbito, recordamos que os estereótipos sexuais podem constituir não só um suporte simbólico das posições sociais objectivas destes grupos, como também ser o ponto de partida para a elaboração de construções de si próprios, entre os indivíduos de cada um dos sexos (Amâncio, 1992,1993a).

Assim, verifica-se que a variável sexo influi na estruturação das dimensões centrais (ou de significação) da morte entre os diferentes grupos considerados.

As mulheres revelam um maior envolvimento emocional com a morte do que os homens — o que permite confirmar a nossa segunda hipótese. Embora elas sejam maioritárias22 em todos os cursos, apenas no de enfermagem encontramos dimensões que correspondem a um estereótipo tipicamente feminino o que mostra que não basta haver mais mulheres para que os universos semânticos se feminizem, pois é necessário que isso aconteça num contexto bem determinado: ser mulher e ser estudante de enfermagem, Este resultado corrobora a pertinência inerente aos conceitos de sexo e de género, porque, no nosso caso, o mais determinante é o género feminino e não propriamente o sexo. Desta forma, os processos de socialização decorrentes no curso de enfermagem são determinantes na orientação de representações que integram dimensões identitárias do género feminino, nos limites do contexto em que a função social feminina é exercida, isto é, ser mulher e ser enfermeira, ou seja, ser mulher num contexto profissional que capitaliza fortemente dimensões de feminilidade.

É também fundamental referir que são as mulheres que revelam uma dimensão prática nas representações da morte, mostrando mais claramente como estas podem assumir-se como uma forma de conhecimento socialmente elaborado e partilhado. Ou numa perspectiva globalista: "Les représentations sociales sont des modalités de pensée pratique orientées vers la communication, la compréhension et la maitrise de renvironnement social, matériel et idéel" (Jodelet, 1984, p. 361).

Sublinhe-se que em qualquer das situações-estímulo existe uma forte semelhança entre as representações das mulheres e as dos estudantes de enfermagem,23 bem como entre as representações dos homens e as dos indivíduos de medicina.

Os resultados por nós obtidos podem reflectir a diferente natureza dos cursos, ou a diferença entre os saberes (emergentes) que aqueles elegem e que se lhes tornam inerentes, o que inevitavelmente se manifesta nos diversos modos como é processada a inserção destes profissionais na sociedade portuguesa; aqui importa focar não só a questão dos saberes, como também, de certo modo, dos poderes de cada grupo profissional em relação ao cuidar do ser humano e ao adiamento da sua morte. No entanto, e como nesta investigação só participaram estudantes do 2.o ano, não nos é possível confirmar nem invalidar qualquer explicação baseada exclusivamente na socialização pelas instituições universitárias de pertença. Não podemos também inferir se existe ou não uma real correspondência entre as representações que encontramos entre os três cursos e as que encontraríamos no exterior das universidades.

Este estudo exploratório permite-nos concluir que as representações sociais da morte ancoram nas modalidades do pensar, do saber, do poder, do cuidar, da religião, da ideologia, da cultura ou até do ritualismo e das práticas sociais. Estas representações constituem de facto uma forma de conhecimento prático, socialmente elaborado e partilhado, com base no qual é construída uma realidade comum a cada um dos grupos considerados (Jodelet, 1989). Os processos de objectivação da morte evidenciam-se no modo como esta é percepcionada e representada, através de símbolos e imagens ou noções abstractas, pela associação de diferentes práticas sociais e imagens concretas, como sejam os enterramentos, os cultos religioso-ritualistas, as sepulturas, ou as manifestações de pesar e o luto.

Distinguimos diferentes dimensões de significação que estruturam as associações de ideias-pensamentos, emoções-sentimentos e imagens-símbolos em relação à morte, em função de distintas socializações universitárias e das identidades de género. Assim, grande parte das representações encontradas são características de determinado(s) grupo(s) social(is), constituindo-se como representações emancipadas (Moscovici, 1988). Contudo, alguns pensamentos ou sentimentos de malestar perante a morte (e manifestações de medo), bem como a dor, a tristeza e o sofrimento que daí advêm, constituem conteúdos centrais, estruturantes ou simbólicos muito frequentes e transversais nas representações estudadas — podendo estas considerar-se como hegemónicas (idem, op. cit.).

As representações sociais da morte remetem-nos para um vasto campo de investigação empírica (ainda por aprofundar), no qual, pelo seu mui relevante (e preeminente) interesse psicossocial, pensamos continuar a trabalhar.24

De qualquer modo, fica claro que se afigura mais fácil pensar-se numa imagem concreta ou abstracta do que na morte de nós próprios e que as nossas vãs tentativas de familiarização com ela ancoram nos domínios do saber comum ou científico e no conceito de indivíduo moderno; estas têm-nos conduzido a um labirinto de equívocos e disfarces pouco consistentes e nada satisfatórios, apoiados em valores incontornavelmente questionáveis, numa situação de profunda crise da vida e da morte, onde ainda procuramos — como crianças algo receosas que, sem conseguirem compreender ou fugir do que as afronta, tacteiam no escuro o caminho a seguir — uma saída saudável, libertadora e tranquilizadora. Porque a morte continua a ser uma realidade interdita.

 

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Notas

*Este trabalho foi realizado na sequência da elaboração de uma tese de mestrado em Psicologia Social, sob a orientação da Prof.a Lígia Amâncio — a quem o autor agradece muito especialmente. Agradece ainda aos Profs. Daniel Sampaio e Jorge Vala as suas sugestões, a leitura atenta e as críticas a versões anteriores deste artigo.

1Ou travessia, como afirmavam os grandes filósofos da antiga Grécia clássica.

2Ainda que por vezes incutindo outros medos, suportados por crenças e dogmas.

3Não só a morte como também o envelhecimento, a dor (física e/ou emocional) e a doença deixam-nos antever o fracasso do nosso "projecto de modernidade", contrariando o conceito de homem autónomo e o objectivo de ser (ou parecer) feliz e saudável.

4Num próximo artigo referir-nos-emos à segunda parte desta investigação empírica e abordaremos a influência do contexto nas representações sociais da morte.

5Quociente entre o número de palavras distintas (ou associações) produzidas pelo grupo e o número total de palavras produzidas; este índice varia entre zero e um. Zero indica o máximo de concentração das respostas do grupo, o que significa a utilização de um mesmo universo semântico, ou norma de associação (e. g., Vala, 1984; Amâncio, 1989). Valores elevados deste índice sugerem que os indivíduos de um grupo não utilizam um dicionário comum, ou seja, formulam respostas distintas, o que pode significar a não partilha de uma mesma representação sobre um objecto.

6Pelo menos a nível físico, como a biologia, a química ou a medicina o comprovam.

7A contribuição absoluta de cada ponto corresponde ao nível de participação de cada variável na construção ou definição desse eixo. Cada eixo ou factor, é normalmente explicado pelas variáveis que têm valores mais elevados de contribuição absoluta, devendo fixar-se um índice ou valor mínimo, acima do qual se considera que uma variável ou modalidade contribui consideravelmente para o sentido do factor (Oliveira, 1995).

8A contribuição relativa (ou cosinus carré) mostra a quantidade de variância do ponto que é explicada pelo factor, isto é, mede a contribuição do eixo factorial para a explicação da variável (e. g., Lorenzi-Cioldi, 1983).

9De um certo ponto de vista, é natural que, para os biólogos, a morte esteja associada à vida, urna vez que parte dos seus conhecimentos sobre a vida e os seres vivos são estudados em séres mortos (em laboratório); pelo que eles precisam da morte para estudar a vida.

10E recordamos que todos os sujeitos são alunos em fase de completarem o segundo ano do curso.

11De si próprio?

12É o caso dos cemitérios onde estão enterrados soldados vítimas de guerras — por exemplo, da II Guerra Mundial, que se salientam pela visão imponente e impressionante, de extensos campos (muitas vezes relvados), com centenas ou milhares de cruzes.

13"O signo hieroglífico da cruz, símbolo do nome que resume todos os nomes, imagens dos quatro pontos cardeaes e da quadratura do círculo, (...) resume e representa toda a filosofia e toda a teologia da Cabala" (Lévi, 1978, p. 95), sendo esta a interpretação mística da Bíblia (pelos judeus) ou o "compêndio de doutrina judaica, onde se baseia o seu sentido cosmogónico e o ordenamento do universo" (Gascon, 1991, p. 6).

14E revela uma das imagens que ele mais frequentemente lhe associa, no seu imaginário: um esqueleto armado de uma foice a cortar cabeças numa vasta pradaria; esta parece-nos ser uma imagem de terror no nosso mundo ocidental (e.g., Bayard, 1993).

15Mas antes uma dimensão do sagrado e/ou imagético-simbólico (deus, caveira, terra).

16Os esqueletos podem simbolizar a ideia de que na plenitude da vida nos encontramos circundados pela morte (e. g., Biedermann, 1994).

17Recordamos que os ossos, em determinadas condições, podem conservar-se quase inalteráveis durante muitíssimos anos.

18O bem ou o real.

19O não sagrado, o irreal ou pseudo-real, ou até o mal.

20Definido por uma função social, no âmbito dos limites do contexto em que essa função é exercida — "modelo de pessoa situacional" (Amâncio, 1993b).

21Definido por uma função social, autónoma e independente dos contextos em que essa função é exercida — "modelo de pessoa universal" (Amâncio, 1993b).

22Representando 77,1% da população total.

23Talvez porque, "a divisão social do trabalho impõe historicamente um aprendizado às mulheres das tarefas de cuidar e prover crianças, velhos e doentes" (Pitta, 1991, p. 186), características do papel dos profissionais de enfermagem. (A percepção das mulheres é ainda mais próxima da dos estudantes de biologia que da dos de medicina.)

24Neste sentido, voltaremos a abordar este tema num próximo artigo, que terá como base um estudo experimental em que se investiga a influência do contexto na percepção e representação da morte.

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